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40 anos do suicídio de Dora Lara Barcelos em Berlim

Hoje é o quadragésimo aniversário do suicídio de Dora Lara Barcelos na Berlim Ocidental, onde se exilara, a 01/06/1976, quando se jogou diante de um trem na estação de Charlottenburg. Uma morte trágica e terrível, meio aos anos trágicos e terríveis daquele momento histórico do Brasil. Ao contrário dos vários homens que lutaram contra o regime militar (1964-1985), seja por meios políticos ou por armas, Dora Barcelos está entre as figuras menos conhecidas da narrativa, como outras mulheres, feito Iara Iavelberg ou Ísis Dias de Oliveira.

Uma pequena retrospectiva: Maria Auxiliadora Lara Barcelos nasceu em Antônio Dias, Minas Gerais, em 1945. Iniciou o curso de Medicina na Universidade Federal de Minas Gerais em 1965, onde passou a integrar o movimento estudantil. Com o recrusdecimento do terror ditatorial do regime, abandonou o curso e mudou-se para o Rio de Janeiro em março de 1969, entrando na clandestinidade e ligando-se à VAR-Palmares. Foi presa com seu marido, Antônio Roberto Espinoza, e o guerrilheiro Chael Charles Schreier, no dia 21 de novembro daquele ano. Brutalmente torturados, Chael Chales Schreier morreria no dia seguinte. Dora Barcelos passaria pelo túnel do horror específico dedicado a mulheres pelos agentes da repressão. Passou dois anos presa, até ser libertada com os 70 presos políticos trocados pelo embaixador da Suíça no Brasil, Giovanni Bucher, em 1971.

Temos imageRetratos de identificaçãons de Dora Barcelos no filme Brazil: A Report on Torture (1971), dos americanos Haskell Wexler e Saul Landau, que estavam no Chile para filmages sobre a situação política do país e ouviram falar sobre a chegada dos brasileiros. Com a queda de Allende em 1973, a brasileira seguiu para a Bélgica e então para a Alemanha Ocidental, fixando residência em Berlim Ocidental, onde pretendia seguir o curso de Medicina. Com dificuldades para assegurar o asilo político na Alemanha, sem passaporte, marcada pela tortura, Dora Barcelos fez sua escolha extrema naquele dia 1º de junho, numa estação de trens. Sua vida é retratada no documentário recente Retratos de Identificação (2016), de Anita Leandro, baseado em documentos secretos do regime militar e em depoimentos de companheiros.

A história de Dora Lara Barcelos me marcou por sua ligação com Berlim. Tinha o plano de escrever sobre este aniversário de morte muito antes do Brasil mergulhar na crise política extrema em que se encontra. Podemos ter opiniões conflituosas sobre a luta armada contra a ditadura. Pessoalmente, tenho uma ideia clara sobre sua eficiência. No entanto, pensar na vida e morte de pessoas como Dora Lara Barcelos, não permitir que caiam no esquecimento completo do Brasil sempre voltado para um futuro que não chega, é lembrar-nos sempre do terror em que nosso país afunda periodicamente, quando os direitos constitucionais de seus cidadãos são colocados muito abaixo dos interesses econômicos de uma elite que não conhece limites, especialmente quando se trata de defender a casa-grande.

Este é apenas um grito de “tortura nunca mais”, ainda que saibamos que ela segue sendo prática diária da Polícia Militar no Brasil. Encerro, portanto, com um poema da polonesa Wislawa Szymborska, em tradução de Regina Prybycien.

TORTURAS
Wisława Szymborska

Nada mudou.
O corpo sente dor,
necessita comer, respirar e dormir,
tem a pele tenra e logo abaixo sangue,
tem uma boa reserva de unhas e dentes,
ossos frágeis, juntas alongáveis.
Nas torturas leva-se tudo isso em conta.

Nada mudou.
Treme o corpo como tremia
antes de se fundar Roma e depois de fundada,
no século XX antes e depois de Cristo,
as torturas são como eram, só a terra encolheu
e o que quer que se passe parece ser na porta ao lado.

Nada mudou.
Só chegou mais gente,
e às velhas culpas se juntaram novas,
reais, impostas, momentâneas, inexistentes,
mas o grito com que o corpo responde por elas
foi, é e será o grito da inocência
segundo escala e registro sempiternos.

Nada mudou.
Exceto talvez os modos, as cerimônias, as danças.
O gesto da mão protegendo o rosto,
esse permaneceu o mesmo.
O corpo se enrosca, se debate, se contorce,
cai se lhe falta o chão, encolhe as pernas,
fica roxo, incha, baba e sangra.

Nada mudou.
Além do curso dos rios,
do contorno das costas, matas, desertos e geleiras.
Entre essas paisagens a pequena alma passeia,
estranha a si própria, inatingível,
ora certa, ora incerta da sua existência,
enquanto o corpo é, é, é
e não tem para onde ir.

(in Szymborska, Wislawa. Poemas. São Paulo, Companhia das Letras, 2012. Tradução de Regina Prybycien)

Data

quarta-feira 01.06.2016 | 08:28

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