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Flip 2014

SorókinAbriu ontem em Paraty a Flip 2014, décima-segunda edição do evento. Desde sua fundação em 2003, a festa literária foi alvo de inúmeras críticas, mas firmou-se como a mais conhecida no país. Há dois anos, eu próprio uni-me ao coro dos críticos, em um artigo para a Deutsche Welle Brasil no qual discutia o parquíssimo número de autoras no evento desde sua criação, refletido ainda na escolha dos homenageados, entre os quais apenas Clarice Lispector (1920 – 1977) compareceu até a presente data. O número de escritoras no evento jamais chegou a uma dezena, entre mais de 40 convidados a cada ano. O que seria um escândalo em várias partes do mundo, no Brasil parece não incomodar muita gente.

Este ano não é diferente: entre os 47 convidados principais, há 8 mulheres. Não são todas escritoras ligadas à literatura: o evento de 2014 traz a fotógrafa Claudia Andujar, a atriz Fernanda Torres, e nomes ligados ao jornalismo, como a brasileira Eliane Brum e a argentina Graciela Mochkofsky. Como o homenageado deste ano é Millôr Fernandes (1923 – 2012), escritor que construiu sua carreira dentro da imprensa brasileira, o evento, que invariavelmente conta com jornalistas como curadores, tem uma presença forte de autores ligados à imprensa entre os convidados.

Duas das ficcionistas presentes são jovens que alcançaram renome em seus países ganhando prêmios importantes, como a canadense Eleanor Catton, ganhadora do Man Booker Prize, e Jhumpa Lahiri, britânica filha de imigrantes indianos, ganhadora do Pulitzer. Neste aspecto, a festa tem sido generosa com autores jovens, contando a cada ano com alguns escritores que iniciaram há pouco suas carreiras. Este ano, a festa traz o suíço Joël Dicker (n. 1985) – que tem sido celebrado por suas vendas mundiais, e ainda o paquistanês Mohsin Hamid (n. 1971) e o peruano Daniel Alarcón (n. 1979). Há que se notar ainda que, com frequência, os nomes aparentemente vindos de fora do âmbito cultural EUA-Europa são filhos de imigrantes ou autores que produziram sua obra nos Estados Unidos ou Europa, escrevendo em inglês. Estas são questões que serão vistas por alguns leitores deste texto, tenho certeza, como meramente políticas e portanto, na mentalidade ainda reinante em grande parte do Brasil, extraliterárias.

Mas em um evento que tem com frequência se furtado ao que outros veriam como responsabilidades, é importante destacar a presença do escritor ianomâmi Davi Kopenawa e do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro em Paraty este ano, especialmente em meio à intensificação das perseguições e assassinatos de líderes indígenas no país, com uma violência crescente sob a mudez e a conivência do Palácio do Planalto e do Ministério Público. Na edição do evento no ano em que são lembrados os 50 anos do golpe de 64, há uma presença forte de autores ligados ao questionamento político da época, e ainda mesas de discussão, como a que reúne Bernardo Kucinski, Marcelo Rubens Paiva e Persio Arida, chamada “Memórias do cárcere: 50 anos do golpe”. Num ano como este, não apenas pela data histórica, mas pelos acontecimentos atuais em torno dos protestos, isso é mais que benvindo.

Nomes importantes na festa deste ano incluem o cultuado autor português Almeida Faria (n. 1943), autor de A Paixão (1965); o russo Vladímir Sorókin (n. 1955) [foto acima], autor de A Fila (1984) – obra central da literatura conceitual e pós-moderna em seu país, que faz dele herdeiro e o liga à ala mais experimental da prosa e poesia russas no pós-guerra, como a de Dmitri Prígov (1940 – 2007); e ainda o chileno Jorge Edwards (n. 1931), ganhador em 1999 do Prêmio Cervantes.

A festa deste ano traz uma gama bastante variada de nomes ligados ao jornalismo, à arquitetura, à sociologia e à ciência. São muitas as estantes nas livrarias precisando de atenção. Quanto à poesia, talvez esta seja a curadoria mais fraca da história do evento, com apenas dois autores, Charles Peixoto, e outro carioca, o jovem Gregorio Duvivier, cuja carreira tem sido alavancada por sua fama como comediante. Estes autores têm obras que certamente merecem seu espaço e atenção, mas estão longe de ser as expressões mais inovadoras da poesia brasileira contemporânea.

É provável que seja ocioso reprisar as críticas à Flip. Festa do mercado editorial, já sabemos da influência que as grandes editoras têm sobre a curadoria do evento. A escolha invariável de jornalistas para a curadoria também demonstra certa tendência. Talvez não se possa esperar grande ousadia de um evento editorial, ligado portanto às regras do mercado. Para dar um exemplo do campo da música, seria muito frutífero ver no Brasil um festival literário de grande porte que fizesse o que faz o excelente festival londrino Meltdown, que convida para a curadoria sempre os nomes mais expressivos, experimentais e respeitados da cena musical. Patti Smith, David Bowie, Scott Walker, Yoko Ono e Antony Hegarty já foram curadores do evento. Um festival como este mantém a cena musical inglesa em contato anual com o que há de experimental acontecendo no mundo.

No que toca à Flip, o país pode contar a cada ano talvez apenas com um ou dois nomes mais ousados, como é o caso de Vladímir Sorókin este ano, para ter contato com expressões inovadoras em outras línguas. Quiçá os escritores brasileiros jovens presentes no evento possam desfrutar desta oportunidade. Mas, com os custos ligados à visita ao evento, seu esconderijo idílico na apropriadamente colonial Paraty e a presença marcante de autores que, de qualquer forma, já têm grande espaço na imprensa, temo que a Flip seguirá sendo, em grande parte, apenas uma celebração do status quo.

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quinta-feira 31.07.2014 | 11:25

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São Paulo, o profundo

Talvez seja a idade que avança, o escritor começa a querer recompor a merencória infância. Nós nunca fomos muito prudentes na hora de seguir os conselhos de Drummond. Afinal, nem ele o foi. A morte de Suassuna e a reflexão sobre o seu papel na cultura brasileira talvez tenham também intensificado isso, e os textos e mensagens recentes de colegas cariocas que se exilaram em São Paulo, como Victor Heringer e Marília Garcia. Quiçá tudo não passe de sentimentalismo de exilado, como comentou minha colega luso-berlinense Adelaide Ivánova. Houve ainda a morte recente de meu tio, Douglas Domeneck, e o pensamento em meu pai, entrevado na cama após seguidos derrames no interior de São Paulo, quando em minha memória ainda o vejo saindo de casa, todo enérgico, para fazer cooper, como dizia, ou gritando os preços de leitoas e frangos assados nos leilões que dirigia para as quermesses da cidade natal. Soará como paroquialismo esse texto?

Uma cena desenrolada na cantina da Faculdade de Filosofia da USP, lá pelos idos de 1998, quando eu já havia deixado o interior de São Paulo e vivia na Desvairada: o poeta Érico Nogueira, meu amigo e também paulista do interior, vira-se e diz: “O paulista é um povo sem metafísica.” De qualquer forma, nessas conversas, eu tomava o cuidado de enrolar o R que trazia arrastado desde os tempos das poRtas veRdes do interioR. Essa aproximante retroflexa que ainda se debate se é influência do tupi-guarani dos indígenas ou do português do Minho.

Quando leio os textos de Pier Paolo Pasolini, o poeta da pequena Casarsa, sobre a destruição cultural que a massificação e industrialização (sem metafísica) trouxeram à Itália, penso às vezes na devastação cultural e metafísica do interior de São Paulo, irradiando da capital. Cresci em uma década na qual ainda sobreviviam resquícios da cultural popular do interior do estado. O povo ainda ouvia as modas de viola. Em algum rincão escondido do país, vivia ainda Helena Meirelles, obscura. As procissões ainda passavam pela rua, e havia aquele dia do ano em que a Bandeira dos Santos Reis vinha para ser beijada. As senhoras da rua se reuniam às terças-feiras para rezar o terço, e quando era o tempo da novena, o vozerio das ladainhas invadiam qualquer casa, especialmente a minha, que ficava a dois portões da reunião. Criança, eu ficava com a cara grudada na grade, olhando as velhinhas, ouvindo hipnotizado aquele som ritmado. Era o mistério.

E quando perguntei a minha avó, a Vó, que viu lobisomem duas vezes, por que não havia mais assombração, ela disse: “É culpa da eletricidade, meu fio. Assombração e lobisomem têm medo quando tem muita gente, só vêm no escuro do sítio.” Era a matriarca e minha primeira experiência com o poder narrativo da palavra, suas mil estórias, como em sua versão da Gata Borralheira – que vivia numa fazenda e ganhava da Fada, em primeiro lugar, uma vaca. A vaca, que era (é claro) mágica e falava, era morta pela madrasta, mas não antes de instruir a borralheira a abrir suas tripas mais tarde, com uma faca, pois encontraria em seus intestinos um vara verde, mágica. O resto é Disney, com a exceção do príncipe, que na verdade era apenas o filho mais velho e mais bonito do sitiante mais rico da região.

Hoje, as festas juninas são aquele espetáculo deprimente em escolas particulares. Os rapazes são agroboys, sua música é o country. Do mistério das manifestações religiosas, resta apenas o conservadorismo beato. Da devoção, o zelo vazio. Do localismo, que pode estimular de forma tão criativa a cultura de um país, resta o provincianismo. Por onde andam Os Parceiros do Rio Bonito? Cururu não há mais.

O embate entre o Brasil rural e o urbano segue. Sua estrutura se repete nas batalhas dentro das cidades. Higienópolis de costas dadas a Pinheirinho. O esvaziamento cultural de São Paulo é o que aguarda o Brasil como um todo, se a elite mais obtusa do mundo, a brasileira, não for detida em sua vulgaridade pseudo-modernizadora.

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terça-feira 29.07.2014 | 10:35

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Superávit & Déficit – A balança comercial da cultura brasileira contemporânea

Eu ainda me lembro claramente de uma camiseta que o namorado de minha irmã costumava usar na década de 1980, quando eu ainda era criança. Na frente, ela carregava o bordão da Ditadura Militar: “Ame-o ou deixe-o”, com uma bandeira do Brasil. Era copiado dos amercanos, como em tantos de seus crimes.  Atrás, no entanto, ela tinha o desenho de um avião e, em letras garrafais, CUMBICA, com duas mãos apontando em forma de setas a opção a seguir. Eu acredito que esta camiseta foi meu primeiro contato com as possibilidades de sátira política através da língua. Na música, era o tempo do rock brasileiro de bandas como Legião Urbana, expondo as placas dos nossos becos sem saída. É claro que nosso complexo de vira-lata, como se diz, vem de mais longe. Mas naquele momento, sair do país, emigrar para os Estados Unidos ou a Europa, era a alternativa para uma geração que se viu enclausurada na “década perdida”. O filme de Walter Salles, Terra Estrangeira (1995), mostra como isso perdurou após a redemocratização. Os anos de hiperinflação, dos sucessivos planos econômicos que terminavam em desastre. A época do “sai ministro, entra ministro”. O Brasil nos parecia uma piada de mau gosto, algo constrangedor. A cena do filme de Salles, quando a personagem de Fernanda Torres tenta vender seu passaporte brasileiro no mercado negro e recebe a oferta de apenas 300 dólares, mostra bem o sentimento da época. “Mas é novo em folha!”, ao que o contrabandista responde: “É brasileiro”.

Nós sabíamos que tínhamos alguns motivos de orgulho, algum tipo de orgulho. Sabíamos que nossa música era bela, original. Que nas artes e no esporte alguns brasileiros podiam ser fonte de alegria para o mundo. Mas tudo parecia uma promessa falida, e não era muito claro de quem era a culpa, ainda que soubéssemos da responsabilidade de nossos dirigentes, militares e civis. Havia uma nostalgia tanto por Carmen Miranda como por Tom Jobim, aqueles brasileiros que haviam encantado o Império. Entre prosadores e poetas, sabíamos desde a Poesia Concreta que os brasileiros podiam sim ser ponta de lança. Que, se estrangeiros ao menos descobrissem Machado de Assis, veriam o que as mazelas daquela terra podiam produzir.

Na década de 90, com a estabilização da economia após o Plano Real, houve uma transformação que certamente descobriremos um dia ter sido mais coordenada pelo Planalto que se imagina. Mas ocorreu. De repente, meninos de classe média-alta se entregavam à capoeira como seria impensável uma década antes. O samba se tornava coisa para gente culta. A propaganda brasileira passava a exaltar as belezas nacionais. Em 1994, ano do Plano Real, o Brasil é convidado de honra da Feira do Livro de Frankfurt. Em 1998, do Salão do Livro de Paris. Na música, surge o Manguebeat de Chico Science e Nação Zumbi, Mundo Livre S/A e Mestre Ambrósio, e a esperança de que certos desenvolvimentos da cultura popular tolhidos pelo Golpe de 64 poderiam ser retomados. Na literatura brasileira da época, no entanto, foi um período de certo absenteísmo histórico e contextual. O nacionalismo dos Modernistas de 22 parecia algo cafona, a ser superado. Resenhando a antologia de poesia brasileira publicada nos Estados Unidos, Nothing The Sun Could Not Explain: 20 Contemporary Brazilian Poets, um crítico americano reclamava que os textos poderiam ter sido escritos em qualquer lugar, e recomendava como comparação a leitura de “A Mesa”, de Carlos Drummond de Andrade, numa antologia também recém lançada nos Estados Unidos à época. Havia nisso, é claro, certa expectativa de exotismo por parte do americano, mas ele tocava em um ponto que estava realmente presente na mentalidade literária da época. Os traumas dos dualismos de esquerda e direita da Ditadura haviam deixado marcas na literatura, e certo desejo de poder habitar apenas o mundo da imaginação.

É ingênuo não perceber a influência que um momento econômico tem sobre a percepção estrangeira da arte de um país. A ascendência econômica dos Estados Unidos e sua influência cultural estão intimamente ligadas. Washington sabe muito bem como usar Hollywood.

Nos últimos anos, o economia brasileira superou a inglesa e a francesa. A presença cultural brasileira no mundo talvez jamais tenha sido tão forte. Na última década o Brasil foi o convidado da Feira do Livro de Frankfurt uma vez mais, e o país-tema do festival Europalia, na Bélgica, trazendo dezenas de artistas, escritores e músicos para o continente. O Museu de Arte Moderna de Frankfurt organizou a primeira grande retrospectiva da obra de Hélio Oiticica. Neste exato momento, os Estados Unidos veem a primeira grande retrospectiva de Lygia Clark no MoMA, que traz ainda a mostra On the Edge: Brazilian Film Experiments of the 1960s and Early 1970s, exibindo filmes de Júlio Bressane, Rogério Sganzerla, Carlos Vergara, José Mojica Marins, Antonio Dias e outros. No Guggenheim, também em Nova Iorque, uma exposição de arte contemporânea latino-americana, chamada Under The Same Sun: Latin-American Art Today, é marcada pela presença de brasileiros, trazendo trabalhos de Paulo Bruscky, Rivane Neuenschwander, Adriano Costa, Jonathas de Andrade, Erika Verzutti e Tamar Guimarães. Apesar de inúmeras críticas, a Bienal de São Paulo segue sendo importante, muito mais que a de Berlim. Traduções nos últimos anos, de escritores brasileiros, levaram Machado de Assis à lista de autores favoritos de intelectuais como Susan Sontag, Woody Allen e Harold Bloom, para citar três nomes bastante variados. Primeiro descoberta na França, a biografia do americano Benjamin Moser e as novas traduções lançadas nos Estados Unidos e Inglaterra fizeram de Clarice Lispector um dos nomes mais comentados dos cadernos culturais de língua inglesa, e, numa entrevista recente, a jovem escritora americana Kate Zambreno citou A Hora da Estrela (1977) como um dos livros de maior influência sobre a escrita de seu mais recente romance, Green Girl (2014). A coletânea de poemas Rilke Shake (2007), de Angélica Freitas, foi traduzida e lançada na Alemanha e nos Estados Unidos. Carlos Drummond de Andrade será relançado pela Penguin, em tradução de Richard Zenith. Os Sertões (1902), de Euclides da Cunha, esgotou um par de edições na Alemanha, em tradução de Berthold Zilly. Jorge Amado tem sido reeditada na Alemanha, após ter grande sucesso aqui entre os anos 1960 e 1980. Sob a empreitada de Aníbal Cristobo, a poesia brasileira contemporânea se insere no mundo hispânico, com suas traduções para livros de Paulo Leminski, Arnaldo Antunes, Marcos Siscar e, futuramente, Marília Garcia e Luca Argel. A música brasileira chegou mesmo à rede da  música pop internacional com as bandas paulistanas Cansei De Ser Sexy e Bonde do Rolê.

São, como se pode ver, fenômenos variadíssimos em escopo e alcance. Talvez o Brasil tenha percebido que uma presença política séria no mundo passa pela inserção de sua cultura em outras plagas. Ao mesmo tempo, mal escrevo isso e percebo como isso pode soar mero imperialismo capenga, algo que o Brasil não sabe por vezes reprimir. Mas talvez a resposta especificamente brasileira a algumas questões que passam por tantas culturas possa começar a se fazer ouvir cada vez mais no mundo, aquele de tantos problemas compartilhados.

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segunda-feira 14.07.2014 | 09:33

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“Imagina depois da Copa”

O povo é o inventa-línguas, cantou Caetano Veloso a partir de Haroldo de Campos, que por sua vez tomou a expressão do russo Vladimir Maiakóvski. Os brasileiros não são conhecidos no mundo por seu humor, como são os ingleses, por exemplo. Mas é muitas vezes através da língua que os brasileiros procuram exercer sua resistência ao Estado-Nação que a meu ver menos os governa que os oprime. Quando foi decidido que o Brasil sediaria a Copa do Mundo de 2014, não demorou para que a falta de infraestrutura do país, com a qual os brasileiros têm que lidar todos os dias, gerasse um novo bordão para o caos diário das cidades brasileiras: “Imagina na Copa”. Caos no trânsito? Imagina na Copa. Péssimo transporte público? Imagina na Copa. Alagamentos? Imagina na Copa. Tratava-se da suspeita de que a Copa não só tornaria internacional nosso estado de exceções, como o intensificaria. E em grande parte, os brasileiros imaginaram bem a Copa.

Se Wittgenstein escreveu que o significado de uma palavra é seu uso na língua, a própria forma com que os brasileiros tendem a usar o verbo “imaginar” já demonstra algo sobre o país. Distante de poder muitas vezes sonhar novas possibilidades para o futuro, o “imaginar” no uso brasileiro tem menos do “Imagine” inglês de um John Lennon, por exemplo, que os ares de uma interjeição de desabafo. Por vezes, o brasileiro usa o “Imagina” até mesmo para dizer “de nada”. Obrigado – Imagina, como quem diz: isso não é nada, ou “não por isso”. Num país que parece legar tão poucas possibilidades de futuro para uma parcela tão grande da população, nosso “imaginar” passa a exercer uma função de negação, adversativa.

É na língua, propriedade verdadeiramente comunitária de um povo, que a batalha começa. Pois quando não era mais necessário imaginar a situação no país durante a Copa, e o evento chegou muito antes do primeiro chute na primeira bola, e começou a dividir ainda mais o país, com remoções forçadas, mortes nos canteiros de obras, violência policial contra qualquer desacordo, o “Imagina na Copa” transformou-se em “Não vai ter Copa”. É claro que ninguém esperava impedir o evento. Mas era necessário fazer resistência ao discurso do governo, que pretendia lucrar politicamente, e a sua “Copa das Copas”, jargão que está sendo reutilizado atualmente pela imprensa para refletir o entusiasmo com o evento.

Aos poucos percebemos que o legado da Copa não será a expansão da infraestrutura do país para todos os cidadãos, mas sim a expansão de uma estrutura militarizada que vem desde a Ditadura e, se já tornava um inferno a vida da população negra e indígena do país, agora se expande para outras parcelas da população que protestaram e sentiram na pele e na língua o que já era uma realidade para tantos.

É na língua que a batalha começa. A batalha se mostra quando parcela da mídia faz de “vandalismo” o que se sonhava “protesto”. O governo, sempre e ainda militarizado, que agora tenta transformar em “terrorista” o que se quer “dissidente”, e isso dentro de um chamado Estado de direito. Palavras são muito importantes. Tantas que circulam no país, como “democracia racial”, “cidadania plena”, ou “Brasil para todos”, são inócuas, vazias, mero discurso de controle. E a palavra “legado” começa hoje a se tornar algo a ser temido. Com as prisões arbitrárias de ativistas nas últimas semanas, começo a pensar com medo num novo bordão: “Imagina depois da Copa”.

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sexta-feira 04.07.2014 | 10:11

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O escritor apresenta sua tarefa

O jornalismo – ao lado da carreira diplomática e, especialmente hoje, da academia e da vida universitária – tem sido uma constante no trabalho dos escritores brasileiros.

Já no século 19, Machado de Assis era uma presença constante nos jornais cariocas, colaborando sob pseudônimo para publicações como o Jornal da Família, além de colaborar com o Correio Mercantil, o Diário do Rio de Janeiro e a Gazeta de Notícias, na qual manteve a coluna “A Semana” a partir de 1892. Como era comum à época, Raul Pompeia publicou sua obra-prima, O Ateneu, primeiramente em forma seriada, em folhetins da mesma Gazeta de Notícias, este que foi um dos jornais mais importantes do século 19, contando ainda entre suas páginas com nomes como Coelho Neto, Aluízio Azevedo e José do Patrocínio.

Foi como correspondente do jornal paulistano O Estado de S. Paulo que Euclides da Cunha partiu para o sertão baiano para cobrir a Guerra de Canudos, experiência que nos valeria Os Sertões (1902), um dos livros monumentais da literatura brasileira, nosso anti-épico. O convite do jornal, ademais, surgiu após a publicação de seu artigo “A nossa Vendeia”, em 1897, e foi primeiramente como jornalista que Euclides começou a deixar suas marcas na vida cultural do país.

Sobre a relação dos escritores do século 19 com os jornais, o crítico Sérgio Miceli escreveu: “Em termos concretos, toda a vida intelectual era dominada pela grande imprensa que constituía a principal instância de produção cultural da época e que fornecia a maioria das gratificações e posições intelectuais. Os escritores profissionais viam-se forçados a ajustar-se aos gêneros que vinham de ser importados da imprensa francesa: a reportagem, a entrevista, o inquérito literário, e em especial, a crônica”.

No início do século 20, a cultura literária do Brasil viu nascer um de seus maiores talentos para a sátira na figura de João do Rio, assinando “O Brasil Lê” para a mesma Gazeta de Notícias, além de colaborar com outras publicações como O Paiz, O Dia, Correio Mercantil, O Tagarela e O Coió, e dirigir a revista Atlântica. Já Lima Barreto, que trabalhou no Correio da Manhã, perderia o cargo após a publicação de seu primeiro romance, Recordações do Escrivão Isaías Caminha (1915), no qual satirizou a classe jornalística carioca.

Sob pseudônimos como Helen Palmer, Teresa Quadros e Ilka Soares, a escritora Clarice Lispector chegaria mesmo a escrever sobre cuidados com a beleza para revistas e colunas destinadas ao público feminino, em veículos como O Comício e Diário da Noite. Mas, em muitos de seus textos para a imprensa, reinava em si a grande escritora que foi, como vemos nos textos reunidos em A Descoberta do Mundo (1984). Um exemplo é o seu estranhíssimo “Brasília: Esplendor” ou o assombroso “Mineirinho”, textos que hoje nos parecem incompatíveis com a grande imprensa como a conhecemos hoje.

A lista de escritores brasileiros que mantiveram colunas em jornais ou contribuíram assiduamente com a imprensa quase confunde-se com a própria lista do cânone. Nelson Rodrigues dizia ter praticamente nascido dentro da imprensa, trabalhando por anos no jornal A Manhã, do qual seu pai era proprietário, e mais tarde no diário Crítica, também fundado por seu pai. Foi dentro da redação deste último que uma das grandes tragédias de sua vida aconteceria. A também escritora Sílvia Serafim, indignada com a matéria de capa do jornal a respeito de seu divórcio, invade a redação com o propósito de matar o editor Mário Rodrigues, pai de Nelson, e na ausência deste acaba matando seu irmão mais velho, o artista Roberto Rodrigues, que trabalhava como ilustrador para o jornal. Nelson Rodrigues tinha apenas 17 anos quando presenciou a cena.

Graciliano Ramos, Cecília Meireles e Carlos Drummond de Andrade são outros grandes nomes que passaram pelas páginas de jornais brasileiros, escrevendo sobre política, literatura e sociedade. Também Millôr Fernandes construiu toda a sua carreira dentro de jornais cariocas. Nas duas últimas décadas, a imprensa brasileira recebeu semanalmente contribuições de prosadores e poetas consagrados como Carlos Heitor Cony e Ferreira Gullar, e hoje as recebe de nomes da nova geração, como Antonio Prata, Fabrício Corsaletti, Victor da Rosa e Daniel Pellizzari.

Este texto, que inaugura meu blog na DW Brasil, me lança em meio a estes nomes. Me pareceu a melhor maneira de iniciar os trabalhos: lembrando-me dos colegas passados e presentes. Minha intenção aqui é comentar as literaturas brasileira e europeia em suas intersecções com seus respectivos contextos cultural e político.

Desejem-me sorte.

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terça-feira 01.07.2014 | 13:03

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