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Pequena homenagem a um grande editor: Vítor Silva Tavares

Nestes dois últimos anos, sofremos grandes perdas no mundo da língua portuguesa. Em 2014, as mortes se acumulavam, ao que nos parecia, diariamente. Pedíamos trégua ao Anjo pelas redes sociais, esperando que, a esta altura, até a Morte já tivesse perfil no Facebook e no Twitter. E nos seguisse, já que amiga nunca será. Houve um momento em que pensei fazer cartões de visita com a descrição de “obituarista” como profissão.

Este ano, infelizmente, não tem sido diferente. Mas parecemos nos acostumar, como o ser humano se acostuma a tudo. Em Portugal, morreu o grande Herberto Helder. Em Cabo Verde, o grande Corsino Fortes. Na América Latina, perdemos Eduardo Galeano e Pedro Lemebel. A lista seguiria.

Mas, se lamentamos a perda de um grande escritor, precisamos lamentar a morte de um grande editor, e poeta também, de mão satírica firme. Morreu nesta segunda-feira (21/09/2015), em sua Lisboa natal, Vítor Silva Tavares (1937-2015). Sem grandes editores, nós escritores, e especialmente poetas, estaríamos ainda mais sós do que já estamos. No entanto, o próprio talvez se irritasse com minha descrição de seu trabalho principal como de editor. Ele teria dito: “Sou editor? O que é isso? Já me irritei com alguém, que me chamou editor. Também compro a minha comida e cozinho, e não me chamam cozinheiro”.

Vítor Silva Tavares colaborou em diversos jornais de Portugal, foi diretor da editora Ulisseia e, em 1967, fundou o encarte &etc, dedicado à literatura e outras artes no Jornal do Fundão, encarte que se tornaria revista em 1973 e, no ano seguinte, editora. Pela & etc – encarte, revista, editora – passariam alguns dos mais destacados nomes da literatura portuguesa do pós-guerra e do novo milênio, como Mário Cesariny, Herberto Helder, Alberto Pimenta, João César Monteiro, Pedro Oom, Luiz Pacheco, Fiama Hasse Pais Brandão, Adília Lopes e Manuel de Freitas. Trata-se de um catálogo impressionante. E de escritores que não são exatamente conhecidos por fazer concessões ao fácil.

Poucos meses antes de sua morte, Vítor Silva Tavares lançou seu próprio livro Púsias [Lisboa: Editora 50kg, 2015], sobre o qual Hugo Pinto Santos escreveria n’O Público: “Se esta poesia aprendeu alguma lição, na sua rebeldia de não querer a pata dos senhores, foi a da liberdade. Que assimilou por parte de quem menos queria ser mestre: os surrealistas. Esta poesia não tira o chapéu. Porque não é cortês. Por essa ‘grande razão’, não pede licença, nem peca por nenhum ademane. É pura sublevação – ‘Como se alguém arrancasse a cabeça / e a escondesse no bolso das calças’. A única coisa que esta poesia agradece é o salutar trânsito (intestinal) de uma Boa cagada.” [Hugo Pinto Santos, “Porta fora da aula de poesia”, O Público, 13.03.2015].

O artigo cita um dos poemas:

“Que importa pois
a Terceira Mundial
se nós os dois
etecétera e tal?”

Em uma entrevista em vídeo ao programa Arquipélago, Vítor Silva Tavares definiu nestas palavras o trabalho daquele que busca levar aos leitores os livros que respeita: “Enfiar a agulha no palheiro”. Que descrição linda para o trabalho do editor e do crítico nestes tempos de imbecilidades acachapantes. Há toda uma ética e estética aí. Entra para minha lista de guias, como aqueles versos cantados pelos Secos & Molhados: “E no centro da própria engrenagem / Inventa a contra-mola que resiste”, da boca-pena de outro português.

Data

terça-feira 29.09.2015 | 11:23

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