Autores – Contra a capa https://blogs.dw.com/contraacapa Wed, 03 May 2017 16:25:57 +0000 pt-BR hourly 1 Notas em torno dos poemas reunidos de Hilda Hilst https://blogs.dw.com/contraacapa/notas-em-torno-dos-poemas-reunidos-de-hilda-hilst/ Wed, 26 Apr 2017 13:41:05 +0000 http://blogs.dw.com/contraacapa/?p=2387 Pela primeira vez reúne-se no Brasil em um único volume toda a obra poética de Hilda Hilst, Da Poesia (São Paulo: Companhia das Letras, 2017). Traz todos os volumes publicados pela escritora paulista, incluindo os três primeiros que ela havia rejeitado quando reuniu pela primeira vez sua produção poética no volume Poesia (1959-1967). O livro de estreia foi Presságio (1950), quando tinha vinte anos e ainda cursava Direito no Largo de São Francisco em São Paulo. Ao concluir o curso em 1952, havia lançado já o segundo livro, Balada de Alzira (1951), seguido então de Balada do festival (1955). Costumo ter a opinião que a vontade do autor deveria ser respeitada nestes casos. Ao mesmo tempo, vale lembrar que os primeiros livros de Hilda Hilst chamaram a atenção de um crítico como Sergio Buarque de Holanda, assim como de poetas mais velhos e já consagrados à época, como Jorge de Lima e Cecília Meireles, autora que também rejeitaria os três primeiros livros ao reunir sua produção poética. O marco oficial, para Hilda Hilst, começaria com o livro Roteiro do silêncio, de 1959. É importante lembrarmo-nos do que ocorria nos debates literários daquele momento. O Brasil passava pelas turbulências dos manifestos e contra-manifestos das neovanguardas, da Poesia Concreta à Poesia-Práxis, do Neoconcretismo ao Poema Processo. Era ainda, no campo político-cultural, o tempo do salto adiante, do desenvolvimentismo de Juscelino Kubitschek, da construção de Brasília e da estética minimalista que vinha sendo consagrada pela Bienal de São Paulo. A música era a Bossa Nova de João Gilberto e Tom Jobim, o mestre da pintura era Alfredo Volpi e os jovens que se faziam famosos estavam voltados a uma estética de caráter construtivista. Neste ambiente, não é de se admirar que poetas de dicção lírica (e vista como classicizante) acabariam à margem, o caso de outros autores do período como o pernambucano Carlos Pena Filho e a capixaba Marly de Oliveira. E quem à época lia Manoel de Barros, mais tarde o autor popular que foi?

Entre o livro de 1959 e a eclosão de seu trabalho em prosa em 1970, Hilda Hilst lançaria ainda as coletâneas de poemas Trovas de muito amor para um amado senhor, Ode Fragmentária, Sete cantos do poeta para o anjo (que recebeu o Prêmio PEN Clube de São Paulo), todos reunidos no volume de 1967. A partir de 1970, começa a alternar obras tão deslumbrantes quanto perturbadoras na prosa e na poesia e no teatro. Os próximos 25 anos seriam os seus mais fecundos, exilada por decisão própria na Casa do Sol em Campinas, e lançando artefatos raros como as novelas contidas em Qadós (1973) e os poemas de Júbilo, memória, noviciado da paixão (1974), reunindo sua obra poética de vinte anos mais uma vez em Poesia (1959/1979), e entrando então na década de 1980 com aquelas pequenas joias que são a coletânea Da Morte. Odes Mínimas (1980) e o romance A obscena senhora D (1982). Este último foi traduzido há poucos anos nos Estados Unidos e angariou um pequeno grupo de cultuadores em torno de seu nome, como já discuti aqui [“A recepção de Hilda Hilst em língua inglesa”, Contra a capa, DW Brasil, 12.09.2014].

No entanto, até meados da década de 1990 sua obra seguia envolta num quase completo silêncio. Apenas com sua guinada pornográfica é que alguma atenção, pouca, foi dedicada a seu trabalho. Só ao fim do século é que chega uma homenagem justa como ter dedicado a sua obra um dos volumes prestigiosos da série Cadernos de Literatura Brasileira do Instituto Moreira Salles. Por estes anos já havia praticamente abandonado a literatura, não sem antes dar-nos os poemas de Cantares do Sem Nome e de Partidas (1995) e encerrar o romance Estar Sendo. Ter Sido (1996) com um dos poemas mais poderosos da década de 1990, “Mula de Deus”.

Tudo isso é conhecido. Foi bonito ver Hilda Hilst receber seu culto devido (dai a Hilda o que é de Hilst) e vê-la poder colaborar, pessoalmente, com a organização da reedição de sua obra pela Editora Globo, a cargo de Alcir Pécora. Sua obra, portanto, não estava fora de catálogo nos últimos tempos. Estava muitíssimo bem editada. O que este volume único nos traz? Algumas coisas. Seus três primeiros livros, assim como inéditos garimpados por Júlia de Souza nos arquivos da escritora deixados para a Universidade de Campinas. São mais de 20 títulos, com fortuna crítica, posfácio de Victor Heringer, carta de Caio Fernando Abreu para a escritora,  declarações de Lygia Fagundes Telles sobre a amiga e ainda uma entrevista de Hilda Hilst concedida a Vilma Arêas e Berta Waldman, publicada no Jornal do Brasil em 1989. A edição ficou a cargo de Alice Sant’Anna. Poderá chegar como um tijolo na consciência dos leitores mais jovens, assim como ficar de corpo poético inteiro nas estantes daqueles que já a admiram, como é meu caso.

São poucos inéditos, mas alguns são muito bonitos e é interessante imaginar o processo de decisão de Hilda Hilst sobre quais poemas entrariam e quais ficariam de fora. Há ainda entre eles uma imitação hilária que Hilda Hilst faz da poética de Adélia Prado: “devo bater / o osso no prato / e não achar um saco?”, talvez um comentário sardônico ao trabalho da colega que havia conquistado a atenção do público e da crítica já com o primeiro livro, Bagagem, à mesma época em que Hilda Hilst publicava, para o silêncio, uma de suas obras-primas, o lindo Júbilo, memória, noviciado da paixão. Seria interessante pensar em Hilda Hilst e Adélia Prado como contemporâneas, ainda que tenham estreado na literatura nacional em países praticamente estranhos um ao outro: o Brasil da década de 1950 e o da década de 1970. Mas tinham quase a mesma idade, Hilst nasceu em 1930, Prado em 1935.  Desposaram misticismos muito diferentes em sua relação com o cristianismo, seus trabalhos são formalmente distintos – com Hilst voltada à tradição latina clássica de poetas como Caio Valério Catulo enquanto Prado ligava-se ao modernismo de poetas como Carlos Drummond de Andrade, e, no entanto, a poesia lírica de ambas tem o mesmo caráter carnal.

A Companhia das Letras vem lançando a obra completa de alguns poetas neste século. Além das reuniões muito discutidas de Paulo Leminski, Ana Cristina Cesar e Waly Salomão nos últimos anos e um único volume com 23 livros de Carlos Drummond de Andrade, seu catálogo já contava com os poemas reunidos de José Paulo Paes e Mário Faustino. É um time bastante variado, este a que Hilda Hilst agora se une. E, antes de encerrar, não poderia deixar aqui de homenagear Massao Ohno (1936-2010), o corajoso editor independente que manteve o trabalho de Hilda Hilst circulando por tanto tempo, em pequenas tiragens, quando grandes editoras como a Companhia das Letras não demonstravam qualquer interesse por sua obra antes da consagração.

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Em memória de Pedro Nava https://blogs.dw.com/contraacapa/em-memoria-de-pedro-nava/ Mon, 10 Apr 2017 12:52:26 +0000 http://blogs.dw.com/contraacapa/?p=2365

“Baú de Ossos” (1972) é um dos seis volumes da autobiografia de Nava

Com sua obra mais importante no catálogo da Companhia das Letras e relançada há poucos anos, não se pode dizer que Pedro Nava tenha sumido das discussões literárias no Brasil. Mas é possível que muitos leitores mais jovens não o conheçam. Portanto, uma recapitulação: Pedro Nava foi um poeta e prosador brasileiro, nascido em Juiz de Fora, Minas Gerais, em 1903. Chamado de poeta bissexto, é autor de um dos poemas antológicos do modernismo brasileiro, O defunto. Reza a lenda que Pablo Neruda gostava de recitar o poema para amigos.

Mas é por sua obra memorialística que Nava conquistou seu lugar no cânone, com os seis volumes de sua autobiografia: Baú de Ossos (1972), Balão Cativo (1973), Chão-de-Ferro (1976), Beira-Mar (1978), Galo-das-Trevas (1981) e O Círio Perfeito (1983). O sétimo volume, Cera das Almas, permaneceu inacabado e foi publicado postumamente em 2006. A obra é considerada importante não apenas pelas memórias do autor, que conviveu com a fina flor da literatura nacional, mas por tecer um quadro amplo da cultura e sociedade brasileira no século 20.

O escritor cometeu suicídio no dia 13 de maio de 1984. Aqui entramos no tema verdadeiro deste artigo. Trata-se de um dos episódios mais tristes da literatura brasileira. Naquele dia, Pedro Nava teria recebido uma ligação. Ao desligar o telefone, disse à mulher que nunca ouvira “nada tão aviltante”, e saiu de casa com um revólver. Duas horas depois, seu corpo foi encontrado na Praça Paris, no bairro carioca da Glória, onde morava. O autor estaria sendo chantageado por um garoto de programa, mas a imprensa à época abafou o caso. Em uma entrevista à Folha de São Paulo, a romancista Rachel de Queiroz, prima do autor, diria:

Folha de S. Paulo – Por que você não se refere à homossexualidade de seu primo Pedro Nava?

Rachel de Queiroz – Porque foi muito recente sua morte, porque éramos ligadíssimos e porque ele se matou para esconder isso. Então, todos nós respeitamos. Ele se matou para não ser desmascarado por um sujeito que estava fazendo chantagem.

Neste aspecto, respeito a decisão dos amigos, por respeito à vontade aparente do próprio Nava. Por uma espécie de solidariedade de pele própria. No entanto, o silêncio em torno do caso vem geralmente ligado a uma ideia de “defesa de honra” que é indefensável hoje em dia, ainda que levemos em consideração questões geracionais. Um arco histórico triste se entesa entre o tiro desferido contra si mesmo por Raul Pompeia em 1895 e o de Nava em 1984, ambos no Rio de Janeiro.

Ao jornal ‘A Notícia’, e ao Brasil, declaro que sou um homem de honra.”

— Raul Pompeia, bilhete suicida, Rio de Janeiro, 1895.

“Nunca ouvi nada tão aviltante.”

— Pedro Nava, últimas palavras conhecidas antes do suicídio, Rio de Janeiro, 1984.

Há dois anos a carta de Mário de Andrade a Manuel Bandeira, na qual dava indícios claros de sua homossexualidade, foi liberada pela Casa Rui Barbosa após uma decisão judicial. O caso leva agora à liberação dos papéis de Nava segundo artigo de Maurício Meireles [“Casa de Rui Barbosa libera acesso a documentos secretos de Pedro Nava”, Folha de S. Paulo, 09.04.2017]. O caso me levou a comentar nas redes sociais que chegam os dias em que os armários se escancaram, depois de mortos os que se viram obrigados a viver dentro deles. E mencionei as feiíssimas ideias sobre moralidade sexual que amigos de Mário de Andrade e Nava pareciam ter.

Eu me referia às piadas que Oswald de Andrade costumava fazer sobre seu então desafeto Mário de Andrade, como dizer que ele parecia “um Oscar Wilde por detrás”, e à entrevista horrorosa de Carlos Drummond de Andrade em 1984 à pesquisadora Maria Lúcia do Pazo, quando questionado sobre a homossexualidade, na qual disse imbecilidades que prefiro não repetir.

Em resposta a meu comentário, Ruy Lozano lembrou que a entrevista fora dada logo após o suicídio de Nava, e que a reação de Drummond fora de dor, ainda que violenta e equivocada. Ele então postou um artigo de Marcelo Bortoloti no qual o jornalista discute a entrevista de Drummond e seu poema Rapto, do livro Claro Enigma (1951), à luz do suicídio de Nava [“A homossexualidade na vida e na obra de Carlos Drummond de Andrade”, Folha de S. Paulo, 26.07.2015].

O poema parte do mito de Ganimedes, o jovem raptado por um Zeus apaixonado, em forma de águia para levá-lo ao Olimpo. Tal mito receberia leituras diversas ao ser transplantado da cultura grega clássica para a cultura cristã.

Rapto

Carlos Drummond de Andrade

Se uma águia fende os ares e arrebata

esse que é forma pura e que é suspiro

de terrenas delícias combinadas;

e se essa forma pura, degradando-se,

mais perfeita se eleva, pois atinge

a tortura do embate, no arremate

de uma exaustão suavíssima, tributo

com que se paga o voo mais cortante; 

se, por amor de uma ave, ei-la recusa

o pasto natural aberto aos homens,

e pela via hermética e defesa

vai demandando o cândido alimento

que a alma faminta implora até o extremo;

se esses raptos terríveis se repetem

já nos campos e já pelas noturnas

portas de pérola dúbia das boates;

e se há no beijo estéril um soluço

esquivo e refolhado, cinza em núpcias,

e tudo é triste sob o céu flamante

(que o pecado cristão, ora jungido

ao mistério pagão, mais o alanceia),

baixemos nossos olhos ao desígnio

da natureza ambígua e reticente:

ela tece, dobrando-lhe o amargor,

outra forma de amar no acerbo amor.

A primeira vez que ouvi sobre a entrevista de Drummond foi no apartamento do poeta gaúcho Marcus Fabiano Gonçalves no Rio de Janeiro, que me falou dela e também trouxe à baila o poema Rapto. Por ocasião da publicação da carta de Mário de Andrade, ele escreveu:

O tema da revelação da carta de Mário para Bandeira é complexo, pois envolve os limites de subsistência da vontade de duas pessoas ausentes a respeito de cenários que não puderam vislumbrar. E isso sempre foi, para o Direito e para a História, um tema delicadíssimo. Se Manuel Bandeira tivesse destruído a carta que lhe foi confiada sob a exigência do perpétuo sigilo, essa discussão simplesmente não estaria ocorrendo. Mas como na história conjectural a hipotetização dos cenários sempre cede à ventura irreversível dos fatos consumados, eis-nos aqui, celebrando, e até com certo alívio, a comprovação biográfica de um elemento que certamente não pode ser desconsiderado na assim chamada erotologia de Mário de Andrade.” [Marcus Fabiano Gonçalves, “Homossexualidade e anacronia”, Zero Hora, 20.06.2015].

É extremamente perigoso usar um texto literário como defesa ou ataque a uma posição ideológica de qualquer autor. De qualquer forma, afirmo que minha admiração pela poesia de Drummond não se esfriou nem por um centígrado sequer após ouvir sobre sua entrevista. O que senti naquele momento em primeiro lugar, creio, foi espanto, pois talvez sempre tenha imaginado o mineiro como um “aliado” devido a seu anticlericalismo praticamente militante, que sempre pareceu levá-lo a estar do lado “certo” da História em tantos episódios. Sinto portanto solidariedade por homens como Raul Pompeia, Mário de Andrade e Pedro Nava, e também compreensão mesmo por homens como Oswald de Andrade e Carlos Drummond de Andrade em seus momentos decepcionantes em relação a esta questão. Fui obrigado a desenvolver esta compreensão por causa do meu próprio pai.

Quanto à relação conflituosa de Pompeia, Mário e Nava com a própria sexualidade, basta pensar em como o “pecado cristão, ora jungido ao mistério pagão” complicou mesmo a vida de um autor como o alexandrino grego Konstantínos Kaváfis, muito mais aberto sobre sua vida sexual em sua obra, e que no entanto demonstrou agonia de culpa em vários poemas.

Esta, portanto, não é uma conversa sobre literatura, mas sobre política, e ela ainda nos importa e informa. A entrevista de Drummond é tristíssima quando pensamos em sua data, 1984. No ano anterior, Ana Cristina Cesar cometera suicídio no mesmo Rio de Janeiro. O silêncio em torno de sua sexualidade até hoje mostra como certas coisas não mudaram desde os dias de Mário de Andrade. Naquele momento, o número de assassinatos contra homossexuais no Brasil já era algo assustador, como vemos no documentário de Rita Moreira, Temporada de caça (1988), trazendo entrevistas com José Celso Martinez Corrêa e com os poetas Roberto Piva e Néstor Perlongher.

Portanto, a relação da intelectualidade brasileira com a questão continua difícil. Com a liberdade pessoal de homens como Lúcio Cardoso, Roberto Piva, Néstor Perlongher convivia o silêncio em torno de Mário de Andrade, Pedro Nava e Ana Cristina Cesar. Neste aspecto, Marcus Fabiano Gonçalves lembra-nos de algo muito importante, muitas vezes ignorada nesta discussão: as diferenças no Brasil que esta questão suscita quando trazemos à conversa a pluralidade religiosa, étnica e de classe do país. Sobre isso, ele mencionou o documentário Tomba Homem (2008), de Gibi Cardoso, sobre o último travesti da geração de Madame Satã e Cintura Fina:

“É bom lembrar que também temos uma outra tradição homoerótica entre nós: aquela de rua e de franca ascendência africana, calcada sobre a tolerância do candomblé e da umbanda às articulações de gênero não tradicionais. No Rio, por certo não é à toa que a distinta Glória do Dr. Pedro Nava faça fronteira com a sombria Lapa de tantos malandros famosos e anônimos.” – Marcus Fabiano Gonçalves na redes sociais.

Pela memória de Pompeia, Mário de Andrade, Nava, Cesar, Martinez Corrêa e por aqueles que continuam matando-se e sendo mortos no Brasil por sua sexualidade, é urgente que aprendamos a falar sobre isso como adultos.

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A literatura febril de João Gilberto Noll https://blogs.dw.com/contraacapa/a-literatura-febril-de-joao-gilberto-noll/ Wed, 29 Mar 2017 15:22:23 +0000 http://blogs.dw.com/contraacapa/?p=2329 Meu primeiro contato com o trabalho de João Gilberto Noll se deu em 1998. Ainda me lembro bem da situação. Era meu primeiro ano na Universidade de São Paulo e vivia pelas livrarias, sem dinheiro, lendo em pé diante das prateleiras. Esses primeiros anos na capital paulista foram tempos de descobertas constantes de escritores do pós-guerra que ainda não haviam sido canonizados e que circulavam menos pela grande imprensa.

A posição de Noll já era mais estabelecida. Sua estreia com o livro de contos O cego e a dançarina havia, afinal, recebido os prêmios Jabuti, da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) e do Instituto Nacional do Livro. Enquanto outros escritores recebem prêmios sem chegar a um público mais amplo, como eram os casos já naquela época de Hilda Hilst ou Orides Fontela, Noll começava naquele fim de século a ser reconhecido como um dos grandes escritores em atividade na República.

Leitores mais jovens como eu podiam chegar a ele de forma completa no volume dos romances e contos do gaúcho reunidos numa edição imponente de capa dura que a Companhia das Letras havia lançado em 1997. Foi justamente este volume que abri no início de seu primeiro romance, A fúria do corpo, publicado originalmente em 1981. O título havia me atraído. Queria corpo e queria fúria.

“O meu nome não. Vivo nas ruas de um tempo onde dar o nome é fornecer suspeita. A quem? Não me queira ingênuo: nome de ninguém não. Me chame como quiser, fui consagrado a João Evangelista, não que o meu nome seja João, absolutamente, não sei de quando nasci, nada, mas se quiser o meu nome busque na lembrança o que de mais instável lhe ocorrer. O meu nome de hoje poderá não me reconhecer amanhã. Não soldo portanto à minha cara um nome preciso.”

— João Gilberto Noll, início de A fúria do corpo (1981).

O que me prendeu imediatamente àquela escrita foi seu fluxo febril, aquele narrador possesso, a obsessão pelo corpo e suas escuridões. Era fluxo de fala e exatamente o que eu buscava na literatura brasileira naqueles anos, após ter lido os escritores principais e mais celebrados entre nós, famosos justamente por sua elegância, sua secura, sua precisão. Eu queria febre e fome, o que já havia feito de Hilda Hilst uma descoberta desnorteante para mim naquela mesma época. Nos cantos escuros da literatura brasileira, eram textos que não negavam nossas experiências corporais que eu buscava e ia encontrando em trabalhos como A obscena senhora D, de Hilda Hilst; Abra os olhos e diga Ah!, de Roberto Piva; O animal dos motéis, de Márcia Denser; Me segura que eu vou dar um troço, de Waly Salomão; e naquela fúria do corpo do narrador de Noll.

Essa obsessão pelo corpo se dava em personagens e histórias que circulavam pelas noites escuras e às margens do país oficial, mas não era inicialmente um interesse pelo submundo e pelos inferninhos o que me havia atraído. Talvez hoje possamos dizer, na verdade, que a recusa a abstrair o corpo e suas escuridões é o que lança essas personagens às margens. Sabemos o que faz o Brasil cristão-carnavalesco com aqueles que se despem nas horas não estipuladas pelo calendário de feriados. Ou que se despem com desejo perante corpos que algum livro sagrado tenha pregado não serem naturais para corpos pelados juntos. Vivemos num país que busca controlar nossos orifícios e secreções. Era também por essas épocas que começava a perceber como essa escrita do corpo parecia ser mais frequente em escritores homossexuais, em mulheres, em negros. Mas o porquê de o corpo parecer por vezes menos abstrato nesses escritores seria assunto para um longo ensaio.

Do livro de estreia de Noll, o conto Alguma coisa urgentemente entraria na antologia de melhores contos brasileiros do século organizada por Italo Moriconi, após ter sido adaptado para o cinema por Murillo Salles ainda na década de 80, no filme Nunca fomos tão felizes (1984). Harmada seria filmado por Maurice Capovilla em 2003, e Hotel Atlântico, por Suzana Amaral em 2009. Nestes últimos anos, Noll era um escritor consagrado, ainda que a sexualidade escancarada de alguns de seus trabalhos ainda causasse desconforto para a crítica. Isso seria assunto para outra longa discussão: a abstração da sexualidade em autores como Mário de Andrade por parte de certa crítica, e como a explicitação política dessa sexualidade em um autor como Lúcio Cardoso condiciona a recepção de sua obra. Na literatura do pós-guerra, isso se torna mais complexo ao pensarmos na recepção de autores como Noll e seu conterrâneo e contemporâneo Caio Fernando Abreu, além de vários outros.

Noll nasceu no dia 15 de abril de 1946, na cidade de Porto Alegre, onde morreu esta madrugada. Publicou, além dos livros aqui mencionados, Bandoleiros (1985), Rastros de Verão (1986), O Quieto Animal da Esquina (1991 – traduzido nos Estados Unidos por Adam Morris como Quiet creature on a corner), Harmada (1993), A Céu Aberto (1996), Canoas e Marolas (1999), Mínimos Múltiplos Comuns (2003), Lorde (2004), Acenos e Afagos (2008), Anjo das Ondas (2010) e Solidão Continental (2012), entre outros. A literatura brasileira se tornou hoje um pouco menos febril com a morte do gaúcho. Ficou um pouco mais limpinha, mais sequinha, como querem alguns que seja o tempo todo. Restam-nos as febres do passado e a espera por novas febres futuras.

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Uma pequena homenagem a Derek Walcott https://blogs.dw.com/contraacapa/uma-pequena-homenagem-a-derek-walcott/ Wed, 22 Mar 2017 13:48:41 +0000 http://blogs.dw.com/contraacapa/?p=2319

Edição de “Omeros” em português

No último dia 17 de março, o mundo perdeu Derek Walcott, poeta e dramaturgo santa-lucense, caribenho e das Américas, que se tornou mundialmente conhecido ao receber o Prêmio Nobel de Literatura em 1992. Meu primeiro contato com seu trabalho se deu ainda na década de 1990, quando a TV Cultura exibiu um documentário inglês sobre o autor, filmado na própria ilha de Santa Lúcia. Com 539 quilômetros quadrados e 162 mil habitantes, o pequeno ponto no mapa se tornou independente apenas no fim da década de 1970 e também deu ao mundo Sir Arthur Lewis, Prêmio Nobel de Economia em 1979.

No documentário, ouvíamos Walcott, dono de um estilo claro e ao mesmo tempo exuberante, lendo alguns dos poemas que já o haviam tornado conhecido no mundo anglófono. Ou talvez a exuberância viesse também daquilo que cantava: a própria beleza tropical de sua ilha natal. À época do documentário, Walcott trabalhava em seu trabalho mais conhecido e citado hoje, o longo poema narrativo e épico Omeros (1990), editado no Brasil em 1994 pela Companhia das Letras com tradução de Paulo Vizioli. Ao publicar Omeros, Walcott já havia porém lançado livros admiráveis como Sea Grapes (1976) e Midsummer (1984), sempre dedicado à paisagem viva das espécies que tinham Santa Lúcia por lar, entre humanos, pássaros e plantas.

Mas também suas experiências como poeta pós-colonial no mundo da língua inglesa, que se encontrava em seus últimos anos de poder imperial e colonial pelo planeta. Como inserir-se nessa língua, que se dizia dos colonizadores? Esta tem sido uma pergunta constante nas poesias das Américas, seja em inglês, português, espanhol ou francês. E foi na vida de pescadores simples que Walcott encontrou seu material épico, conectando sua existência nas águas do Caribe à existência dos homens históricos e míticos nas águas do Mediterrâneo.

A um brasileiro, essa sua lealdade ao mar e aseu povo soa por vezes extremamente familiar pelas canções de Dorival Caymmi e pelos romances de Jorge Amado. E mesmo para leitores brasileiros que já experimentaram essa busca por uma independência poética com os modernistas de 1922, é muito bonito ouvir Walcott  defender no documentário a beleza virginal das mangueiras tropicais, tão pouco descritas na poesia, contra a beleza já cantada dos carvalhos europeus. Dos papagaios e não dos rouxinóis. E a força do pescador caribenho Achilles, personagem de sua terra, em relação à força do guerreiro grego Aquiles, personagem de outra terra.

No entanto, como escritor pós-colonial, Walcott cantava a beleza de Santa Lúcia e a força de seu povo sabendo que a grande maioria negra da ilha (85%) havia ali chegado como força de trabalho escrava, sequestrada das margens da África, e era ainda mantida em grande pobreza por uma elite herdeira dos privilégios de um mundo colonial. Foi em meio a essas contradições que Walcott construiu sua obra, sabendo-se poeta santa-lucense e caribenho, em casa na língua inglesa, mas jamais deixando de comunicar-se com as origens históricas, como atesta seu poema A Far Cry From Africa. Poetas importantes do pensamento negro no Brasil vêm lidando com essas questões, como Adão Ventura e Paulo Colina, ainda que suas obras continuem soterradas sob o silêncio da mídia ignorante.

Walcott nasceu em 1930 na capital de Santa Lúcia, a cidade de Castries. Enriqueceu a língua inglesa com os acentos também da língua crioula santa-lucense. Foi um dos gigantes da geração de poetas do pós-guerra, que vamos perdendo aos poucos nesses últimos anos. Restam-nos contemporâneos seus, como o nigeriano Wole Soyinka, o americano John Ashbery, a austríaca Friederike Mayröcker ou o brasileiro Augusto de Campos. Que suas obras sigam nos guiando nestes tempos escuros de recolonização.

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A caminho do sul: nota sobre o livro novo de Veronica Stigger https://blogs.dw.com/contraacapa/a-caminho-do-sul-nota-sobre-o-livro-novo-de-veronica-stigger/ https://blogs.dw.com/contraacapa/a-caminho-do-sul-nota-sobre-o-livro-novo-de-veronica-stigger/#comments Sat, 11 Feb 2017 14:40:26 +0000 http://blogs.dw.com/contraacapa/?p=2273 “If things go south” é uma expressão em inglês para discutir possibilidades perante algum fracasso, fazer o anúncio de um Plano B. “Se as coisas derem errado”, ou literalmente “se as coisas forem para o sul”. Em ‘Sul’ (São Paulo: Editora 34, 2016), o novo livro de Veronica Stigger, as coisas foram para o sul. Em três trabalhos: o texto em prosa “2035”, o texto em diálogos “Mancha” e o texto em versos “O coração dos homens”, o absurdo diário e o pesadelo coletivo em que já vivemos assumem novas possibilidade, ligados por uma coisa que nos une a todos: o sangue logo abaixo da pele, que sai de nossos corpos por vias previstas e imprevistas.

O conto “2035” é uma pequena joia de controle atmosférico na escrita. Com a chegada de funcionários do governo à casa de uma família e o pedido para levar a filha, é aos poucos que vamos entrando em um mundo, ou um tempo, em que nosso desrespeito histórico pela vida humana parece ter chegado a tons celebratórios. Desde o começo do conto algo nos insinua que as coisas deram errado. Muito errado. O medo aparente da família, que parece tentar se proteger dentro de um apartamento como quem ergue barricadas na entrada de uma caverna. O tom calmo mas agourento dos funcionários. As cenas pela rua quando eles partem a caminho de uma festa, mas de quê? Não vou revelar o final aqui. Como em outros textos de Veronica Stigger, eu não sabia se gargalhava ou me escondia embaixo de uma coberta. Achei melhor fazer as duas coisas.

Em “Mancha”, um texto realmente tão hilário quanto perturbador, chamado de peça por sua composição em diálogos, as duas personagens, Carol 1 e Carol 2, discutem a causa de uma mancha ao som também agourento de um chuveiro ligado dentro da casa, enquanto em meio a discussões sobre sangue e maquiagem, parecemos ter entrado em um mundo absurdo apenas se nos esquecermos de conversas que nós mesmos já presenciamos em algum momento de nossas vidas, em alguma esquina do Brasil, como a própria Veronica Stigger já nos mostrou nos tercetos do seu ‘Delírio de Damasco’ (2012), compostos por conversas ouvidas na rua ou em outras circunstâncias: “Coitados dos índios! / Viviam em paz. / Chegaram os seres humanos e mataram todos”).

 

O terceiro texto, “O coração dos homens”, eu conhecia há algum tempo, tendo tido o prazer de ouvir a própria autora o lendo em um evento conjunto. Nele, sai-se de um possível futuro insinuado pelo primeiro texto do livro e volta-se com a autora a um evento do seu passado, ainda na escola, esse local onde aprendemos nossas primeiras brutalidades comunitárias. O poema relata as circunstâncias e a experiência de sua primeira menstruação. Há ainda um outro texto que encerra o livro e pode ser lido como um quarto trabalho, ou a continuação deste terceiro texto em versos, e revela o que seria ou não verdade no relato com tom histórico do poema. Realidade e ficção. Ficção e realidade.

 

Vários críticos apontaram para o caráter distópico do livro, especialmente a partir dos dois primeiros textos. Pensei muito sobre isso. O distópico é sempre um alerta sobre um futuro possível? Uma forma de dizer: “things are going south“, as coisas estão indo pro sul? Meia volta, volver, porque por aí, por onde estamos indo, é o abismo? É interessante que o livro encerre com um texto que se apresenta como realidade e, ao mesmo tempo, como passado. Nós somos, afinal, em grande parte um país distópico. Distopia, em nosso caso, talvez só pudesse realmente ser alertada antes ou no dia 21 de abril de 1500. A partir da manhã de 22 de abril de 1500, já era tarde. A distopia havia chegado. Somos frutos da distopia dos outros. Nós somos o horror dos outros. Nós somos o futuro distópico de muita gente.

 

Quando falamos de tempos passados, é comum que a gente exclame: “Que tempos horríveis aqueles!”. Mas quem hoje em dia duvidaria que o mesmo será dito do nosso tempo em algum futuro? Veronica Stigger nos mostra como as coisas podem piorar. Como a nossa violência congênita pode ainda passar de ser tolerada a ser celebrada. Violência congênita porque em violência nasceu nossa cultura, e narrativa celebratória nenhuma sobre o encontro de três raças poderá apagar o que uma das raças fez e faz às duas outras. O sangue que perpassa os textos de Veronica Stigger é o sangue embebido na terra e na cultura oficialesca brasileira. É estranho ler a ficção distópica de Veronica Stigger nestes nossos dias de ficção-realidade distópica. Quem acreditaria nas notícias oficiais destas duas últimas semanas, há um par de anos, se nos tivessem dito tudo o que viria a acontecer no Brasil, nos Estados Unidos, na Europa, e assim por diante, em 2016, o ano de publicação deste ‘Sul’ da autora gaúcha, ou nestas primeiras semanas do esperado ano novo?

 

A veia satírica da literatura brasileira é algo que corre paralelo aos discursos oficiais, religiosos e governamentais, e precisamos muito dela. Agora mais do que nunca? Hoje e sempre. Sempre gostei de imaginar a boca infernal de Gregório de Matos sussurrando impropérios enquanto o Padre Antônio Vieira pregava seus (magistrais) sermões. Precisamos muito dessas bocarras. E vieram Bernardo Guimarães, Sapateiro Silva, Luiz Gama, Lima Barreto. Não conheço bem esta tradição subterrânea da sátira no sul, mas gosto de pensar como a eles se une agora esta mulher do Rio Grande do Sul, Veronica Stigger (assim como sua conterrânea Angélica Freitas), sussurrando seus imporpérios em meio aos sermões celebratórios de outros. A nós que estamos a caminho do sul.

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Quem nós lemos? https://blogs.dw.com/contraacapa/quem-nos-lemos/ https://blogs.dw.com/contraacapa/quem-nos-lemos/#comments Wed, 18 Jan 2017 14:23:10 +0000 http://blogs.dw.com/contraacapa/?p=2253 Há uma lista dos lançamentos editoriais de 2017 circulando pela rede, organizada por Daniel Dago, que faz um trabalho muito bom neste campo de divulgação, não apenas da literatura holandesa, da qual traduz, mas de todos os lançamentos que circulam, entre grandes e pequenas editoras. A ‘Gazeta do Povo’ republicou a lista, que tem 427 títulos previstos para este ano [“De Elena Ferrante a Bob Dylan: veja 427 livros que devem sair no Brasil em 2017”, Gazeta do Povo, 17.01.17]. É uma lista impressionante, grandes autores devem chegar ou voltar ao país. Há, por exemplo, o relançamento de autores brasileiros como Mário Palmério e Campos de Carvalho. A chegada da poesia reunida de Hilda Hilst. Livro de Alice Munro, a ganhadora do Prêmio Nobel em 2013. A correspondência entre os japoneses Yukio Mishima e Yasunari Kawabata, ganhador do Nobel em 1968. Há russos menos conhecidos sendo também traduzidos, como Alexander Afanássiev e Ievguêni Zamiátin.

BRICS.svg

É tudo muito bom. Mas não consigo deixar de notar uma coisa: entre as traduções, é possível contar nos dedos os autores que não são norte-americanos ou europeus. Mesmo o número de hispano-americanos é bastante pequeno. Não é um ataque, nem tentativa de estragar a festa. Eu mesmo falo apenas línguas impostas por colonizadores e estou trabalhando na tradução de um livro alemão. Mas é um círculo vicioso. Como podemos reclamar que os do Norte não leem brasileiros ou hispano-americanos, se nós mesmos damos atenção apenas a norte-americanos e europeus? Não pude, por exemplo, identificar um único autor de língua árabe. E não estamos falando de uma língua minoritária. É a língua materna de meio bilhão de pessoas, e usada de forma litúrgica por quase 2 bilhões. É uma das seis línguas oficiais nas reuniões da Organização das Nações Unidas. Para o mercado editorial brasileiro, parece não existir. Ou será apenas uma questão de oferta e demanda? Mas onde começa o círculo? Não há a demanda, portanto não há a oferta? A literatura em geral funciona dessa forma? Qual é o papel do jornalismo cultural, do mercado editorial, da crítica e da tradução nisso tudo?

É possível que seja a dificuldade da tradução. Há menos tradutores do árabe do que tradutores do inglês. Mas mesmo os grandes autores árabes francófonos parecem distantes das nossas conversas. Precisamos então encarar o fato de que há simplesmente menos interesse de nossa parte por literaturas, culturas e línguas que não sejam as da América do Norte e da Europa. Se este é o fato, como vamos reclamar que o o público do norte apenas leia os seus autores, se nós mesmos apenas lemos norte-americanos e europeus? E esse desinteresse parece ser identificável em todas as camadas da República. Dos leitores àqueles que deveriam estar à frente da cultura na posição geopolítica do país. Pensem nisso: desde 2009, quando houve a primeira reunião oficial do BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China), com Luiz Inácio Lula da Silva, Dimitri Medvedev, Manmohan Singh e Hu Jintao em Yekaterimburgo, na Rússia, e desde a chegada da África do Sul, formando o BRICS, quais esforços foram feitos para uma maior aproximação cultural entre os países? Estamos falando de cinco das maiores nações do mundo, com laços diplomáticos de união. Algum encontro de escritores dos cinco países? Uma antologia dos poetas modernos, de cada país, lançado em cada um dos outros? Não que eu saiba. Enquanto isso, os Estados Unidos continuam sabendo muito bem qual é a importância de sua língua oficial, de sua literatura, e de sua cultura em geral para a manutenção de seus interesses econômicos e geopolíticos. Nós que o digamos. Não paramos de lê-los.

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Algumas reuniões de palavras que me marcaram em 2016 https://blogs.dw.com/contraacapa/algumas-reunioes-de-palavras-que-me-marcaram-em-2016/ https://blogs.dw.com/contraacapa/algumas-reunioes-de-palavras-que-me-marcaram-em-2016/#comments Tue, 27 Dec 2016 16:48:53 +0000 http://blogs.dw.com/contraacapa/?p=2217 Esta não é uma lista de melhores, porque é impossível para mim, aqui em Berlim, ter a pretensão de acompanhar tudo o que se produz com a língua oficial no país assim que os trabalhos são lançados. Posso acompanhar melhor a poesia, mas os trabalhos em prosa em geral são lidos mais tarde. Esta é portanto apenas uma lista muito pessoal de algumas obras de arte com palavras que me marcaram neste ano difícil.

PROSA: Vou começar com um romance, porque será o único que vou mencionar: O amor dos homens avulsos (São Paulo: Companhia das Letras, 2016), de Victor Heringer. Venho acompanhando o trabalho do carioca desde que surgiu, e já escrevi sobre sua prosa aqui após a publicação do premiado Glória (Rio de Janeiro: 7Letras, 2012). Seu segundo romance foi bastante discutido, e estou trabalhando numa pequena resenha. Adianto aqui algumas questões: O interesse parece ter se concentrado principalmente na questão da sexualidade da personagem principal, mas há aspectos do romance que parecem ter ficado algo à margem da discussão, quando o autor tece, com inteligência, uma rede de violências que passa por questões étnicas, religiosas e sexuais, ambientando essa rede de destruições individuais e coletivas num período bastante específico, o da ditadura civil-militar. Quais são os nós que ligam estes fios em teia? Há algo sutil e engenhoso nessa tessitura de violências, uma rede de brutalidade que talvez ainda leve algum tempo para desentranharmos em todas as suas possíveis implicações. O romance merece ainda bastante trabalho crítico de nossa parte.

Prosa lançada há pouco e que espero ler em breve (quando conseguir um exemplar em Berlim): Machado, de Silviano Santiago; Como se estivéssemos em palimpsesto de putas, de Elvira Vigna; O marechal de costas, de José Luiz Passos; Sul, de Veronica Stigger.

Reuben da Rocha

Fascículo 6 do poema-gibi sci-fi de Reuben da Rocha

POESIA: Logo no começo do ano, Adelaide Ivánova publicou O martelo (Lisboa: Douda Correria, 2016). Por ter saído apenas em Portugal, foi menos discutido no Brasil do que merecia. É um livro importante para a produção contemporânea, lidando com a violência de gênero de forma potente entre nós, distinta da veia mais satírica de Angélica Freitas, por exemplo. O anúncio de que o livro será lançado no Rio de Janeiro pela Editora Garupa em janeiro de 2017 é uma notícia bem-vinda. Reuben da Rocha passou o ano lançando vários volumes de seu poema-gibi sci-fi em seis fascículos Siga os sinais na brasa longa do haxixe, ligando-o à tradução dos experimentadores não apenas da escrita, mas também da poesia visual em seus aspectos de grafia, diagramação, publicação e distribuição. É uma linhagem que liga o Qorpo-Santo de Ensiqlopèdia ou seis meses de uma enfermidade (1877) um século depois a uma revista como Navilouca (1974), assim como Valêncio Xavier em O Mez da Grippe (1981), Glauco Mattoso em Jornal Dobrabil (1981) ou Sebastião Nunes em Antologia Mamaluca (1988). Outra coletânea de poemas extremamente bonita lançada este ano foi Seiva veneno ou fruto, de Júlia de Carvalho Hansen. Eu o chamei de “milagrinho discreto” em um texto neste espaço, dedicado também à editora que o publicou. Esta mesma editora está ligada a um belo acontecimento do ano que parece estar sendo/ter sido a redescoberta, por um público mais amplo, do trabalho de Leonardo Fróes, um dos grandes poetas vivos do Brasil, neste ano em que perdemos alguns excelentes poetas. Recomendo também o novo livro de Luca Argel, Uma pequena festa por uma eternidade, e que acompanhem o projeto inovador da Azougue com sua Coleção Postal, que já lançou antologias de poetas como Torquato Neto, Roberto Piva, Glauco Mattoso, Guilherme Zarvos e Josely Vianna Baptista.

Poesia lançada há pouco e que espero ler em breve: dois dos mais importantes poetas da década de 1990 lançaram livros novos nos últimos meses, e livros deles são sempre acontecimentos. Ricardo Aleixo lançou, de forma independente, seu Impossível como nunca ter tido um rosto. E Carlito Azevedo lançou, sete anos após seu Monodrama, o esperado O livro das postagens, pela Editora 7Letras.

CANÇÕES: este ano pude ouvir com calma duas bandas brasileiras que me parecem realmente excelentes, a Metá Metá e a Bixiga 70. Acompanhei de longe o trabalho de Ava Rocha e tive a honra de fazer parte, com um texto, do álbum de Sandra X. Mas dois trabalhos lançados especificamente este ano merecem um destaque. Um deles é o excelente álbum de Negro Leo, Água Batizada. É um trabalho impressionante. E, por fim, talvez nada descreva e sirva de antídoto melhor a 2016 do que o álbum de Elza Soares, A mulher do fim do mundo. A canção que dá título ao álbum e especialmente a canção Luz vermelha deveriam ser elencadas entre os grandes poemas do ano. Não consigo tirar da caebça estas palavras: “Telhado agora é porão tira de cima de mim esse pedaço de pedra / Me dá um abraço que o chão se abriu debaixo de nós e até o coxo tropeça / Bem que o palhaço falou que o laço vai se fechar e o laço sempre se fecha / Bem que o anão me contou que o mundo vai terminar num poço cheio de merda.”

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O que fazem as mulheres aos domingos? Quatro poetas contemporâneas da língua alemã e da portuguesa https://blogs.dw.com/contraacapa/o-que-fazem-as-mulheres-aos-domingos-quatro-poetas-contemporaneas-da-lingua-alema-e-da-portuguesa/ Sun, 30 Oct 2016 14:40:13 +0000 http://blogs.dw.com/contraacapa/?p=2141 Domingo em Berlim. No café onde estou, uma criança grita com o pai e o chama por um palavrão. As mães ao redor tapam os ouvidos das outras crianças. No Rio de Janeiro, imagino que homens e mulheres se encaminhem dentro em pouco para as urnas, onde é possível que amanhã um pastor da Igreja Universal do Reino de Deus se torne prefeito, representante de uma ala da sociedade brasileira que é inimiga confessa de quem quer que se desvie das normas do patriarcado brasileiro. Pensei neste poema da excelente autora contemporânea alemã Monika Rinck, “O que fazem as mulheres aos domingos?”, que traduzi há alguns anos. Ontem vi uma leitura em Berlim, em que as brasileiras Érica Zíngano e Luísa Nóbrega me emocionaram até o caroço. Ofereço esta tradução às grandes autoras das minhas duas terras, a natal e a eletiva, intercalando aqui outros textos de autoras germânicas contemporâneas e de suas contemporâneas lusófonas. A escolha é pessoal, mas transferível.


Quatro poetas contemporâneas da língua alemã e quatro da portuguesa

MONIKA RINCK (Alemanha, 1969)
“O que fazem as mulheres aos domingos?”

a propósito, comecei a desejar maldades.
isso não mais te atinge, mas a mim atinge.
sou atravessada por idades diferentes.
nada me incomoda em qualquer delas.
por isso vejo tudo como é. contornos.
derramada por dentro, encharcada de mel,
veneno, ira, molhada de devoção. ninguém
entende. só as mulheres. elas são boas.
as mulheres são até muito boas. as mulheres
são também muito lindas. elas têm belas almas.
as mulheres usam lindos sapatos. as mulheres
hão sempre de falar comigo. as mulheres ficam
mesmo quando deixam o país. as mulheres aí
estão. sinto nas mulheres um crescente preparo
para a violência. as mulheres se engrandecem
e cruzam as fronteiras. postamos fotos de
nossas bucetas. torna-se indiferente. o que se
toma, o que se dá. não se conforma. escrever.
enviar. continuar. gritar. ser incompreensível. no
cabo fisterra da empatia. estamos ao fim de tudo.
entrementes os sonhos ganham em realismo.
pois os restos dos dias perpetuam-se. impõem-se
para sempre, mesmo quando os conteúdos mudam.
em um sonho você estava em berlim, numa tenda,
em bancadas de cervejaria, ali esmurrei seu peito,
você tombou, chutei então sua maleta, repetidas
vezes, com assombroso ânimo. aí você disse, deixe
disso, não estou aqui por sua causa. do outro
lado da bancada estavam tico e teco, dizendo: é.
ele não está aqui por sua causa. agora comporte-se,
e no sonho tive tanta pena de minha ira tão linda.
você porém era mais jovem e parecia o josé batista.
no sonho de ontem os morenos tornaram-se ruivos
e bochechudos, penugem de cobre e detrás as veias
avermelhadas, mas eram e permaneceram morenos.
aplauso desamparado. na platéia desencadeia-se
o despair, o eu-espéculo a pontapés, algo ainda
gritado e assinalado o tremor de sexo. tudo em
golpes das mãos. carregar como broches as
feridas. fazemos buracos onde nenhum havia
e aí queremos enfiar as picas. tudo é autenticado,
os estenógrafos carregam algibeiras, nas quais pode-se
prender algo, desde que o tenha. mais tarde cai o confete
e a relva artificial. então vamos para casa e nos sentamos
à janela, como se ainda houvesse o romantismo. e tudo
isso num único domingo. é o que fazem as mulheres.
sim, você pode ver a minha. agora é a TUA VEZ!!!!

(tradução de Ricardo Domeneck)
:

“Was machen die Frauen am Sonntag?”
Monika Rinck

übrigens, ich habe begonnen, schlimmes zu wollen.
das trifft dich nicht mehr. aber mich trifft es.
ich werde von unterschiedlichen altern durchquert.
in keinem davon macht mir irgendwas etwas aus.
daher sehe ich alles genau so, wie es ist. konturen.
innerlich ausgegossen, vollgesogen mit gift, mit honig,
mit zorn und vor ergebenheit fickrig. keiner versteht.
nur die frauen verstehen. die frauen sind gut.
die frauen sind sogar sehr gut. die frauen sind
auch sehr schön. die frauen haben schöne seelen.
die frauen tragen schöne schuhe. die frauen
werden immer mit mir sprechen. die frauen bleiben,
wenn sie auch das land verlassen. die frauen sind da.
ich spüre bei den frauen eine wachsende bereitschaft
zur gewalt. die frauen vergrössern sich endlos und gehen
darüber hinaus. wir posten fotos von unseren fotzen.
es wird egal. was wird genommen, was gegeben.
es entspricht sich nicht. schreiben. schicken.
weitermachen. schreien. nicht verständlich sein.
am cap finisterre der empathie. wir sind am end.
indes gewinnen aber die träume an realismus.
denn die tagesreste perpetuieren. sie setzen sich
fortwährend durch, wenn auch die inhalte wechseln.
in einem traum warst du in berlin, da stand ein zelt,
da warn bierbänke, da had ich dir vor die brust gehaun,
du bist gefallen, dann hab deine tasche getreten,
mehrfach, mi entsetzlicher verve. da sagtest du, hör auf,
ich bin doch gar nicht wegen dir hier. da waren dann
auf der andern seite der bierbank nicker und abnicker,
die sagten, genau. er ist nicht wegen dir hier. jetzt lass das,
und ich fands im traum so schad um meinen schönen zorn.
du aber warst jünger und sahst aus wie josef der täufer.
gestern im traum die scharzhaarigen hatten rote haare
und hohe wangen, überall war kupferflaum, dahinter adern
angerötet, aber sie waren und blieben doch schwarzhaarig.
hilfloser applaus. im publikum wird jetzt despair ausgelöst,
das ichbild mit füssen getreten, dazu irgendetwas gerufen
und sexuelles zucken markiert. das ganze sehr handgreiflich.
die wunden trägt man als broschen. wir machen löcher,
wo keine waren, und wollen da mit unsern schwänzen rein.
das alles wir bezeugt, die stenographen tragen halter,
an denen man was befestigen könnt, so man etwas hätte.
später fällt konfetti und kunstrasen. dann gehn wir nach haus
und sitzen am fenster, als gäb es die romantik noch.
und das alles an einem einzigen sonntag. das machen
die frauen. ja, kannst du mal sehen. UND JETZT DU!!!!

§

 

ANA PAULA TAVARES (Angola, 1952)

 

“As coisas delicadas tratam-se com cuidado”

Desossaste-me
cuidadosamente
inscrevendo-me
no teu universo
como uma ferida
uma prótese perfeita
conduziste todas as minhas veias
para que desaguassem
nas tuas
sem remédio
meio pulmão respira em ti
e outro, que me lembre
mal existe

Hoje levantei-me cedo
pintei de tacula e água fria
o corpo aceso
não bato a manteiga
não ponho o cinto
Vou
para o sul saltar o cercado
 

SWANTJE LICHTENSTEIN (Alemanha, 1970)

 

A parede assoberba o palco,
beijos penetram em salitre
e eflorescências enegrecem
dos lábios as mordidas.

Pedras adiam a cada dois dentes
atravessados por sustos e medos
a vista das fendas sussurráveis,
penetram a lama e o temporal.

Frases trementes piscam no cimento,
isópodes vencem guerras couraçadas,
no subterrâneo, sós, carros de compra
e sobre os lagos artificiais os caiaques.

Bigatos oviformes em metamorfose
entre os anões de jardim a massagem
e romances de autocomeçomeiofim,
faltam dedos de zumbi para coçar-se.

Medidas ocultas, alôs e mensagens,
forças centrifugais e ritmos à venda
acariciam cardiocapuzes quebrados,
deslocam carburadores aos amantes.

Muram bocas ao estender-se as mãos,
encharcadas de suor as fotos paralelas,
ponderando lisas e delicadas brincam
de úteros felizes e viúvas de comédia.

Depois engancham listas de compra,
encastelam-se detrás de suas portas
e tudo derrubam por fim ao começo
para que sua timidez desperdice tudo.

(tradução de Ricardo Domeneck)

:

Die Wand läuft über die Bühne
Küsse dringen in Salpeter
und Ausblühungen schwärzen
der Lippen spitze Bisse

Steine verschieben je zwei Zähne
durch Furchen und Ängste hindurch
Sicht auf den durchflüsterbaren Riss
Leim und Schlagregen dringt hinein

Zitternde Phrasen blinken in Zement
Asseln überleben gepanzerte Kriege
im Untergrund stehen Einkaufswagen
und Paddelboote in künstlichen Seen.

Wenden eierförmige Fliegenlarven
zwischen umkämpften Platzhirschen
und automatisierten Linearromanen
es fehlen Zombiefinger putzabkratzend

Versteckte Maßnahmen, Grußbotschaften
Zentrifugalkräfte und Rhythmusgeschäfte
tätscheln die Kapuzenherzen kaputt
verrücken Flüstertüten zu den Liebenden

sie mauern Münder zu reichen sich Hände
schweißnass als Simultangebilde ähnlich
glatt und im zarten Erwägen spielen sie
freudvolles Gebären und lustige Witwe

Am nächsten Tag hakten sie Einkaufslisten
ab verschanzten sich hinter den Toren
und rissen alles nieder endlich am Anfang
zu sein schüchtern alles zu verschwenden.

 

 

ANGÉLICA FREITAS (Brasil, 1973)
“sereia a sério”

o cruel era que por mais bela
por mais que os rasgos ostentassem
fidelíssimas genéticas aristocráticas
e as mãos fossem hábeis
no manejo de bordados e frangos assados
e os cabelos atestassem
pentes de tartaruga e grande cuidado

a perplexidade seria sempre
com o rabo da sereia

não quero contar a história
depois de andersen & co.
todos conhecem as agruras
primeiro o desejo impossível
pelo príncipe (boneco em traje de gala)
depois a consciência
de uma macumba poderosa

em troca deixa-se algo
a voz, o hímen elástico
a carteira de sócia do méditerranée

são duros os procedimentos

bípedes femininas se enganam
imputando a saltos altos
a dor mais acertada à altivez
pois
a sereia pisa em facas quando usa os pés

e quem a leva a sério?
melhor seria um final
em que voltasse ao rabo original
e jamais se depilasse

em vez do elefante dançando no cérebro
quando ela encontra o príncipe
e dos 36 dedos
que brotam quando ela estende a mão

  • ODILE KENNEL (Alemanha, 1967)

    “Pensar sálvia e você”

    Eu penso sálvia quando eu
    vejo sálvia penso folhas de veludo
    verde-cinza pareadas opostas ou
    labiadas ou temperadas e amargas
    ou eu penso em nada nem sálvia nem
    planta nem cheiro pois por tanto
    pensar a sálvia se encontra
    à janela se desencontra na mente pois
    ela para mim não existe mas
    existe para si nada sabe de
    seu nome nada sabe de seu
    existir presume-se que nonada sabe.

    Eu penso você quando eu não
    penso sálvia quando não penso que
    os andorinhões cochilam nas altas
    camadas do ar e nós deitadas
    despertas à janela eu penso
    você e o cheiro amargo
    e temperado infiltra-se no seu
    no meu existir de que nada sabe
    e assim origina-se um desequilíbrio
    existencial na luz pós-meridiana
    pois sabemos sabemos muito bem
    que todo tempo é uma xícara a
    despenhar-se aos céus ou óleo etéreo
    ou a maquinaria da solidão, presume-se.

    (tradução de Ricardo Domeneck)

    :

    “Salbei denken und Du”

    Ich denke Salbei wenn ich Salbei
    sehe denke grüngraue samtene
    Blätter paarweise gegenständig oder
    Lippenblütler oder bitter und würzig
    oder ich denke nichts nicht Salbei nicht
    Pflanze nicht Duft weil vor lauter
    Denken der Salbei wohl vorkommt
    am Fenster doch verkommt im Kopf er also
    für mich nicht existiert er aber
    für sich existiert und nicht weiß wie er
    heißt und nichts weiß von seiner
    Existenz vermutlich gar nichts weiß.

    Ich denke Du wenn ich nicht
    Salbei denke nicht denke dass
    die Mauersegler dösen in den höheren
    Schichten der Luft während wir wach
    liegen am Fenster ich denke
    Du während der bittere und
    würzige Duft in deine und meine
    Existenz dringt von der er nichts weiß
    und so entsteht ein existenzielles
    Ungleichgewicht im Nachmittagslicht
    denn wir wissen wir wissen sehr genau
    dass alle Zeit nur eine himmelwärts stürzende
    Tasse ist oder ätherisches Öl oder eine
    Apparatur der Einsamkeit, vermutlich.

 

GOLGONA ANGHEL (Romênia, 1979)

Porque falta meia hora antes de
tomar o comprimido para dormir,
porque mesmo depois de tanto tempo
fazes de mim o filho com síndroma de Down
de Arthur Miller,
porque escrever não é só abrir cabeças
com o bisturi de Lacan,
e porque um poema não é a Isabella Rossellini
a chorar todos os sábados à noite,
nem o casal encontrado abraçado
na paralisia bucal do Vesúvio.
Porque a poesia não é a ponte Mirabeau
num cartaz de néon de adolescência,
porque hoje, quando ligaste,
era apenas porque te tinhas enganado no número,
porque estou cansado, voilá,
e não consigo evitar a noite,
penso agora em ti, Juliana,
heroína no sentido naturalista do termo,
penso sobretudo no teu arzinho
de provocação e de ataque.

Podias ter sido a Maria Eduarda
do cinema norte-americano,
a rapariga que ajudou a pôr fim à guerra no Vietname,
a Frida Kahlo e o Kofi Annan,
a estátua de Notre Dame.

O teu sentido reformista,
o teu olhar de Eça socialista,
cá está,
tinhas cabeça para embaixadora da boa vontade,
pés para andar nos corredores da ONU,
o feitio da botina, a mania, a despesa.

Mas continuas a dormir no teu cacifo húmido,
de cara para a parede
enquanto 20 repúblicas foram perpetuando
campanhas eleitorais e golpes de estado
nos jornais com os quais limpas os vidros da cozinha.

Coitada, coitadinha, coitadíssima,
permaneces na sala, um pouco pálida e fraca,
mas restituída aos deveres domésticos
e aos prazeres da sociedade!

O feitio da botina, a mania, a despesa,
o cheiro a terebintina.
Ó Juliana Couceiro Tavira, per omnia saecula,
chega para cá a garrafa e o cinzeiro;
temos assuntos por tratar e meia hora de critérios.

§
FRIEDERIKE MAYRÖCKER (Áustria, 1924)

Às vezes por quaisquer movimentos acidentais
roça minha mão sua mão o dorso de sua mão
ou meu corpo enfiado em roupas encosta-se quase sem saber
um piscar-de-olhos em seu corpo de roupa
estes minúsculos movimentos quase vegetais
seu olhar de ângulos e suas pupilas de propósito
vagam no vazio
sua pergunta logo de início interrompida aonde você
viaja no verão
o que você está lendo
atravessam-me o peito em cheio
e através da garganta como uma doce faca
e eu resseco por completo como um poço num verão escaldante

 

(tradução de Ricardo Domeneck)

 

:

 

Manchmal bei irgendwelchen zufälligen bewegungen
streift meine Hand deine Hand deinen Handrücken
oder mein Körper der in Kleidern steckt lehnt fast ohne es zu wissen
einen Augenblick gegen deinen Körper in Kleidern
diese kleinsten beinahe pflanzlichen Bewegungen
dein abgewinkelter Blick und dein Auge absichtlich ins Leere
wandernd
deine im Ansatz noch unterbrochene Frage wohin fährst du im Sommer
was liest du gerade
gehen mir mitten durchs Herz
und durch die Kehle hindurch wie ein süszes Messer
und ich trockne aus wie ein Brunnen in einem heiszen Sommer

 

 

ELIANE MARQUES (Brasil, 1970)

 

a mais negra a mais dura
com sua boca de tomates
amarrada até as unhas

que se vistam desse traje
os braços já sem donos
o café cada vez mais negro
o nó da madeira mais pura

que se vistam desse traje
o lombo de oito cavalos
os lenços mais vermelhos
os oito cravos de chumbo

que se vistam desse traje
os cigarros do coveiro
as raízes ontem camélias
as tortilhas as mais tontas

que se vista desse traje
o cocheiro o mais bêbado
o mais negro o mais lúgubre

e bem antes de anoitecer
e bem antes de amanhecer
que se adone a morte de tudo
do mais antigo e negro
do mais negro e chumbo

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Aos holandeses que se esqueceram de suas invasões https://blogs.dw.com/contraacapa/aos-holandeses-que-se-esqueceram-de-suas-invasoes/ Tue, 11 Oct 2016 14:07:03 +0000 http://blogs.dw.com/contraacapa/?p=2115 Frans Post - "Visão do Rio São Francisco com o Fort Maurits e uma capivara" (1639)

Frans Post – “Visão do Rio São Francisco com o Fort Maurits e uma capivara” (1639)

Sempre que converso com holandeses do meio literário, fico ligeiramente chocado e até irritado com o fato tantos desconhecerem a história das invasões holandesas no território do Brasil colonial e sua presença por mais de duas décadas em Pernambuco. No último fim de semana, ao participar do festival literário “Read My World”, em Amsterdã, confirmei essa impressão. Ao abrir minha leitura, brinquei que isso me irritava por ter sido torturado quando criança com aulas de História sobre as Invasões Holandesas (1624-1654), e que o mínimo que a população holandesa de hoje podia fazer era saber que elas aconteceram. Percebi como algumas pessoas ergueram as sobrancelhas e se entreolharam, como quem diz: “Do que ele está falando?”

Vivendo na Europa há tantos anos, um dos meus passatempos favoritos é lembrar os europeus de seu desconfortável passado colonialista, especialmente quando ele retorna, às vezes ainda hoje, com tons  de ufanismo e veleidades civilizatórias. Outra piada minha recorrente nesse fim de semana por lá foi exigir açúcar quando os amigos traziam o café – sempre sem açúcar, já que por causa do adoçantezinho seu país havia invadido o meu.

Mas, piadas à parte, é realmente uma pena que Brasil e Holanda não tenham relações um pouco mais estreitas, tendo seus passados entrelaçados em episódios que, ao menos para nós brasileiros, foram importantes. Mesmo a figura de Maurício de Nassau (1604–1679), personagem marcante em nossa história colonial, frequentemente acaba confundida em conversas com o príncipe holandês Maurício de Orange-Nassau (1567–1625). Talvez seja compreensível, já que o “nosso” Nassau era um príncipe do Sacro Império Romano-Germânico, não holandês, empregado pela Companhia das Índias Ocidentais, que não entrou na história holandesa com a mesma pompa da contraparte oriental. Tampouco foi um prejuízo para eles, que fizeram muito dinheiro nas terras pernambucanas e deixaram algumas marcas com sua Cidade Maurícia no Recife, assim como cicatrizes em Olinda. Pensando bem, porém, quem de nós se lembra de Henrique Dias, um dos líderes negros da Insurreição Pernambucana?

Algo disso talvez seja corrigido com a exposição de desenhos de Frans Post, atualmente no Rijskmuseum de Amsterdã, que visitei no sábado. São desenhos até então esquecidos, 34 ilustrações descobertas por Alexander de Bruin (curador da coleção de imagens do museu), durante o processo de digitalização do acervo. Haverá um simpósio dedicado a Frans Post no dia 22 de novembro, com a presença de Jane Turner, Pedro Corrêa do Lago, Alexander de Bruin, e outros. Mas, ao visitar a exposição, confesso que aquilo que mais me marcou e chamou a atenção foi a coleção de animais da fauna brasileira empalhados pela comitiva de Maurício de Nassau. Há uma sucuri na sala de entrada, e a primeira sala com peças visuais tem como recepcionista uma capivara, congelada em sua caixa de acrílico, diante da famosa pintura de Frans Post Visão do Rio São Francisco com o Fort Maurits e uma capivara (1639). Chamem-me de sentimental, mas fui tomado de tristeza e solidariedade ao ver aquela capivara naquela caixa de acrílico, uma capivara do século 17. Não pude deixar de ficar imaginando o que ela havia visto, que Brasil fora aquele, ela que nadou no Rio São Francisco quando este talvez ainda fosse chamado por muitos de Pirapitinga. Saí da exposição com a frase “violência protegida por acrílico” rodando na cabeça.

Capivara capturada, morta e empalhada pela comitiva artística de Maurício de Nassau

Capivara capturada, morta e empalhada pela comitiva artística de Maurício de Nassau

Quanto à Literatura Brasileira na Holanda, o tradutor e escritor August Willemsen por anos cuidou de sua divulgação, e seu nome hoje é dado a um Instituto, o Stichting August Willemsen, que pretende continuar esse trabalho. Nos dias 21 e 22 de outubro, por exemplo, o instituto promove uma conferência sobre o Grande Sertão: Veredas (1956), de João Guimarães Rosa. A biografia de Clarice Lispector escrita por Benjamin Moser foi traduzida há pouco, e será realizado no dia 28 deste mês um evento no teatro da Stichting Perdu dedicado às traduções recentes para o holandês das crônicas da brasileira, reunidas em A descoberta do mundo (De Ontdekking van de Wereld, Privé-Domein, 2016), com tradução de Harry Lemmens. O evento conta com a presença de Benjamin Moser, Xandra Schutte, Arthur Japin, Lilian Vieira e Nina Polak.

No Brasil, o jovem tradutor Daniel Dago mantém com seu entusiasmo a conversa sobre a literatura holandesa acesa entre nós. Em grande parte, ele a acendeu com sua presença digital recentemente. O autor holandês mais conhecido no Brasil é possivelmente o mesmo que comparece em outros lugares, o poeta e romancista Cees Nooteboom, que teve lançados no país os livros Caminhos para Santiago (Nova Fronteira) e Paraíso Perdido (Companhia das Letras), por exemplo. A editora carioca Rádio Londres vem lançando trabalhos de um autor mais jovem como Arnon Grunberg, que passou recentemente com pompa pelo Brasil, e a Intrínseca lançou Herman Koch.

Um dos autores holandeses mais interessantes que descobri ultimamente, graças a Piet Joostens, foi Jeroen Mettes (1978-2006), que se matou com menos de 30 anos há uma década. Seu trabalho foi reunido no volume N30, um trabalho híbrido de ensaio e poesia do qual pude ler em inglês alguns capítulos. Também ficaria muito feliz em ver o grande Gerard Reve (1923-2006) mais conhecido no nosso país. E sabe o que seria bonito? Ver o romance-ideia de Paulo Leminski, seu Catatau (1975), traduzido para o holandês com suas alucinações de Descartes no Brasil. Só não queria estar na pele do tradutor.

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O nome é Elena Ferrante https://blogs.dw.com/contraacapa/o-nome-e-elena-ferrante/ Wed, 05 Oct 2016 16:57:43 +0000 http://blogs.dw.com/contraacapa/?p=2109 “Porque todo mundo está lendo” nunca me pareceu motivo suficiente para ler um livro. Ao menos, não imediatamente. Se estão lendo é porque foi publicado, então se pode chegar a ele em algum momento. Esse era o caso de Elena Ferrante para mim nestes últimos dois anos. Muitos amigos que respeito estavam fascinados pelo trabalho da autora italiana, que ninguém sabia quem era, e estava sim na minha lista seu romance I giorni dell’abbandono (2002), editado este ano no Brasil como Os dias de abandono pelo selo Biblioteca Azul da Editora Globo, com tradução de Francesca Cricelli. A pilha de livros só aumenta. Ali está o Dictee, de Theresa Hak Kyung Cha, logo ali O amor dos homens avulsos, de Victor Heringer, e a obra completa de W.G. Sebald esperando para ser terminada. Como escreveu o poeta britânico Andrew Marvell, “Had we but world enough and time“ (Houvesse mundo bastante, e tempo).

capa de ferranteMas ler um livro de Elena Ferrante tornou-se prioridade para mim este fim de semana, após a ação nojenta e perturbadora do jornalista italiano Claudio Gatti, tentando revelar a identidade da autora que vem há anos pedindo que se respeite sua privacidade, a partir de documentos pessoais sobre a vida financeira de uma mulher italiana, seja ela ou não Elena Ferrante. O artigo foi publicado simultaneamente em inglês no New York Review of Books, em alemão no Frankfurter Allgemeine Zeitung, em italiano no Il Sole 24 Ore, e em francês na página Mediapart. Não vou mencionar mais que isso, muito menos repetir aqui o nome da cidadã italiana que teve seu vida pessoal devassada por um jornalista (homem) para satisfazer algum desejo pessoal de fama e alimentar nossa cultura de celebridades e papparazzi até mesmo no campo da literatura. Caminhar até uma livraria na segunda-feira e comprar a tradução inglesa de Os dias de abandono foi meu ato pessoal de solidariedade com Elena Ferrante.

O que encontrei então no romance da italiana foi uma prosa ágil, sem rodeios e sem floreios, descrevendo a descida de uma mulher aos infernos de uma separação. É fácil entender por que o livro – e imagino que seja o caso de seus outros romances – tenha se tornado um sucesso. É de uma identificação direta, sem romantismo, de um reconhecimento pessoal nesta história de uma mulher que se desespera, deixa suja a casa, espera por dias um telefonema do marido, então corre arrumar-se a si e à casa quando ele diz que vem, e grita, implora, ameaça.

Eu poderia aqui falar da mulher do “Caso do vestido” de Carlos Drummond de Andrade, ou de canções de Chico Buarque de Holanda como “Cotidiano”, mas aqui há uma perspectiva que me parece realmente diferente do corpo feminino, e compreendo por que tantas leitoras falaram em empoderamento através da leitura. Há, de formas distintas, algo disso na exposição do corpo feminino em sua recusa a esconder seus fluidos em alguns livros em prosa das duas últimas décadas, como I Love Dick (1997), de Chris Kraus, ou O meu amante de domingo (2014), de Alexandra Lucas Coelho. Em poesia, penso no trabalho de Adelaide Ivánova e Carla Diacov no Brasil, ou Adília Lopes, Golgona Anghel e Raquel Nobre Guerra em Portugal.

Mas cada autora e cada autor, quando bons, são universos em si, e  Os dias de abandono é um livro forte, um belo livro de Elena Ferrante, seja ela quem for. A cena da invasão das formigas no apartamento de Olga, a personagem principal, ou a cena em que espanca o cão no parque são memoráveis e devem ficar comigo por algum tempo.

O que nos traz agora de volta ao ato de violência de Claudio Gatti e das publicações que editaram seu artigo. Nos últimos dias, houve consternação, raiva, solidariedade e ataques a todos os envolvidos, inclusive a Elena Ferrante e à mulher que supostamente estaria por trás dos livros. Insinuou-se até revolta que a autora tenha ganhado dinheiro com seu trabalho a ponto de poder comprar apartamentos em Roma. Nosso culto a celebridades tomou conta de tudo.

Não era uma lufada de ar fresco ver esta autora famosa recusando-se a participar dela? Não é direito seu não querer revelar detalhes de sua vida pessoal? Não aqui uma total incompreensão do que é a literatura, do que é sua função, exigir que os detalhes da vida da autora autorizem sua escrita porque esta foi tomada por autobiográfica? A colunista Margarete Stokowski do Spiegel chamou o artigo de Gatti de um ato de violência. Estou plenamente de acordo. No Die Zeit, Iris Radisch vai mais longe, intitulando seu artigo Nein heisst Nein (Não significa Não), chamando o artigo de Gatti de estupro.

O artigo, ainda bastante mal escrito, foi uma amostra de indecência e falta de ética do jornalista e de seus editores, mais preocupados com algumas visitas a mais a suas publicações do que conscientes do respeito necessário aos últimos fiapos de dignidade aos quais nos agarramos neste mundo.

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