Crônicas – Contra a capa https://blogs.dw.com/contraacapa Wed, 03 May 2017 16:25:57 +0000 pt-BR hourly 1 As fronteiras abstratas e reais da Europa https://blogs.dw.com/contraacapa/as-fronteiras-abstratas-e-reais-da-europa/ Fri, 10 Mar 2017 15:41:44 +0000 http://blogs.dw.com/contraacapa/?p=2315 Meus amigos alemães ou europeus em geral, quando começam a conversar sobre a situação dos refugiados e outros imigrantes não-europeus no continente, sempre gostam de dizer como são abstratas as fronteiras. Apenas linhas num mapa, nem sempre seguindo o curso de um rio, ou de um vale, invisíveis geograficamente. Entendia o que queriam dizer e até achava isso bonito. São coisas criadas pelo homem na maior parte dos casos. Seguem desdobramentos históricos que não respeitam línguas, culturas, elos de costumes. Basta pensar, por exemplo, nas tragédias que se desenrolam no Mediterrâneo. Quanto mais leio sobre as culturas às margens daquele mar, mais se torna mais difícil separar em continentes distintos aqueles países salgados. Pela história que conhecemos, o Mediterrâneo serviu muito menos como fronteira do que como ponte para as culturas milenares que ali se desenvolveram. O domínio romano se dá após aprender com os avanços náuticos dos cartagineses. Os gregos se deixam inspirar pelos egípcios. E assim por diante. O Mediterrâneo e suas margens deveriam ser vistos como um continente em si.

Mas não podemos ignorar as fronteiras tal como funcionam hoje. Nos últimos tempos, comecei a perceber que para certos europeus mais jovens é realmente difícil compreender que, apesar de abstratas neste sentido geográfico, fronteiras são reais, obstáculos verdadeiros para a maior parte das pessoas deste mundo. Viajei muito no ano passado, quando a crise migratória se intensificou. Jamais fui obrigado a mostrar tantas vezes meu passaporte ao cruzar fronteiras entre países no continente quanto nesse período. Ônibus parados entre Holanda e Alemanha, e novamente entre esta e a Áustria, ou policiais exigindo os passaportes de todos os passageiros em trens, mesmo entre países que firmaram o Acordo de Schengen. Minha experiência mais estranha foi há duas semanas, quando tentei cruzar o Canal da Mancha de barco, da França à Inglaterra, justamente em Callais. O que antes fora apenas um porto, como outro qualquer, hoje está cercado por inúmeras cercas de arame farpado. É uma cena de calamidades, que remete a um filme distópico como ‘Children of Men’ (2006), de Alfonso Cuarón. Apenas alguns dias antes da minha passagem, a chamada “selva de Callais”, com centenas de refugiados, havia sido forçosamente evacuada pela polícia francesa. Amigos que fazem a viagem com frequência relataram imagens assustadoras desde o início da catástrofe humanitária que vem se desenrolando entre África, Oriente Médio e Europa.

Os amigos europeus na casa dos 20 ou 30 anos, viajando apenas com suas identidades muitas vezes, sem sequer precisar de passaporte, entrando em países de outros continentes, realmente têm dificuldade em compreender como é difícil mover-se no mundo. Nunca precisaram ir ao Departamento de Estrangeiros. Vejam bem, não estou querendo começar uma polêmica entre os leitores desta página em relação à política migratória alemã.  Não queria que esse texto (ou apenas sua chamada) fosse apenas a desculpa para brigas em caixas de comentário. Esse texto gostaria mais de chamar a atenção para nossos conceitos de fronteira, e sugerir que antes que comecemos discussões a respeito, possamos compreender o verdadeiro impacto delas nas vidas das pessoas. Que só comecemos certas conversas quando estamos bem informados ao menos sobre como estas fronteiras foram formadas historicamente. Com nossa cultura de atualizações a cada 5 minutos, vamos perdendo cada vez mais nossa noção e orientação histórica. Mesmo as discussões sobre a crise migratória parecem tratá-la apenas em termos de curto prazo, quer-se apenas esconder o problema, ou jogá-lo no colo de outros. Não se compreende sequer seu motivo. Seus motivos. Não apenas a guerra, mas o fato de que as mudanças climáticas causadas por todos nós já começam a atingir várias regiões do planeta, com secas terríveis nunca antes vistas. E isso, nos próximos anos, só deverá piorar.

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Poeta em turnê com uma banda https://blogs.dw.com/contraacapa/poeta-em-turne-com-uma-banda/ Tue, 28 Feb 2017 13:51:49 +0000 http://blogs.dw.com/contraacapa/?p=2287

Integrantes da banda Lea Porcelain

Escrevo este texto em um micro-ônibus usado pela banda alemã Lea Porcelain em suas turnês. O produtor das batidas Julien Bracht está ao meu lado e, do lado de fora, o vocalista Markus Nikolaus abastece o ônibus em um posto de gasolina ao lado da Funkhaus, onde fica o estúdio da banda. Funkhaus é um complexo de prédios imponente no bairro de Rummelsburg, na antiga Berlim Oriental, onde funcionou por décadas a estação de rádio oficial da República Democrática Alemã (RDA), a antiga Alemanha Oriental.

A sala de concertos que era usada para transmissões ao vivo, para o país todo de então, agora recebe concertos de bandas nacionais e internacionais, e as muitas salas dos vários prédios do complexo funcionam como estúdios para bandas e produtores de música eletrônica. Os gerentes do complexo começam a transformar algumas das salas em apartamentos destinados a artistas. O projeto é que a Funkhaus se torne um conglomerado cultural para Berlim.

Completam o grupo no ônibus o baixista Nicholas Fehr e o baterista Jan Urbiks, que tocam com Lea Porcelain ao vivo, e ainda seu engenheiro de som, o austríaco Moritz Kerschbaumer. Neste ponto do texto, estamos cruzando uma ponte sobre o rio Spree, deixando Berlim em direção a Wiesbaden no estado de Hessen, onde esta noite Lea Porcelain apresenta-se ao vivo. E eu, o que faço no ônibus? Tenho viajado com a banda nesta turnê, abrindo para eles… como poeta. Na semana passada, abri o concerto deles com a performance de um texto em seus concertos em Berlim, Hamburgo, Londres e Paris.

Tenho me valido de minhas colaborações de texto falado e música, compostos com o músico alemão Nelson Bell, também conhecido como Crooked Waves. Há uma tradição para isso. Sabemos das andanças de Allen Ginsberg com Bob Dylan por Paris. O poeta britânico John Cooper Clarke costumava apresentar-se com bandas como Joy Division, Sioux and The Banshees ou Sex Pistols. Poeta e compositora ela mesma, Patti Smith ainda alterna canções e poemas em suas apresentações, e o trabalho de Linton Kwesi Johnson habita os dois mundos. Não estou querendo, de forma alguma, comparar-me a eles, mas me dá segurança saber que estas confusões entre poesia e música pop têm antecedentes entre meus heróis.

Tem sido uma aventura e uma experiência ótima. Uma coisa é apresentar um trabalho de fala e performance para uma plateia esperando uma leitura de poesia. Outra é apresentar-se como atração de abertura para uma plateia esperando um concerto de rock. Mas o resultado tem sido mais do que positivo, com as pessoas mostrando até certa gratidão pela surpresa, por serem tiradas da mesmice, receberem algo que não esperavam. As fronteiras entre as artes estão cada vez mais fluidas, ainda que certos espaços e contexto ainda definam a recepção de um trabalho.

Conheço poetas que apenas apresentam seus trabalhos em galerias e museus, os espertos, e são assim contados (e remunerados) entre os artistas plásticos. Isso é uma discussão interessante: o trabalho de um escritor muda, em si, se é apresentado em um festival de literatura, em um festival de música ou em uma exposição de artes plásticas? Uma coisa muda com certeza em muitos casos: a remuneração.

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Caminhando do Berlim ao Berlimbo https://blogs.dw.com/contraacapa/caminhando-do-berlim-ao-berlimbo/ https://blogs.dw.com/contraacapa/caminhando-do-berlim-ao-berlimbo/#comments Wed, 16 Nov 2016 19:51:09 +0000 http://blogs.dw.com/contraacapa/?p=2167 O autor com uma folha do bordo em sua casa

O autor com uma folha do bordo em sua casa

Berlim são duas cidades. Um espaço geográfico que se divide em dois, que às vezes se anulam, às vezes se superpõem. Talvez sejam apenas dois espaços climáticos. A Terra gira devagar e faz Berlim despencar e o Berlimbo surgir. Ou talvez sejam como aquelas personagens do filme O Feitiço de Áquila (Ladyhawke, 1985), em que os dois apaixonados são condenados por um bispo malvado a se transformarem em lobo e falcão, ele em lobo durante a noite, ela em falcão durante o dia, para que nunca se encontrem. E eu sou o quê? O monge pobretão que os acompanha?

Ninguém se muda para Berlim por causa do Berlimbo. Não, acho que há pessoas que se mudam para Berlim por causa dos dois, mas subestimam o Berlimbo. Ah, todo mundo subestima o Berlimbo. Pergunte a seus amigos que visitaram a cidade na primavera/verão e aos que visitaram a cidade no outono/inverno. Àqueles que a visitaram nas duas temporadas, nas quatro estações. São a mesma cidade? Juro que não são. Mas não se trata apenas da mesma cidade em dois tipos de clima. Pense em Berlim na primavera e no verão! Ah, aquele primeiro dia em que os cafés põem de novo as mesas nas calçadas. Tiritam todos de frio do lado de fora, estão mais encaixotados em suas colchas e lãs e cachecóis do que uma ovelha esperando a tosa, mas lá estão, segurando com luvas as xícaras quentes de café, aproveitando os primeiros raios de sol que driblam as nuvens que foram inquilinas horrorosas por meses a fio no céu de cor-de-chumbo. Os parques lotam. Eventos são programados para o ar livre, ou ameaçam ficar vazios. Ninguém chega ao clube ou à igreja ou ao restaurante na hora, porque estavam perdidos no parque. E isso Berlim tem de sobra. Verde até não querer mais. Só, é claro, na primavera e verão.

Mas agora é já meio de novembro. Pleno outono. Olho pela janela ao escrever esse texto e a árvore do pátio já quase não tem sequer folhas amarelas. É um esqueleto de tronco só. E o que será essa árvore que convive comigo há três anos? É um bordo, um Ahorn (em alemão) ou maple (em inglês). É o último estágio de aprendizado de uma língua em um ambiente tão estrangeiro. Diferenciar o plátano do bordo. A tília da castanheira, e esta do carvalho. Bordo, plátano, tília, castanheira e carvalho são as árvores mais típicas das ruas de Berlim. E a maioria já não tem folhas a esta altura do ano. E não adianta que eu esteja em Berlim há quase 15 anos. Quando olho pela janela da cozinha ou do bonde às cinco da tarde e já está escuro como se fosse alta noite no Brasil, estremeço, me assusto, me recuso a acreditar. Não pode já ser noite às cinco da tarde! São CINCO da TARDE! Mas já é noite às cinco da tarde. São cinco da noite. É outono, arrastamo-nos para o inverno. E o problema não é o frio, mas a escuridão. Céu nublado eterno. Eu me pergunto se as crianças não desenham o céu também cinza, sempre cinza, nos jardins de infância.

Manuscrito de Goethe com folhas da nogueira-do-japão

Manuscrito de Goethe com folhas da nogueira-do-japão

E então começamos a sair mais à noite. Passamos o dia trancafiados, fugindo do frio. Mas ninguém aguenta muito tempo e sai, enche os bares, os clubes. Se acorda muito tarde no dia seguinte, nem vê direito o pouco de sol que escapa pelo filtro em cinza. Nos meus primeiros tempos em Berlim, passava por vezes dias sem uma réstia de luz solar. E aí entrava o Berlimbo. O Berlimbo do escuro. Não entendo por que a cidade jamais rendeu muita literatura noir. Mas, não rendeu mesmo? E aqueles expressionistas berlinenses, como o pintor George Grosz e o poeta Jakob van Hoddis?

Como passar este outono sem cair rápido demais no Berlimbo? Depois de passar duas horas pesquisando sobre as árvores de Berlim para nomear com certeza a que está no pátio do meu prédio, creio que irei visitar as árvores mais famosas da cidade. Como a velha faia na esquina da Sven-Hedin-Straße com Fürstenstraße em Zehlendorf. Ou a tília de 500 anos que se encontra em Alt-Kladow. O carvalho mais velho de Berlim está à entrada de uma casa na Waldstraße, 83, em Pankow. No Gutspark Britz em Neukölln, há a árvore-avenca (ou nogueira-do-japão) mais velha da cidade, a própria espécie é um fóssil vivo que já existia no tempo dos dinossauros. Sobre ela escreveu o velho Goethe, fóssil vivo também ele, e tomo dele uma estrofe do poema sobre a nogueira-do-japão para encerrar este texto sobre o Berlim-Berlimbo:

“Será ele só um ser vivo / Que em si mesmo se divide? / Ou dois que se designam / E nós os vemos indivisos?”(“Ist es Ein lebendig Wesen, / Das sich in sich selbst getrennt? / Sind es zwei, die sich erlesen, / Dass man sie als Eines kennt?”).

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Receita de bolinho de chuva https://blogs.dw.com/contraacapa/receita-de-bolinho-de-chuva/ Mon, 07 Nov 2016 16:05:07 +0000 http://blogs.dw.com/contraacapa/?p=2155 Que vontade de comer o bolinho de chuva que minha vó fazia. Mas faz já muitas temporadas de chuva que minha vó morreu.

9 colheres de farinha de trigo (sem fermento)

“Não sabeis que um pouco de fermento leveda a massa toda?” (1 Coríntios 5:6). Quantos tomos já foram escritos sobre a palavra “saudade” como definidora do caráter lusófono? Saudade, a palavra excepcional. Nós, que perdemos tanta gente no Atlântico, de cada lado. Os invasores. Os comerciantes. Os imigrantes. Os sequestrados. Os escravizados. Os corpos de militantes lançados pelo Regime Militar ao mar. Não é doce morrer no mar, gigante Caymmi. O mar é salgado. E morrer no rio que o digam os bois-de-piranha. Nós todos.

1 ovo

Já li a paronomásia “saudade / saldade”, mas onde? Quem? Era perto do mar, à luz de Ipanema ou Amaralina? Aqui canta Caymmi a relação da saudade e do sal: “A noite que ele não veio foi / Foi de tristeza pra mim / Saveiro voltou sozinho / Triste noite foi pra mim”. A saudade salva a dor. A saudade é um ovo não-galado. Galinha solitária no terreiro, ciscando seus grãos, sem pintos que a rodeiem.

150 ml de leite

Mas eu sou do interior do Brasil, lá onde se fala o dialeto caipira. O mar é longe. Nem lagos nem riachos, coisa de lugar chique, mas terra de açudes e córregos. De vez em quando, chove. As temporadas de chuva, os anúncios de frente fria pelo jornal da televisão. Cid Moreira anunciando o tédio da modorra úmida. Todo mundo corre tirar as colchas e as cobertas do armário, lavar os abrigos. A vó pressente o desassossego dos meninos e meninas, manda comprar mais farinha de trigo na venda da esquina. Vê se o fermento ainda está bom – que, por lá, se chama porroial. De manhã, chega o fazendeiro com o leite, enche a lata da casa. A nata boia, tiramos com a colher. O pai coloca em um copo de requeijão, guarda no congelador para a coalhada e os biscoitos. Tudo se aproveita.

2 colheres de açúcar

Não é “saudade“ que hoje diria definir nossa lusofonia. Prefiro a palavra “vó”, que engloba cedo ou tarde a saudade toda: de gente que já se foi, de um tempo que nunca mais volta. Na vó brasileira resiste o Matriarcado de Pindorama. As velhas caboclas do interior, com aquele ar de Cora Coralina: “Vive dentro de mim / uma cabocla velha / de mau-olhado, / acocorada ao pé / do borralho, / olhando para o fogo.” Os netos estudados têm por vezes vergonha do linguajar da velha, que fala “uzômi” para dizer “os homens”. Não sabem que ali resiste a sintaxe tupi, na qual “homem“ ou “homens“, é “abá”. Plural pra quê? Pecisão? Ora, importa se 1 ou 2, mas não se 2 ou 3? E vai a língua geral brasílica resistindo na sintaxe do dialeto caipira e em palavras esparsas, como “toró”. O Marquês de Pombal ainda não venc1988eu de todo. Na cozinha, não acaba a eterna guerra entre vós e formigas.

1 colher de fermento em pó

E então vem o toró, vós e mães correm salvar as roupas do varal. Na sala, todos de abrigo e coberta a tiracolo. As samambaias verdejam. Os cachorros acocoram-se. A vó diz: “Parem quietos, vão assistir ao Silvio Santos que eu vô fazê bolinho-di-chuva.” Todo mundo grita: “VIVA A VÓ”. Peneira-se então a farinha de trigo, coloca-se o ovo. Aos poucos, o leite. Mexe-se bem, com braço de torcer lençol. Vem o açúcar com formigas e por último o fermento, até ficar homogênea a massa. Lá fora, a homogênea chuva. O óleo pula de quente, frita-se tudo até ficar marrom de terra. Serve muitos meninos e meninas, todos meio úmidos. A vó sorri satisfeita, senta-se na cadeira de balanço, pega o terço. Ela tem seus mortos, nós ainda esperamos os nossos. Logo vem o sol, que sempre vem.

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Nós, os inacabados https://blogs.dw.com/contraacapa/nos-os-inacabados/ Wed, 02 Nov 2016 20:06:23 +0000 http://blogs.dw.com/contraacapa/?p=2147 Lavando o túmulo do meu pai

Lavando o túmulo do meu pai

Dia de Finados no Brasil. Finados. No interior diz-se apenas isso: hoje é finados. Essa palavra fascinou minha cabecinha de poeta-criança a primeira vez que associei, através dela, as ideias de “acabado” e “morto”. O morto: o acabado, encerrado, terminado. O finado: que se finou; pessoa que faleceu; defunto. Em Portugal, chama-se hoje o Dia dos Fiéis Defuntos. Os mortos são sempre fiéis. Leais. Não correm, não fogem. Os mortos ficam. Finar: acabar, findar e findar-se, morrer. Ficar onde se caiu. Cair e não levantar. Penso em meu pai, hoje morto, que sempre dizia de Ulysses Guimarães quando este aparecia na televisão: “Esse aí morreu e esqueceu de deitar.” E por fim o corpo do finado Ulysses Guimarães jamais deitou-se. Fez o grande nado sincronizado. E meu pai está hoje deitado eternamente.

Ouço “finado” e associo o morto ao completo. O morto como pronto. Desvestir-se da carne para completar-se. Talvez aí a verdade do “menos é mais”? Descarnar-se para estar prontinho da silva? Quando só ossos, então sussurrar na cova: “está consumado?” Está finado. Está findo. Não o nosso eterno devir, esse tornar-se que não se acaba, palavrório de afrancesados. Não. Nós não devimos, nós que estamos vivos e sempre vindo e devendo os olhos da cara. Não, não o devindo, mas o findo. O finado. Eu não devenho, eu devo. Devo estes olhos que a terra há de comer quando eu enfim estiver findo e de mim dizerem: o finado Ricardo Domeneck. Ou, no carinho fingido do brasileiro cordial: ah! o saudoso Ricardo Domeneck! Isso digo eu mesmo de mim ao espelho: saudoso! Saudoso você, finado Ricardo!

O Brasil e seus eufemismos. Aprendemos de Portugal. Finados. Fiéis Defuntos. Admiro os mexicanos, que olham a Coisa na cara e dizem o que é, como é: Día de los muertos. Nós preferimos o saudosismo de nossos eufemismos e sentimentalismos, nós lusófonos que cremos ter algum tipo de monopólio sobre o sentimento da “saudade” só porque lhe demos nome. Mas hoje não é dia dos mortos. Minha mãe dizia: “Velório, flor, túmulo enfeitado? Isso é pros vivos… Os mortos lá vão se importar?”. Minha mãe viva, com que não falo há meses, mãe que devém e deve. “A família penhorada agradece!”, dizia meu pai quando um rico da cidade lhe fazia um agrado e mandava para nossa mesa a leitoa leiloada na quermesse. Ela, a leitoa finda, finada leitoa. Todas as finadas leitoas de Bebedouro! A família penhorada agradece!

Não me esqueço de uma história que me contaram amigos sobre sua visita ao Castello Aragonese em Ischia, as fotos do cimiterio delle monache (cemitério das freiras), um putridarium, porão onde os corpos das freiras mortas no convento eram colocados, sentadinhas sobre uma cadeira de rocha, uma espécie de trono com furos para que seus líquidos putrefatos filtrassem, e as freiras vivas passavam horas ali, contemplando suas finadas companheiras. Muitas adoeciam e morriam justamente por passar tanto tempo ali, com as irmãs mortas. Mas para meditar sobre o quê? Sobre a finitude de tudo.

Que feriado triste. Que feriado com cheiro de coisa pagã, e nisso jaz (oh! “jaz!”) meu interesse nele. Quando criança, apenas chupava feito esponja a tristeza dos adultos e embebia nela, enquanto eles catavam vassoura, balde, bucha e sabão em pó (OMO: o branco de cálcio que a sua família merece!) e corriam cabisbaixos para o cemitério ao fim da Rua Campos Salles, para lavar, enfim, os que haviam descido a Campos Salles. Ah! Ainda é meu eufemismo favorito, este do idioleto bebedourense: em Bebedouro ninguém morre, apenas desce a Campos Salles. Mas eu era criança quando minha mãe nos levava a tiracolo para lavar o túmulo do seu pai, meu avô. O finado José Cardoso! Que me pegou no colo e morreu logo, mas nessa época “eu era feliz e ninguém estava morto”, como escreveu Fernando Pessoa. Eu agora tenho meus mortos para lavar. Eu agora lavo meus próprios mortos. Dia de finados, não. Dia dos vivos que se voltam para seus mortos. Hoje é nosso dia. O dia dos infindos. Nós, os inacabados.

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Uma canção austríaca, uma fotografia síria, um poema ganês https://blogs.dw.com/contraacapa/uma-cancao-austriaca-uma-fotografia-siria-um-poema-ganes/ https://blogs.dw.com/contraacapa/uma-cancao-austriaca-uma-fotografia-siria-um-poema-ganes/#comments Wed, 28 Sep 2016 07:35:09 +0000 http://blogs.dw.com/contraacapa/?p=2095 Conexões em tudo, todos os que estão vivos, e os que morrem um pouco antes de nós. Você começa um texto querendo falar sobre uma canção de um cantor e compositor austríaco que acaba de aparecer no cenário. Na pausa para um cigarro, abre as redes sociais. Uma imagem aparece, uma fotografia. Nela, uma mulher segura seu bebê contra seu seio na cama, uma cama de casal, e a seu lado está ainda um menino, com certeza também seu filho, aninhado à cabeceira, com não mais de cinco anos de idade. Estão cobertos de algo branco, como se uma tempestade de neve os tivesse surpreendido durante uma canção de ninar. Uma das mãos da mulher parece ter se congelado no ato de erguer-se, talvez o movimento de proteger-se, proteger com uma das partes do corpo outra parte do corpo, mais essencial. E não somos como as holotúrias, aqueles animais marinhos que podem sacrificar uma parte do corpo, dando-a ao predador para poder escapar com as mais essenciais. Sobre eles, um homem paira como se fosse um inspetor. Os três sobre a cama estão mortos, a coisa fina e esbranquiçada sobre eles não é neve, mas o pó de escombros. Mortos durante a noite em um bombardeio. A fotografia foi feita em Aleppo. Você não tem como desvê-la.

Na noite anterior, você havia lido um ensaio de Teju Cole, um de seus vários textos sobre fotografia, no qual ele cita Susan Sontag, argumentando como a função defendida por fotógrafos de imagens de guerra seria a de nos despertar, mas como o fluxo constante dessas imagens acaba por nos anestesiar. Parecemos todos agora pacientes anestesiados sobre uma mesa, como no verso de abertura da Terra Devastada, de T.S. Eliot. Não, não todos. Alguns estão erguendo a mão direita para proteger a cabeça, enquanto a esquerda aperta o filho contra o seio. Enquanto isso, eleições para o trono de ferro em Washington aproximam-se, e amigos falam sobre o menor entre dois males, e parecemos reduzidos a defesas por estatísticas, tendo que escolher entre o que matará muitos e o que matará talvez um pouquinho menos. Uma escolha levará a centenas de milhares de mortos, a outra a talvez alguns milhares a menos.

Você então sai, porque está com fome, e caminha pelas ruas de luxo de uma capital europeia, o luxo que vem do dinheiro sujo de sangue do sistema colonial que construiu a riqueza das ruas, e não tem como evitar sentir-se com sorte por estar ali, explorando o mesmo dinheiro sujo de sangue. Você reprime o sangue do colonizador em si e reclama a herança também sua do sangue dos colonizados, e espera que isso seja algum tipo de absolvição. A caminho do restaurante, passa por vitrines e deseja, deseja aquele maravilhoso casaco de lã! Aquele deslumbrante abrigo de tricô! Sem se importar muito com as mãos que os tricotaram e teceram. Na calçada, uma mulher sentada no chão joga para o alto o que parecem ser uns trapos enrolados e, ao aproximar-se, percebe que ela está brincando com o filho, um bebê. Ocupada com isso, não ergue a mão.

No restaurante de kebab da esquina, toca pelas caixas de som uma canção em árabe, melancólica como sempre soam para você essas canções em árabe, e você pede uma cafta. Carne, daquela espécie cuja prisão em manadas para extermínio vai destruindo o planeta, e você jura que será a última vez, a última vez. Mas sabe que mente. Enquanto espera, reabre o livro de Teju Cole e começa a ler um ensaio sobre Kofi Awoonor, o poeta de Gana que foi morto durante os ataques de 2013 em Nairóbi. Pensa naqueles versos das Songs of Sorrow, de Awoonor: “I am on the world’s extreme corner, / I am not sitting in the row with the eminent / But those who are lucky / Sit in the middle and forget / I am on the world’s extreme corner / I can only go beyond and forget.”

Em casa, querendo voltar ao texto, você ouve de novo a canção do austríaco Oskar May, e alguns versos dizem: “Oh! come on, now let’s cut it out / We don’t have much time anymore / You keep on telling yourself your lies / But you know pretty well what you are.”

Há pouco tempo, houve uma polêmica nas redes sociais porque a famosa fotografia da menina vietnamita correndo nua de um ataque americano com napalm teria sido censurada pelo Facebook. Eu próprio compartilhei com amigos a opinião de que isso era absurdo. Mas, talvez olhando por outro ângulo, qual o propósito de postar aquela foto uma vez mais nas redes sociais? Ao mesmo tempo, como chamar a atenção para a guerra de todos contra todos em que estamos, ao ver mais soldados belgas nas ruas de Bruxelas, onde estou, caminhando com suas metralhadoras? Em outra canção de Oskar May, ele canta: “We have lost the war / We have lost the war / Centuries ago.”

Minha janela, ao terminar esse texto, está aberta na direção do bairro de Molenbeek, de onde sopra um vento.

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Carta a um contemporâneo do outro lado da trincheira https://blogs.dw.com/contraacapa/carta-a-um-contemporaneo-do-outro-lado-da-trincheira/ Thu, 07 Jul 2016 07:55:24 +0000 http://blogs.dw.com/contraacapa/?p=1845 “Porque eu, meu filho, eu só tenho a fome. E esse modo instável
de pegar uma maçã no escuro, sem que ela caia.”
Clarice Lispector, A Maçã no Escuro (1951)

Meu querido amigo, espero que esta o encontre bem, assim como os seus. Quem dera nos víssemos com a mesma frequência que nossos contemporâneos se lançam a polêmicas. Mas as últimas me trouxeram de novo uma questão à mente, algo com o qual não consigo me acostumar, uma coisa estranha que afeta tanto o campo a que dizem que você pertence, a chamada direita, e aquele a que dizem que pertenço, a tal esquerda. Em primeiro lugar, a forma como cada campo sempre escolhe nivelar o outro por baixo, pelos piores exemplos, para facilitar sua vitória argumentativa, que talvez seja sempre pírrica.

Veja por exemplo estas homenagens que pipocaram na Rede pelos nove anos de morte de Bruno Tolentino, que estou certo as merece como qualquer outro intelectual brasileiro que tenha defendido aquilo em que acreditava to the best of his or her abilities. A maneira como o seu campo acusa algumas de nossas preocupações políticas no campo literário como sendo “extra-literárias”, não tendo nada a ver com poesia de fato e, no entanto, não consegue deixar de apelar sempre a valores morais para celebrar seus heróis. Li vários apelos ao “projeto civilizatório” de Tolentino, com elogios morais a sua pessoa, e asserções sobre sua obra sem muita análise literária. São os valores que o guiaram que parecem contar.

Estou certo que é muito possível que Bruno Tolentino venha ainda a ocupar seu espaço. Obviamente já o ocupa, se tantos o elogiam e o reivindicam como influência. Mas o que parece estar em jogo, como sempre, é uma questão de hegemonia ideológica. É claro que vocês jamais veriam desta forma, já que “ideologia” é a sempre a doença do campo adversário.

Nem Shakespeare nem Balzac impediram o projeto colonizador genocida da Grã-Bretanha e da França. É óbvio que seria uma estultícia esperar isso deles. Mas é o que estes clamores civilizatórios muitas vezes parecem implicar. Ah, se ao menos lêssemos mais Shakespeare e Balzac, seríamos então mais civilizados! Estes gritos “contra a barbárie contemporânea”. A barbárie sempre esteve entre nós, muitas vezes, talvez a maioria, liderada pelos bem-pensantes. Como nas páginas de Jean Améry, quando ele escreve:

“… uma pequena pressão da mão que controla o aparelho é suficiente para transformar a outra – junto com sua cabeça, na qual talvez estejam arquivados Kant e Hegel, e todas as nove sinfonias, e O Mundo como Vontade e Representação – num leitão guinchante no matadouro.”

popol vuhSe nosso projeto, sendo honestos, é “civilizatório” (ainda que Machado de Assis e Clarice Lispector, cada qual a sua maneira, já nos tenham alertado contra tal ilusão), não seria muito mais efetivo tentar, sem abrir mão de Shakespeare e Balzac, também uma abertura ao Outro, a outros projetos de civilização, dos poetas chineses da Dinastia Tang aos griots africanos, das cosmogonias ameríndias aos grandes poemas escondidos de nós em línguas não oficiais? E, se mencionamos os chineses, não nos significará um enriquecimento das possibilidades do minimalismo, conhecer tanto os haikais clássicos dos chineses quanto os landays anônimos das mulheres afegãs, uma tradição viva ainda hoje? Não só A Odisseia, mas também o Popol Vuh? Não apenas os grandes homens brancos, mas também as grandes mulheres brancas e negras? Homossexuais como Kaváfis, Villaurrutia e Pasolini, para quem a sexualidade era central em seus projetos líricos? Reconhecermos que nós mesmos vivemos em uma terra de culturas milenares, que tem muito mais línguas e tradições que apenas a lusófona? O que há de tão bárbaro nesta reivindicação?

Por fim, nossa lealdade está com a poesia ou com o cânone? Até quando vão confundir os dois? E que fetiche é este por um Ocidente imaginário, que tem tanto sangue manchando as mãos, escondidas sob as luvas? Um Ocidente que causou tanta destruição em nossa própria terra? Já não deveríamos saber muito bem a que nos levou o projeto civilizatório do Ocidente?

A última coisa que quero nestes dias é me entregar a polemicazinhas de machos-alfa que não conseguem sair da rinha e do ringue, feito os velhinhos Ferreira Gullar e Augusto de Campos, constrangendo-se em público. Mas, ou somos todos um pouco mais honestos sobre a maneira como nossas ideologias e conflituosos projetos civilizatórios guiam nossas leituras e nossa escrita, ou essas discussões todas serão sempre tingidas de desonestidade.

E, pois bem, se minha recusa do projeto civilizatório tal qual vem sendo praticado no Ocidente pelos últimos 600 anos – digamos desde 1348, data da Grande Praga que dizem ter destruído a cultura trovadoresca–, não tenho o menor problema com que chamem o meu projeto e minha ideologia de anti-civilizatória.

Por fim, talvez desconexo disso tudo, mas nem tanto, me despeço de meu grande amigo, querido contemporâneo exato, por quem nutro a admiração que você por sua vez nutre por Bruno Tolentino, recomendando a você e aos seus a leitura de Os Anéis de Saturno, de W.G. Sebald, outro que nos alerta sobre nossas ilusões civilizatórias.

Com o abraço fraterno e leal, sabendo que poderei esconder-me em sua casa quando vier a Guerra Civil, tal qual Federico García Lorca escondeu-se na de Luis Rosales,

teu Ricardo.

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No cemitério com Sebald https://blogs.dw.com/contraacapa/no-cemiterio-com-sebald/ https://blogs.dw.com/contraacapa/no-cemiterio-com-sebald/#comments Mon, 27 Jun 2016 17:05:24 +0000 http://blogs.dw.com/contraacapa/?p=1835 Não muito longe de onde moro em Berlim, no bairro de Prenzlauer Berg, na antiga Berlim Oriental, há um cemitério pequenininho, o Friedhofspark Pappelallee, ou, literalmente, Cemitério-Parque da Pappelallee. A palavra parque é um dos motivos pelos quais eu, por muito tempo, não percebi que se tratava de um cemitério, apesar de ter vivido naquela rua por alguns anos. O cemitério, que já não recebe novos moradores definitivos, é hoje em dia usado como um parque. No verão, vive cheio de mães e crianças, todas muito vivas. Quando finalmente percebi que era um cemitério, aquilo me causou muita estranheza.

Edição brasileira, 2010, tradução de José Marcos Mariani de Macedo, Companhia das Letras

Edição brasileira, 2010, tradução de José Marcos Mariani de Macedo, Companhia das Letras

No Brasil, quando minha mãe nos levava ao cemitério de Bebedouro para lavar o jazigo da família, naquele ritual de Dia dos Finados que já parece ter caído em desuso em São Paulo (toda tradição e todo ritual morrem primeiro em São Paulo), ao chegar em casa ela nos despia por completo, e lavava tudo, inclusive os sapatos. Nunca me esqueci da primeira vez que perguntei por quê: “não se traz morte para casa”, ela disse. É claro que havia um motivo, digamos, empírico para a coisa. Acreditando que o lugar estava cheio de micróbios, ela achava melhor lavar as crianças. Mas em mim calou fundo o sentido místico da coisa: não se traz morte para casa. Entre a ciência dos micróbios e a superstição do mórbido, antes estar seguro. Cemitérios, por toda a minha vida, ficaram marcados como lugares que, se possível, alguém deve evitar.

Há uma diferença grande entre os cemitérios brasileiros e alemães, é claro. Todos de concreto, nos quais a vida se esgueira como erva-daninha entre rachaduras, os cemitérios brasileiros são mesmo lugares lúgubres. Na Alemanha, são os lugares mais verdes e agradáveis que alguém pode encontrar, às vezes, num raio de quilômetros. Em 2012, após dizer a amigos mais uma vez que era óbvio que não, eu não queria dar uma volta no cemitério, e após terem rido de mim pela óbvia besteira supersticiosa minha, resolvi que me curaria dela na marra: estava prestes a começar a ler um livro novo e decidi que só o leria, nas próximas semanas, no cemitério. Era verão. Eu estava passando alguns meses em Kreuzberg, próximo ao complexo dos quatro cemitérios da Bergmannstrasse. O livro em questão era Os Anéis de Saturno (1995), do alemão W.G. Sebald (1944–2001). Não sei se estava preparado para o quão apropriada era a escolha do acaso destineiro.

O cemitério que passei a visitar para ler o livro era o Friedrichswerderscher Friedhof, próximo à Marheinekeplatz. É um lugar bastante calmo e bonito. Eu nem me embrenhava muito nele. A alguns metros da entrada há um banco, onde me sentava. Havia túmulos às minhas costas e à minha frente. Ali comecei a descida em espiral que é o livro de Sebald, talvez o mais celebrado autor alemão (fora da Alemanha) dos últimos 20 anos. Na Alemanha, a fortuna crítica de Sebald é estranha, como a de Celan (mas isto é assunto para outro texto).

O livro tem como subtítulo Uma peregrinação inglesa. O narrador, sem nome, que se confunde com o autor, narra sua caminhada pelo leste do país, em East Anglia (é deste povo antigo que deriva o nome Inglaterra), em Norfolk e Suffolk. O narrador descreve o que vê em sua caminhada, pausando para o que parecem digressões históricas sobre vários assuntos aparentemente desconexos: do mais famoso tradutor do alemão para o inglês, Michael Hamburger, ao naturalista inglês Thomas Browne (1605 – 1682); da introdução de bichos-da-seda à Europa e fabricação do tecido ao disco dourado que seguiu na Voyager 2 em sua viagem ao Espaço; de uma visita à Chestnut Tree Farm, onde um certo Thomas Abrams vem dedicando anos de sua vida a construir uma réplica em miniatura do Templo de Salomão, aos horrores da colonização belga no Congo.

Se no começo o leitor parece perder-se, esperando quais as ligações entre um naturalista inglês e uma espaçonave, entre bichos-da-seda e uma réplica em miniatura do Templo de Salomão, ele não tarda a ser tomado pela mão por Sebald, que vai fechando os círculos narrativos, demonstrando a ligação entre todas estas coisas, mas não de forma definitiva, para que sigamos em nossa queda em espiral pelos escombros da História. É uma lenta narrativa da decadência. Como se, enquanto o Anjo de Klee olha para trás, descrito por Walter Benjamin como encarando a tempestade da História que vem às costas, Sebald nos levasse por uma peregrinação não apenas pelo leste da Inglaterra, mas pelos escombros que se amontoam aos pés daquele anjo com torcicolo.

Curei-me do horror a cemitérios. Mas fiquei alguns dias mal, sem conseguir sair do cemitério que é a História. Um livro que se quer despretensioso, um misto de diário de caminhada e meditação, Os Anéis de Saturno é um dos livros mais fascinantes que já li. Talvez tenha sido a última vez que senti febre ao ler um livro. Mas, num cemitério ou num parque, sente febre apenas quem está vivo. E os vivos criam fronteiras entre terras e suas histórias para esquecer que os mortos do mundo estão todos de mãos dadas, à nossa espera.

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Literatura desaparecida: 40 anos do Golpe Militar na Argentina https://blogs.dw.com/contraacapa/literatura-desaparecida-40-anos-do-golpe-militar-na-argentina/ Thu, 24 Mar 2016 15:38:51 +0000 http://blogs.dw.com/contraacapa/?p=1643 “Escribe mientras sea posible. Escribe cuando sea imposible. Ama el silencio.”
— Miguel Ángel Bustos, desaparecido em 1976

Há 40 anos, ocorria o Golpe Militar na Argentina, que deixaria ainda mais mortos e desaparecidos pelo continente latino-americano. No Brasil, estávamos no décimo-segundo ano da ditadura militar – aquela que alguns no país hoje ainda insistem em tratar com nostalgia. Aquelas imagens das Mães da Praça de Maio permanecem como alguns dos atos de coragem e desobediência civil exemplares em nosso continente.

epa03201923 Mothers of Plaza de Mayo Founding Line (Asociación Madres de Plaza de Mayo Línea Fundadora) members participate in a demonstration at the monument where the group met for the first time, in the event called by one of the three founders of the organization, Azucena Villaflor de Devincenti to commemorate the group's 35 anniversary in Buenos Aires, Argentina, 30 April 2012. Separated by ideological issues, although united by the same pain, Mothers of Plaza de Mayo remember the birth of the humanitarian group 35 years ago when they first met against dictatorship in Argentina for their missing children. EPA/RICARDO NUÑEZ

Mães da Praça de Maio

Há alguns dias, descobri o trabalho do fotógrafo argentino Gustavo Germano. Em sua série “Ausencias”, com uma estratégia ético-estética simples e eficiente em seu soco na boca de nosso estômago, o fotógrafo refaz fotos de amigos e famílias dos anos 1960 e 70, deixando vago o local onde seus entes queridos desaparecidos deveriam estar, não tivessem sido sequestrados por um regime assassino.

Sendo este um blog dedicado à literatura, gostaria de tomar o dia de hoje, no entanto, para chamar a atenção dos leitores a um outo projeto bastante comovente em nosso país vizinho, capitaneado pelo poeta e jurista Julián Axat, nascido em Buenos Aires naquele fatídico ano de 1976. Ele próprio filho de desaparecidos, tem se dedicado com afinco em manter viva a memória das milhares de vítimas da Junta Militar argentina. Em sua coleção “Detectives Salvajes”, que toma o título do romance de Roberto Bolaño (1953-2003), Axat vem publicando a literatura deixada por escritores que desapareceram pelas valas comuns, desertos e o oceano que banha nossa parte do mundo-cão.

A ditadura tocou vários escritores do país, como o grande Juan Gelman, que passou anos em busca da neta. Em 1995, quase uma década antes de poder finalmente abraçá-la, escreveu uma carta que começava assim: “Dentro de seis meses cumplirás 19 años. Habrás nacido algún día de octubre de 1976 en un campo de concentración.” É a história de tantas famílias latino-americanas.

Graças aos esforços de Julián Axat, pude descobrir dois jovens escritores que desapareceram na noite escura do continente: Miguel Ángel Bustos, desaparecido em 1976, e Carlos Aiub, desaparecido em 1977, o ano em que nasci. Abro este pequeno texto em homenagem a todos os desaparecidos e sobreviventes do país vizinho com uma citação de Bustos. Permitam-me encerrá-lo com alguns versos de Aiub, sussurrando que sim, alguns de nós nos lembramos e, ao mesmo tempo, NUNCA MAIS.

“temer el dolor como cuando siempre
la forma del dolor y de la muerte empezás
también a imaginarla y temés
temés también tu olvido
o algo así
el qué pensarán de vos
si te recordarán
si tu nombre bautizará algo o servirá para algo
temer el final que no te deje ver el final
la victoria viste
las cosas nuevas que buscás
el nuevo sueño chiquitín continuado
temer todo eso y entonces si temer la muerte
que se puede venir y no la deseás
y te aferrás a la vida con todo
porque querés vivir simplemente para ver
cuando al final la vida viva
el nuevo dolor lo pensás más tarde.”

(Carlos Aiub, desaparecido em 1977)

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Quando o Brasil for o que acredita que é https://blogs.dw.com/contraacapa/quando-o-brasil-for-o-que-acredita-que-e/ Fri, 18 Mar 2016 14:48:43 +0000 http://blogs.dw.com/contraacapa/?p=1637 Este texto ia ter outro título e partir por outro caminho. Como dar conta das notícias absurdas que se empilham diante da porta, vindas do Brasil? Uma das saídas tem sido a comicidade, o riso. Afinal, uma das únicas fontes de notícias no país, hoje, que poderíamos chamar de imparcial é a publicação satírica O Sensacionalista. Quando foi publicado o texto do depoimento do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva à Polícia Federal durante sua condução coercitiva, com aqueles detalhes cômicos sobre café e misto-quente, o escritor Victor Heringer comentou que se um grupo de teatro decidisse encenar o texto, seria uma perfeita peça de Harold Pinter. O Nobel de 2005 trabalhava com o absurdo em sua dramaturgia, tendo seu estilo sido chamado de “Comedy of Menace”, algo como comédia da ameaça. Minha resposta a ele, no mesmo clima de absurdismo, era que após análise filológica me parecia mais provável que a autoria da peça fosse de Qorpo-Santo, o “louco” brasileiro do século 19 que já foi chamado tanto de precursor do Teatro do Absurdo como do surrealismo. O próprio Heringer comentou hoje: “Solidariedade aos confrades cronistas que estão com o Word aberto neste momento pensando ‘Não sei nem por onde começar’. Obrigado, Heringer. Nem sei por onde começar.

Uma das saídas para aqueles se sentem impotentes para além do comando dos próprios cérebros e bocas tem sido o humor. E no meio do caos de quarta-feira, 16.03, devo ter gargalhado algumas vezes, alto, com comentários da esquerda verdadeira no país. Não tenho contatos suficientes à direita para saber se têm o mesmo humor. Duvido. São melhores no batuque de panela. Mesmo o artigo sobre a situação do país no jornal alemão Die Zeit, do jornalista Thomas Fischermann, brincou com a trama da série norte-americana em meio à nossa crise política. Escrito no Rio de Janeiro, tenho certeza de que o jornalista alemão pegou a piada com brasileiros. No país das novelas, parecemos estar diante de outra, porém um tanto mais trágica e farsesca que o normal. E qual seria o horário mais apropriado para esta? Com certeza, após as 10 da noite. O poeta paulista Marco Catalão comentou: “A dramaturgia está sensacional, com reviravoltas a cada minuto. O problema é o preço do ingresso.”

Já o poeta carioca Italo Diblasi criou sua personagem fictícia Simão Sinésio em um dos melhores textos que li nesta bagunça toda, encerrando-o assim:

“E aqui nos encontramos, ao estágio do mito-brasil descrito por Simão em que as massas se dividem. Há quem consulte os relógios e os bancos; há quem consulte a bolsa de valores ou o próprio estômago. Há os que olham para a televisão, para o horizonte e para o céus. Há os que olham para o mar à espera do rei. Enquanto isso, Lula, cognominado ‘A Jararaca do rabo partido’, declara guerra e reúne as tropas. O baralho de ouros se agita e também estende as garras. Não faltam acusações e há farsas. Os acusadores bradam a aletheia, a verdade. A imprensa defende o seu naipe, e instiga: Bandido ou Herói? E também isso Simão Sinésio, o Bardo, o que perambulou pregando, já havia respondido: em matéria de Brasil, Os dois!” [Italo Diblasi, “Um Cordel Perdido ou O Mito-Brasil“, Modo de Usar & Co., 9-3.16]

Ao trazer Qorpo-Santo à baila, busquei textos seus, mas acabei descobrindo outro poeta no processo, o modernista gaúcho Tyrteu Rocha Vianna (1898-1963), autor de um único livro, Saco de viagem (1928), no qual encontrei os versos:

Trapo nem verde nem amarelo nem mais nada
Meu Pai respondente
Sentado me dizia
É o regime econômico vaca magra
Das tetudas economias invisíveis
Do dinheiro municipal calotíssimo

Desde Gregório de Matos, o primeiro grande poeta brasileiro lusófono, é a sátira que nos redime, talvez um pouquinho. E como permanecem atuais os textos de Gregório de Matos, de Sapateiro Silva, de Qorpo-Santo, de Luiz Gama, de Oswald de Andrade, de Tyrteu Rocha Vianna.

Mas chegou um momento quarta à noite, em meio ao circo televisionado pelo Jornal Nacional, em que precisei parar tudo e ouvir Pixinguinha. Para me lembrar de que o país poderia ser muito mais do que um mero circo de quinta categoria em chamas. Depois, li um poema de Manuel Bandeira. Olhei algumas pinturas de Tarsila do Amaral. Este país poderia ser tanto mais do que um picadeiro de palhaços furiosos. Eu só queria que o Brasil fosse como Pixinguinha, como Manuel Bandeira. Não é pedir demais. Eles já vieram e apontaram o caminho. Não estou pedindo Bach e Shakespeare. Só Pixinguinha e Bandeira.

É. Se alguém me perguntasse o que eu esperava do Brasil, o que eu gostaria que ele se tornasse, responderia simplesmente: que o Brasil se torne aquilo que acredita que já é. Que o Brasil se torne aquilo que me disseram que era, quando criança. Que conto de fadas lindo era aquele! Que fábula! Como é bonito o Brasil imaginário! Então, voltando ao texto de Italo Diblasi, digo: em matéria de Brasil, aquele outro!

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