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Reserve suas vaias para o estádio de futebol, leitor

Ao ser convidado para um festival literário, qualquer escritor espera estar ali para discutir seu trabalho, sua escrita, seus livros em primeiro lugar. Quem negaria isso a um escritor americano ou francês? Qualquer escritor brasileiro em Nova Iorque ou Paris gostaria também de ser tratado primordialmente como escritor, se é nesta função que está em evento qualquer em tais cidades. Pois a Folha de S. Paulo, em manchete bombástica, nos informa que o escritor sírio Abud Said foi recebido com vaias ao esperar do público brasileiro esta cortesia tão corriqueira [“Poeta sírio critica direitos humanos e é vaiado e xingado de ‘babaca’“, Folha de S. Paulo, 03.07.2016].

Eu não estava presente no evento da FLIP para saber exatamente como a situação transcorreu. Em artigo no El País Brasil, a jornalista Camila Moraes nos dá uma narrativa mais equilibrada sobre o que houve [“Abud Said, um ‘outsider’ na Flip, é vaiado e aplaudido pelo público“, El País Brasil, 03.07.2016]. O que posso dizer é que já participei de um evento literário ao lado de Abud Said e conheço sua verve, seu humor, e sua recusa a apresentar-se como algumas pessoas na plateia, talvez, esperavam que ele se apresentasse: sob o signo do coitadismo. Pois no evento na Eslovênia onde estive com o sírio, ele também se recusou a desempenhar um papel que nossas plateias ocidentais com frequência esperam de intelectuais de países em conflito. Ele não estava na Eslovênia ou no Brasil como refugiado, como mera estatística, mas como escritor.

Estou certo que as intenções da mesa eram sinceras, ao tentar discutir a Guerra Civil Síria no Brasil. Estou certo que algumas pessoas tinham também um interesse genuíno. Mas dou todo o meu apoio a Abud Said por escolher falar como Abud Said, o escritor, e não como “o sírio do festival.” Se algumas de suas declarações podem parecer polêmicas ou provocativas, por que sinto que estas características teriam sido louvadas em um escritor americano ou francês? Mas, destes, esperamos aprender algo, com nossa subserviência colonial. De certos “outros”, queremos apenas saber de suas experiência, não de sua inteligência. Said não quis cumprir o papel que se esperava dele. Não quis apenas dar aos brasileiros mais um exemplo do que já foi chamado de war porn, antes que voltassem para suas confortáveis pensões. O que li nestes artigos fez-me ver apenas um ato de coragem de sua parte, e de generosidade.

Aos que se mostrarem abertos e atentos, Abud Said deu ontem ao público brasileiro uma lição. Resta saber se estamos abertos para a aprendizagem.

Data

segunda-feira 04.07.2016 | 12:45

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A Paixão segundo Orlando

orlando

O romance “Orlando” foi publicado por Virginia Woolf em 1928

Em algumas horas, casais heterossexuais por todo o Brasil, com a sanção da mídia, do governo, dos pais, começariam a festejar outro Dia dos Namorados. Andariam de mãos dadas pelas avenidas e praças do país, visitariam cinemas, seriam vistos aos beijos e abraços do Oiapoque ao Chuí.

Nenhum casal sofreria ataques simplesmente por beijar-se. Era dia de festejar o amor, a paixão – essa palavra que já significou sofrimento. “A Paixão de Cristo”, “A Paixão segundo Mateus”, “A Paixão segundo GH”, esses títulos passam por minha cabeça. Na televisão, os comerciais mostrariam homens e mulheres demonstrando carinho e esta outra paixão nova nossa sem que alguém planejasse boicotes a qualquer uma das marcas.

O dia seria diferente para os homossexuais brasileiros, e todos os que não se enquadram nos moldes do patriarcado monoteísta. Teriam que tomar cuidado, saber bem onde estavam ao se beijarem, abraçarem, demonstrarem carinho em público.

Nosso quinhão de terra preparava-se para receber os primeiros raios de sol neste Dia dos Namorados, enquanto homossexuais eram metralhados num clube noturno nos Estados Unidos, em nosso mesmo continente americano. O horror que não cessa. O horror racista, o horror homofóbico, o horror machista. Quantos homossexuais foram mortos no Brasil este fim de semana? Quantos Orlandos cabem no Brasil?

Orlando. Orlando sobreviverá. Como no romance de Virginia Woolf, Orlando prevalecerá. Todos os Orlandos prevalecerão. Pelas redes sociais, estão dizendo “Rezem por Orlando”. Não. Dancem por Orlando. Cantem por Orlando. Façam sexo por Orlando.

Há que se ter solidariedade e desacato neste momento. Como escreveu nas redes sociais o jornalista Schneider Carpeggiani, do Suplemento Pernambuco, esse ataque tem força simbólica por atingir a comunidade LGBT em seu espaço de proteção e empoderamento: a pista de dança. O presidente dos EUA, Barack Obama, demonstrou compreensão sobre a comunidade ao mencionar isso em seu discurso sobre o ataque.

Penso na paixão de todos os mortos do patriarcado monoteísta. E penso na paixão de Federico García Lorca. Na paixão de Alan Turing. Na paixão de Pier Paolo Pasolini. Essa é uma página de literatura. Minha solidariedade e desacato chegam a vocês em forma de poemas. Contra todos os fanáticos monoteístas do patriarcado mundial.

Eros

fragmento de Safo de Lesbos

[queima-nos]

#

Poema 99

Caio Valério Catulo

Um selinho mais doce que doce ambrosia,

Juvêncio, te roubei quando brincavas.

Mas não impunemente: pois da cruz mais alta

me vejo, há uma hora ou mais, pendido

pedindo-te perdão, e sem que minhas lágrimas

consigam aplacar a tua ira.

Assim que te beijei, teus dedos delicados

te lavaram o lábio com gotículas,

de modo que do meu no teu não resta nada,

pois julgaste ser mijo, não saliva.

Desde então me castigas com um amor negado,

e de tantas maneiras me excrucias,

que vejo, então, mudado o beijo de ambrosia

em amargor pior que o mesmo amargo;

por um selinho amor assim me castigou:

o que faria, ai, ai, se fossem dois?

(tradução de Érico Nogueira)

#

[Com vinho, dizendo que é vinho, enche-me a taça]

Abū Nuwās al-Ḥasan ibn Hānī al-Ḥakamī

Com vinho, dizendo que é vinho, enche-me a taça,

Pois beber furtivamente não há quem me faça.

Pobre e maldito é o tempo em que sóbrio fico,

Mas quando trôpego pelo vinho torno-me rico.

Não escondas por temor o nome do bem-amado;

O prazer verdadeiro nunca deve ser ocultado.

(tradução de Paulo Azevedo Chaves)

#

A origem

Konstantínos Kaváfis

Consumara-se o prazer ilícito.

Ergueram-se ambos do catre humilde.

À pressa se vestiram, sem falar.

Saíram separados, furtivamente;

e, ao caminhar inquietos pela rua,

como que receavam que algo neles traísse

em que espécie de amor há pouco se deitavam.

Mas quanto assim ganhou a vida do poeta!

Amanhã, depois, anos depois, serão

escritos os versos de que é esta a origem.

(tradução de Jorge de Sena)

#

De profundis amamus

Mario Cesariny

Ontem às onze

fumaste

um cigarro

encontrei-te

sentado

ficámos para perder

todos os teus eléctricos

os meus

estavam perdidos

por natureza própria

Andámos

dez quilómetros

a pé

ninguém nos viu passar

excepto

claro

os porteiros

é da natureza das coisas

ser-se visto

pelos porteiros

Olha

como só tu sabes olhar

a rua os costumes

O Público

o vinco das tuas calças

está cheio de frio

é há quatro mil pessoas interessadas

nisso

Não faz mal abracem-me

os teus olhos

de extremo a extremo azuis

vai ser assim durante muito tempo

decorrerão muitos séculos antes de nós

mas não te importes

muito

nós só temos a ver

com o presente

perfeito

corsários de olhos de gato intransponível

maravilhados maravilhosos únicos

nem pretérito nem futuro tem

o estranho verbo nosso

#

A piedade

Roberto Piva

Eu urrava nos poliedros da Justiça meu momento

abatido na extrema paliçada

os professores falavam da vontade de dominar e da

luta pela vida

as senhoras católicas são piedosas

os comunistas são piedosos

os comerciantes são piedosos

só eu não sou piedoso

se eu fosse piedoso meu sexo seria dócil e só se ergueria

aos sábados à noite

eu seria um bom filho meus colegas me chamariam

cu-de-ferro e me fariam perguntas: por que navio

boia? por que prego afunda?

eu deixaria proliferar uma úlcera e admiraria as

estátuas de fortes dentaduras

iria a bailes onde eu não poderia levar meus amigos

pederastas ou barbudos

eu me universalizaria no senso comum e eles diriam

que tenho todas as virtudes

eu não sou piedoso

eu nunca poderei ser piedoso

meus olhos retinem e tingem-se de verde

Os arranha-céus de carniça se decompõem nos pavimentos

os adolescentes nas escolas bufam como cadelas asfixiadas

arcanjos de enxofre bombardeiam o horizonte através

dos meus sonhos

Data

segunda-feira 13.06.2016 | 08:52

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Berlim: cidade de festivais (no momento, o de poesia)

O festival mais conhecido de Berlim é sem dúvida o de cinema, a Berlinale, tradicionalmente em fevereiro. Mal o ano começa e o burburinho sobre cineastas, filmes, atores e atrizes se inicia. Quem vai presidir o festival este ano? Quem vai ser visto em tal restaurante? Se me permitem um aparte logo no início do texto, há algo de irritante aí. Berlim costumava ser um refúgio dessa loucura por celebridades, ricos e famosos. As coisas mudaram. Mas talvez haja nisso um desejo legítimo de estar menos isolada.

Situada no Centro da Europa em termos geográficos, Berlim (assim como Viena) tem um caráter forte de portão entre Leste e Oeste, e por vezes sinto uma neurose em colocar-se o mais a-oeste possível. Enfim, o Festival de Cinema de Berlim abre a série de tentativas genuínas da cidade, eu diria, de informar-se e formar-se com influências externas. Na história do festival, apenas dois filmes brasileiros venceram: Central do Brasil (em 1998), de Walter Salles; e Tropa de elite (em 2008), de José Padilha. Ambos não são exatamente unanimidade crítica no país.

Outro festival internacional importante é o de literatura, que ocorre geralmente em setembro. Os seguintes autores internacionais, entre outros, estiveram em Berlim no ano passado: Horacio Castellanos Moya (El Salvador), Michael Cunningham (EUA), Xiaolu Guo (China), Kazuo Ishiguro (Japão), Drago Jančar (Eslovênia), Javier Marías (Espanha), Laura Restrepo (Colômbia), Salman Rushdie (Índia), Wole Soyinka (Nigéria), Eugeniusz Tkaczyszyn-Dycki (Polônia) e Banana Yoshimoto (Japão). Sendo um festival de literatura, sem estrelas de Hollywood, o burburinho é menor, mas a presença de prêmios Nobel causa o seu frisson ao menos nos cadernos culturais.

Na dança, algo forte em Berlim, há o Tanztage e o Tanz im August, ambos importantes. Mas, por questões pessoais, o festival que comanda minha atenção todos os anos acaba sendo o Poesiefestival Berlin, ou Festival de Poesia de Berlim, que está acontecendo neste momento. Este ano, de 3 a 11 de junho, na Akademie der Künste, passaram ou passarão pelos palcos e microfones poetas importantes como Luis Felipe Fabre (México), Caroline Bergvall (França, Noruega), Rasha Omran (Síria), Souleymane Diamanka (Senegal), Charles Simic (EUA), Niyi Osundare (Nigéria), Mamta Sagar (Índia), e outros.

Trata-se de um festival atento às questões políticas do momento, e o foco deste ano tem sido a crise migratória. Foi neste aspecto que o festival acabou por me doar a grande descoberta deste ano: o trabalho do poeta palestino Ghayath Almadhoun, nascido em 1979, num campo de refugiados na Síria, e agora, duplamente refugiado, vivendo na Suécia. Com um trabalho vocal e textual que lembra fortemente o de Mahmoud Darwish (1941–2008), Ghayath Almadhoun nos leva a rever nossas ideias preconcebidas sobre os refugiados da Guerra Civil Síria, como o faz em Berlim o sírio Abud Said, que tem livro lançado no Brasil este mês e que já discuti aqui.

Encerro este texto com minha descoberta, e convido vocês a verem o vídeo The celebration, de Ghayath Almadhoun, com tradução para o inglês, e que traz uma Berlim de não muito tempo atrás em suas imagens.

Data

quarta-feira 08.06.2016 | 15:31

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40 anos do suicídio de Dora Lara Barcelos em Berlim

Hoje é o quadragésimo aniversário do suicídio de Dora Lara Barcelos na Berlim Ocidental, onde se exilara, a 01/06/1976, quando se jogou diante de um trem na estação de Charlottenburg. Uma morte trágica e terrível, meio aos anos trágicos e terríveis daquele momento histórico do Brasil. Ao contrário dos vários homens que lutaram contra o regime militar (1964-1985), seja por meios políticos ou por armas, Dora Barcelos está entre as figuras menos conhecidas da narrativa, como outras mulheres, feito Iara Iavelberg ou Ísis Dias de Oliveira.

Uma pequena retrospectiva: Maria Auxiliadora Lara Barcelos nasceu em Antônio Dias, Minas Gerais, em 1945. Iniciou o curso de Medicina na Universidade Federal de Minas Gerais em 1965, onde passou a integrar o movimento estudantil. Com o recrusdecimento do terror ditatorial do regime, abandonou o curso e mudou-se para o Rio de Janeiro em março de 1969, entrando na clandestinidade e ligando-se à VAR-Palmares. Foi presa com seu marido, Antônio Roberto Espinoza, e o guerrilheiro Chael Charles Schreier, no dia 21 de novembro daquele ano. Brutalmente torturados, Chael Chales Schreier morreria no dia seguinte. Dora Barcelos passaria pelo túnel do horror específico dedicado a mulheres pelos agentes da repressão. Passou dois anos presa, até ser libertada com os 70 presos políticos trocados pelo embaixador da Suíça no Brasil, Giovanni Bucher, em 1971.

Temos imageRetratos de identificaçãons de Dora Barcelos no filme Brazil: A Report on Torture (1971), dos americanos Haskell Wexler e Saul Landau, que estavam no Chile para filmages sobre a situação política do país e ouviram falar sobre a chegada dos brasileiros. Com a queda de Allende em 1973, a brasileira seguiu para a Bélgica e então para a Alemanha Ocidental, fixando residência em Berlim Ocidental, onde pretendia seguir o curso de Medicina. Com dificuldades para assegurar o asilo político na Alemanha, sem passaporte, marcada pela tortura, Dora Barcelos fez sua escolha extrema naquele dia 1º de junho, numa estação de trens. Sua vida é retratada no documentário recente Retratos de Identificação (2016), de Anita Leandro, baseado em documentos secretos do regime militar e em depoimentos de companheiros.

A história de Dora Lara Barcelos me marcou por sua ligação com Berlim. Tinha o plano de escrever sobre este aniversário de morte muito antes do Brasil mergulhar na crise política extrema em que se encontra. Podemos ter opiniões conflituosas sobre a luta armada contra a ditadura. Pessoalmente, tenho uma ideia clara sobre sua eficiência. No entanto, pensar na vida e morte de pessoas como Dora Lara Barcelos, não permitir que caiam no esquecimento completo do Brasil sempre voltado para um futuro que não chega, é lembrar-nos sempre do terror em que nosso país afunda periodicamente, quando os direitos constitucionais de seus cidadãos são colocados muito abaixo dos interesses econômicos de uma elite que não conhece limites, especialmente quando se trata de defender a casa-grande.

Este é apenas um grito de “tortura nunca mais”, ainda que saibamos que ela segue sendo prática diária da Polícia Militar no Brasil. Encerro, portanto, com um poema da polonesa Wislawa Szymborska, em tradução de Regina Prybycien.

TORTURAS
Wisława Szymborska

Nada mudou.
O corpo sente dor,
necessita comer, respirar e dormir,
tem a pele tenra e logo abaixo sangue,
tem uma boa reserva de unhas e dentes,
ossos frágeis, juntas alongáveis.
Nas torturas leva-se tudo isso em conta.

Nada mudou.
Treme o corpo como tremia
antes de se fundar Roma e depois de fundada,
no século XX antes e depois de Cristo,
as torturas são como eram, só a terra encolheu
e o que quer que se passe parece ser na porta ao lado.

Nada mudou.
Só chegou mais gente,
e às velhas culpas se juntaram novas,
reais, impostas, momentâneas, inexistentes,
mas o grito com que o corpo responde por elas
foi, é e será o grito da inocência
segundo escala e registro sempiternos.

Nada mudou.
Exceto talvez os modos, as cerimônias, as danças.
O gesto da mão protegendo o rosto,
esse permaneceu o mesmo.
O corpo se enrosca, se debate, se contorce,
cai se lhe falta o chão, encolhe as pernas,
fica roxo, incha, baba e sangra.

Nada mudou.
Além do curso dos rios,
do contorno das costas, matas, desertos e geleiras.
Entre essas paisagens a pequena alma passeia,
estranha a si própria, inatingível,
ora certa, ora incerta da sua existência,
enquanto o corpo é, é, é
e não tem para onde ir.

(in Szymborska, Wislawa. Poemas. São Paulo, Companhia das Letras, 2012. Tradução de Regina Prybycien)

Data

quarta-feira 01.06.2016 | 08:28

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FLIP 2016

Em 2012, a DW Brasil publicou um texto opinativo meu, discutindo o número baixíssimo de autoras naquele que se quer o maior evento literário do Brasil, a Flip [“Com poucas autoras, Flip não reflete a produção literária atual”]. Pouca coisa mudou nos anos seguintes. Em entrevista à jornalista Camila Moraes do El País Brasil, Paulo Werneck, curador pelo terceiro ano consecutivo do evento, discutiu a ausência de autores negros no evento [“Faltam negros no palco da Flip, mas também na plateia”]. Em outro artigo, a mesma jornalista afirmara que este ano a edição finalmente pertencia às mulheres.

13623_ggVamos começar por falar sobre a presença das mulheres este ano. É verdade que a festa jamais convidara tantas autoras. Segundo a introdução à entrevista, são 17 mulheres entre 39 convidados, “quase 44%”. Até pouquíssimo tempo, a festa não era capaz de encontrar uma dezena de autoras para trazer ao país. Há aí, portanto, um avanço. É verdade que a curadoria, com frequência, não parece conseguir funcionar num raio muito maior que o do estado do Rio de Janeiro, mas este é um velho problema brasileiro, e neste ano acaba influenciado pela escolha da homenageada, Ana Cristina Cesar (1952-1983), apenas a segunda vez que uma autora é homenageada no evento, após Clarice Lispector na edição de 2005. O fato foi celebrado como o deveria ser. Ana Cristina Cesar é uma poeta importante. Então contenho o que poderiam chamar de cinismo meu, em imaginar o quanto a escolha tenha sido decidida pelo fato de que sua obra completa foi publicada há tão pouco tempo por uma grande editora como a Companhia das Letras, com a qual Werneck tem laços, digamos, históricos. Mas, viva Ana Cristina Cesar!, poeta que produziu realmente textos maravilhosos em sua vida tão curta, e espera-se que autoras como Hilda Hilst, Patrícia Galvão, Carolina Maria de Jesus e Cecília Meireles, entre outras, encontrem espaço nos anos futuros.

Já festejei no texto anterior a este, que o sírio Abud Said esteja entre os convidados deste ano, e é uma alegria ver o grande poeta brasileiro Leonardo Fróes na lista. Valeria Luiselli vem realmente aparecendo nas listas mais prestigiadas do último ano, e todos devem estar em polvorosa mais que justa com a vinda da ganhadora do Prêmio Nobel do ano passado, Svetlana Aleksiévitch.

Mas, a não ser pela presença do excelente autor sírio, não há um único autor que não seja identificado como branco em Paraty em 2016. O curador defende-se dando nomes de autores negros que teria convidado, mas que não aceitaram, como a nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, o astrônomo norte-americano Neil DeGrasse Tyson, e o escritor Ta-Nehisi Coates, também dos Estados Unidos. São nomes extremamente importantes. O livro mais recente de Ta-Nehisi Coates, Between the World and Me (2015), deveria ser discutido amplamente no Brasil.

São também autores festejados pelo New York Times, algo importante para os curadores da Flip, sempre jornalistas, que trazem para a curadoria literária o que chamo de “espírito do gancho”. É cinismo meu? Talvez. Mas, como afirmou o poeta brasileiro Ricardo Aleixo nas redes sociais, não é cinismo de Paulo Werneck citar estes nomes no tom de “mas eu tentei, eles recusam!”? Se houvesse realmente a preocupação política incontornável de escapar do racismo inerente de curadorias desta natureza no Brasil, não seria possível pensar em outros nomes, com todo um continente africano à disposição? Werneck elenca logo em seguida, entre os brasileiros, seus convites aos músicos Mano Brown e Elza Soares. Mano Brown e Elza Soares são nomes imprescindíveis da cultura brasileira hoje, mas o curador realmente esgota aí seu conhecimento de escritores negros no Brasil, e no mundo? Com autores como Sebastião Nunes, Miriam Alves e o próprio Ricardo Aleixo jamais tendo sido convidados?

E cá estamos falando novamente da Flip como se já não soubéssemos há tanto tempo que se trata de uma festa menos literária que editorial. Tivesse realmente preocupações políticas sérias, como o curador tenta afirmar em sua entrevista, ela já teria percebido que necessita descentrar o poder da curadoria, dividindo-a (por que não?) entre responsáveis pela literatura de cada continente, garantido uma verdadeira internationalização desta festa capengamente chamada de internacional, quando se mostra a cada ano extremamente eurocêntrica e anglófila. E, como já disse em outras ocasiões, que tal convidar grandes ESCRITORES, vindos de cada continente do globo, para o papel de CURADORES? Cá está minha contribuiçãozinha anual sobre o assunto.

Data

segunda-feira 30.05.2016 | 12:44

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