Nestes três anos, o contato com os moldes jornalísticos de escrita foi importante para mim como autor em outros campos. Se há maior clareza no meu pensamento por escrito hoje em dia, algo disso se deve a trabalhos como este. Foi também um período de reflexão sobre o papel do jornalismo cultural nos nossos tempos. Num momento em que todos os negócios, como acaba sendo um jornal, precisam pautar-se pela lei de oferta e procura, e portanto também pelos interesses e desejos dos consumidores (neste caso, os leitores de um jornal), como conciliar o papel de informação, questionamento e educação com estas questões? No campo do jornalismo cultural, como equilibrar a divulgação daquilo que é popular, em seu sentido na cultura de massas e que portanto traz leitores, com a defesa de expressões literárias e culturais à margem do mercado? Não sei se obtive a resposta ainda. Mas esta foi uma ótima experiência que me levou a debates excelentes com várias pessoas. Agradeço a todos que visitaram esta página ao longo dos três anos de sua existência. Espero que alguns leitores tenham encontrado informações novas por aqui, tanto sobre o que já conheciam parcialmente como sobre trabalhos que desconheciam.
A partir da próxima semana, vou discutir na coluna semanal, de forma específica, a produção literária alemã, com algumas incursões à relação literária entre Alemanha e Brasil. O foco portanto será sobre o que está acontecendo no espaço linguístico alemão, Alemanha em especial, mas com olhos para a Áustria, a Suíça e as outras pequenas comunidades de língua alemã em países como Bélgica e Luxemburgo. Falarei sobre livros recentes e antigos, a importância deles, e farei algumas recomendações de leitura. Por vezes, haverá conversas com escritores alemães e relatos sobre os eventos literários ao redor do país. Os lançamentos, os mais vendidos, o que se está lendo na Alemanha atualmente. Ficarei também de olho nas editoras brasileiras que traduzem do alemão, conversando sobre livros alemães lançados no Brasil. Espero que a coluna encontre seus leitores entre os que estão interessados na língua alemã, não apenas a falada nas ruas de Berlim e Munique, mas entre as páginas de Heinrich Heine e Bertolt Brecht, Christa Wolf e Sibylle Berg.
]]>Entre o livro de 1959 e a eclosão de seu trabalho em prosa em 1970, Hilda Hilst lançaria ainda as coletâneas de poemas Trovas de muito amor para um amado senhor, Ode Fragmentária, Sete cantos do poeta para o anjo (que recebeu o Prêmio PEN Clube de São Paulo), todos reunidos no volume de 1967. A partir de 1970, começa a alternar obras tão deslumbrantes quanto perturbadoras na prosa e na poesia e no teatro. Os próximos 25 anos seriam os seus mais fecundos, exilada por decisão própria na Casa do Sol em Campinas, e lançando artefatos raros como as novelas contidas em Qadós (1973) e os poemas de Júbilo, memória, noviciado da paixão (1974), reunindo sua obra poética de vinte anos mais uma vez em Poesia (1959/1979), e entrando então na década de 1980 com aquelas pequenas joias que são a coletânea Da Morte. Odes Mínimas (1980) e o romance A obscena senhora D (1982). Este último foi traduzido há poucos anos nos Estados Unidos e angariou um pequeno grupo de cultuadores em torno de seu nome, como já discuti aqui [“A recepção de Hilda Hilst em língua inglesa”, Contra a capa, DW Brasil, 12.09.2014].
No entanto, até meados da década de 1990 sua obra seguia envolta num quase completo silêncio. Apenas com sua guinada pornográfica é que alguma atenção, pouca, foi dedicada a seu trabalho. Só ao fim do século é que chega uma homenagem justa como ter dedicado a sua obra um dos volumes prestigiosos da série Cadernos de Literatura Brasileira do Instituto Moreira Salles. Por estes anos já havia praticamente abandonado a literatura, não sem antes dar-nos os poemas de Cantares do Sem Nome e de Partidas (1995) e encerrar o romance Estar Sendo. Ter Sido (1996) com um dos poemas mais poderosos da década de 1990, “Mula de Deus”.
Tudo isso é conhecido. Foi bonito ver Hilda Hilst receber seu culto devido (dai a Hilda o que é de Hilst) e vê-la poder colaborar, pessoalmente, com a organização da reedição de sua obra pela Editora Globo, a cargo de Alcir Pécora. Sua obra, portanto, não estava fora de catálogo nos últimos tempos. Estava muitíssimo bem editada. O que este volume único nos traz? Algumas coisas. Seus três primeiros livros, assim como inéditos garimpados por Júlia de Souza nos arquivos da escritora deixados para a Universidade de Campinas. São mais de 20 títulos, com fortuna crítica, posfácio de Victor Heringer, carta de Caio Fernando Abreu para a escritora, declarações de Lygia Fagundes Telles sobre a amiga e ainda uma entrevista de Hilda Hilst concedida a Vilma Arêas e Berta Waldman, publicada no Jornal do Brasil em 1989. A edição ficou a cargo de Alice Sant’Anna. Poderá chegar como um tijolo na consciência dos leitores mais jovens, assim como ficar de corpo poético inteiro nas estantes daqueles que já a admiram, como é meu caso.
São poucos inéditos, mas alguns são muito bonitos e é interessante imaginar o processo de decisão de Hilda Hilst sobre quais poemas entrariam e quais ficariam de fora. Há ainda entre eles uma imitação hilária que Hilda Hilst faz da poética de Adélia Prado: “devo bater / o osso no prato / e não achar um saco?”, talvez um comentário sardônico ao trabalho da colega que havia conquistado a atenção do público e da crítica já com o primeiro livro, Bagagem, à mesma época em que Hilda Hilst publicava, para o silêncio, uma de suas obras-primas, o lindo Júbilo, memória, noviciado da paixão. Seria interessante pensar em Hilda Hilst e Adélia Prado como contemporâneas, ainda que tenham estreado na literatura nacional em países praticamente estranhos um ao outro: o Brasil da década de 1950 e o da década de 1970. Mas tinham quase a mesma idade, Hilst nasceu em 1930, Prado em 1935. Desposaram misticismos muito diferentes em sua relação com o cristianismo, seus trabalhos são formalmente distintos – com Hilst voltada à tradição latina clássica de poetas como Caio Valério Catulo enquanto Prado ligava-se ao modernismo de poetas como Carlos Drummond de Andrade, e, no entanto, a poesia lírica de ambas tem o mesmo caráter carnal.
A Companhia das Letras vem lançando a obra completa de alguns poetas neste século. Além das reuniões muito discutidas de Paulo Leminski, Ana Cristina Cesar e Waly Salomão nos últimos anos e um único volume com 23 livros de Carlos Drummond de Andrade, seu catálogo já contava com os poemas reunidos de José Paulo Paes e Mário Faustino. É um time bastante variado, este a que Hilda Hilst agora se une. E, antes de encerrar, não poderia deixar aqui de homenagear Massao Ohno (1936-2010), o corajoso editor independente que manteve o trabalho de Hilda Hilst circulando por tanto tempo, em pequenas tiragens, quando grandes editoras como a Companhia das Letras não demonstravam qualquer interesse por sua obra antes da consagração.
]]>Há uma proposição do filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein que sempre me fascinou: “Wenn ein Löwe sprechen könnte, wir könnten ihn nicht verstehen” (Se um leão pudesse falar, nós não o compreenderíamos). Ao mesmo tempo, as implicações sempre me pareceram tristes: estamos presos a nossa esfera de experiência e compreensão. A isso une-se a ideia de que mesmo cada língua humana determinaria a maneira como pensamos e sentimos o mundo. Trata-se de um desafio a todo trabalho de tradução, portanto, mesmo entre humanos de línguas distintas. Para os nossos ouvidos, os sons feitos por animais também parecem todos iguais e uniformes, mas alguns pesquisadores afirmam que certos mamíferos, como as baleias, também têm dialetos distintos em cada grupo.
Há uma história a respeito disso que é bastante iluminadora sobre nós mesmos. As pesquisas mais sérias sobre a linguagem de outros mamíferos, especialmente baleias e golfinhos, só recebeu financiamento consistente quando se formulou o seguinte problema: em nossas explorações espaciais, se tivermos contato com alienígenas, como poderemos nos comunicar com eles se não conseguimos sequer nos comunicar com outras espécies do nosso próprio planeta?
Estou no momento em uma residência na Holanda, vivendo por dois meses entre um apartamento em Amsterdã e uma fazenda próxima da pequena vila de Starnmeer. Meu projeto é escrever um texto que lide com a presença colonial holandesa no território brasileiro. Mas o desafio que me impus nos traz à problemática que delineei acima, pois minha ideia é escrever esse texto a partir do ponto de vista de uma… capivara.
Antes que pensem que enlouqueci, me explico: como escrevi em uma crônica neste mesmo espaço [Aos holandeses que se esqueceram de suas invasões], visitei no ano passado uma exposição de alguns desenhos recém-descobertos de Frans Post (1612–1680) no Rijksmuseum. Eles foram feitos no Brasil durante sua passagem pela colônia com uma comitiva de artistas convidados por Maurício de Nassau (1604–1679), o “brasileiro”. Na exposição era possível também ver vários animais da fauna brasileira empalhados, e fui tomado por uma espécie de solidariedade muito estranha por uma capivara que ali estava: uma capivara do século 17 em plena Amsterdã do século 21.
Foi aí que a ideia começou a nascer. Para isso, venho pesquisando autores do que vem sendo chamado de “zoopoética”, a escrita sobre e, principalmente, através de outras espécies. No Brasil, hoje, uma grande pesquisadora do assunto é Maria Esther Maciel, que lançou nos últimos anos os volumes Pensar / escrever o animal: ensaios de zoopoética e biopolítica (2011) e Literatura e animalidade (2016). Um dos exemplos dentro da literatura brasileira a que Maria Esther Maciel recorre com frequência é o poema Um boi vê os homens, do livro Claro Enigma (1951) de Carlos Drummond de Andrade: “Tão delicados (mais que um arbusto) e correm / e correm de um para o outro lado, sempre / esquecidos de alguma coisa”, diz o boi a nosso respeito.
Mesmo antes de pensarmos nessa prática como uma experimentação específica, já a conhecíamos de textos de Clarice Lispector, com suas galinhas e baratas, e de João Guimarães Rosa com suas vacas e onças. Uma galinha, conto do livro Laços de família (1960), de Clarice Lispector, está entre os primeiros textos literários que li em minha vida de adolescente. De João Guimarães Rosa, cita-se com frequência o longo conto “Meu tio o iaueretê”, do livro Estas estórias (1969). Mas o que me marcou primeiramente foi o lindíssimo Sequência, das Primeiras estórias (1962), no qual seguimos a consciência de um jovem vaqueiro em caça a uma vaca fujona, ao mesmo tempo em que seguimos a consciência da própria vaca.
Maria Esther Maciel discute ainda outros trabalhos de autores brasileiros como Graciliano Ramos, João Alphonsus e Wilson Bueno, e estrangeiros como Jack London, Patricia Highsmith, Jacques Roubaud, Virginia Woolf, Luigi Pirandello, Lydia Davis e J.M. Coetzee, entre outros. Para isso, recorre a vários pensadores, como Jacques Derrida, Eduardo Viveiros de Castro e Donna Haraway. É um campo fértil, que traz implicações políticas, filosóficas e literárias. Como conviver com outras espécies? Quais são os seus direitos? Seus direitos são essencialmente diferentes dos nossos?
Assim como o racismo leva humanos a acreditarem que são superiores a outros, nos últimos tempos formulou-se o conceito de “especismo”, ou seja, o ponto de vista de que uma espécie, especialmente a humana, é superior às outras e possui direitos específicos, como o de explorar, escravizar e matar as demais espécies. A diferença entre espécies levaria à atribuição de direitos diferentes entre organismos?
Mais uma vez volto à proposição de Wittgenstein: se um leão pudesse falar, nós mesmo assim não o compreenderíamos. Sua existência leônica está essencialmente vedada a nossa compreensão humana. Se os adoradores de um mesmo deus não conseguem se compreender por pertencerem a seitas distintas, estaremos nós para sempre presos a um vocabulário e a uma sintaxe intransferíveis? Espero que a tentativa de encarnar uma capivara me leve a algumas respostas possíveis.
]]>Com sua obra mais importante no catálogo da Companhia das Letras e relançada há poucos anos, não se pode dizer que Pedro Nava tenha sumido das discussões literárias no Brasil. Mas é possível que muitos leitores mais jovens não o conheçam. Portanto, uma recapitulação: Pedro Nava foi um poeta e prosador brasileiro, nascido em Juiz de Fora, Minas Gerais, em 1903. Chamado de poeta bissexto, é autor de um dos poemas antológicos do modernismo brasileiro, O defunto. Reza a lenda que Pablo Neruda gostava de recitar o poema para amigos.
Mas é por sua obra memorialística que Nava conquistou seu lugar no cânone, com os seis volumes de sua autobiografia: Baú de Ossos (1972), Balão Cativo (1973), Chão-de-Ferro (1976), Beira-Mar (1978), Galo-das-Trevas (1981) e O Círio Perfeito (1983). O sétimo volume, Cera das Almas, permaneceu inacabado e foi publicado postumamente em 2006. A obra é considerada importante não apenas pelas memórias do autor, que conviveu com a fina flor da literatura nacional, mas por tecer um quadro amplo da cultura e sociedade brasileira no século 20.
O escritor cometeu suicídio no dia 13 de maio de 1984. Aqui entramos no tema verdadeiro deste artigo. Trata-se de um dos episódios mais tristes da literatura brasileira. Naquele dia, Pedro Nava teria recebido uma ligação. Ao desligar o telefone, disse à mulher que nunca ouvira “nada tão aviltante”, e saiu de casa com um revólver. Duas horas depois, seu corpo foi encontrado na Praça Paris, no bairro carioca da Glória, onde morava. O autor estaria sendo chantageado por um garoto de programa, mas a imprensa à época abafou o caso. Em uma entrevista à Folha de São Paulo, a romancista Rachel de Queiroz, prima do autor, diria:
Folha de S. Paulo – Por que você não se refere à homossexualidade de seu primo Pedro Nava?
Rachel de Queiroz – Porque foi muito recente sua morte, porque éramos ligadíssimos e porque ele se matou para esconder isso. Então, todos nós respeitamos. Ele se matou para não ser desmascarado por um sujeito que estava fazendo chantagem.
Neste aspecto, respeito a decisão dos amigos, por respeito à vontade aparente do próprio Nava. Por uma espécie de solidariedade de pele própria. No entanto, o silêncio em torno do caso vem geralmente ligado a uma ideia de “defesa de honra” que é indefensável hoje em dia, ainda que levemos em consideração questões geracionais. Um arco histórico triste se entesa entre o tiro desferido contra si mesmo por Raul Pompeia em 1895 e o de Nava em 1984, ambos no Rio de Janeiro.
“Ao jornal ‘A Notícia’, e ao Brasil, declaro que sou um homem de honra.”
— Raul Pompeia, bilhete suicida, Rio de Janeiro, 1895.
“Nunca ouvi nada tão aviltante.”
— Pedro Nava, últimas palavras conhecidas antes do suicídio, Rio de Janeiro, 1984.
Há dois anos a carta de Mário de Andrade a Manuel Bandeira, na qual dava indícios claros de sua homossexualidade, foi liberada pela Casa Rui Barbosa após uma decisão judicial. O caso leva agora à liberação dos papéis de Nava segundo artigo de Maurício Meireles [“Casa de Rui Barbosa libera acesso a documentos secretos de Pedro Nava”, Folha de S. Paulo, 09.04.2017]. O caso me levou a comentar nas redes sociais que chegam os dias em que os armários se escancaram, depois de mortos os que se viram obrigados a viver dentro deles. E mencionei as feiíssimas ideias sobre moralidade sexual que amigos de Mário de Andrade e Nava pareciam ter.
Eu me referia às piadas que Oswald de Andrade costumava fazer sobre seu então desafeto Mário de Andrade, como dizer que ele parecia “um Oscar Wilde por detrás”, e à entrevista horrorosa de Carlos Drummond de Andrade em 1984 à pesquisadora Maria Lúcia do Pazo, quando questionado sobre a homossexualidade, na qual disse imbecilidades que prefiro não repetir.
Em resposta a meu comentário, Ruy Lozano lembrou que a entrevista fora dada logo após o suicídio de Nava, e que a reação de Drummond fora de dor, ainda que violenta e equivocada. Ele então postou um artigo de Marcelo Bortoloti no qual o jornalista discute a entrevista de Drummond e seu poema Rapto, do livro Claro Enigma (1951), à luz do suicídio de Nava [“A homossexualidade na vida e na obra de Carlos Drummond de Andrade”, Folha de S. Paulo, 26.07.2015].
O poema parte do mito de Ganimedes, o jovem raptado por um Zeus apaixonado, em forma de águia para levá-lo ao Olimpo. Tal mito receberia leituras diversas ao ser transplantado da cultura grega clássica para a cultura cristã.
Rapto
Carlos Drummond de Andrade
Se uma águia fende os ares e arrebata
esse que é forma pura e que é suspiro
de terrenas delícias combinadas;
e se essa forma pura, degradando-se,
mais perfeita se eleva, pois atinge
a tortura do embate, no arremate
de uma exaustão suavíssima, tributo
com que se paga o voo mais cortante;
se, por amor de uma ave, ei-la recusa
o pasto natural aberto aos homens,
e pela via hermética e defesa
vai demandando o cândido alimento
que a alma faminta implora até o extremo;
se esses raptos terríveis se repetem
já nos campos e já pelas noturnas
portas de pérola dúbia das boates;
e se há no beijo estéril um soluço
esquivo e refolhado, cinza em núpcias,
e tudo é triste sob o céu flamante
(que o pecado cristão, ora jungido
ao mistério pagão, mais o alanceia),
baixemos nossos olhos ao desígnio
da natureza ambígua e reticente:
ela tece, dobrando-lhe o amargor,
outra forma de amar no acerbo amor.
A primeira vez que ouvi sobre a entrevista de Drummond foi no apartamento do poeta gaúcho Marcus Fabiano Gonçalves no Rio de Janeiro, que me falou dela e também trouxe à baila o poema Rapto. Por ocasião da publicação da carta de Mário de Andrade, ele escreveu:
“O tema da revelação da carta de Mário para Bandeira é complexo, pois envolve os limites de subsistência da vontade de duas pessoas ausentes a respeito de cenários que não puderam vislumbrar. E isso sempre foi, para o Direito e para a História, um tema delicadíssimo. Se Manuel Bandeira tivesse destruído a carta que lhe foi confiada sob a exigência do perpétuo sigilo, essa discussão simplesmente não estaria ocorrendo. Mas como na história conjectural a hipotetização dos cenários sempre cede à ventura irreversível dos fatos consumados, eis-nos aqui, celebrando, e até com certo alívio, a comprovação biográfica de um elemento que certamente não pode ser desconsiderado na assim chamada erotologia de Mário de Andrade.” [Marcus Fabiano Gonçalves, “Homossexualidade e anacronia”, Zero Hora, 20.06.2015].
É extremamente perigoso usar um texto literário como defesa ou ataque a uma posição ideológica de qualquer autor. De qualquer forma, afirmo que minha admiração pela poesia de Drummond não se esfriou nem por um centígrado sequer após ouvir sobre sua entrevista. O que senti naquele momento em primeiro lugar, creio, foi espanto, pois talvez sempre tenha imaginado o mineiro como um “aliado” devido a seu anticlericalismo praticamente militante, que sempre pareceu levá-lo a estar do lado “certo” da História em tantos episódios. Sinto portanto solidariedade por homens como Raul Pompeia, Mário de Andrade e Pedro Nava, e também compreensão mesmo por homens como Oswald de Andrade e Carlos Drummond de Andrade em seus momentos decepcionantes em relação a esta questão. Fui obrigado a desenvolver esta compreensão por causa do meu próprio pai.
Quanto à relação conflituosa de Pompeia, Mário e Nava com a própria sexualidade, basta pensar em como o “pecado cristão, ora jungido ao mistério pagão” complicou mesmo a vida de um autor como o alexandrino grego Konstantínos Kaváfis, muito mais aberto sobre sua vida sexual em sua obra, e que no entanto demonstrou agonia de culpa em vários poemas.
Esta, portanto, não é uma conversa sobre literatura, mas sobre política, e ela ainda nos importa e informa. A entrevista de Drummond é tristíssima quando pensamos em sua data, 1984. No ano anterior, Ana Cristina Cesar cometera suicídio no mesmo Rio de Janeiro. O silêncio em torno de sua sexualidade até hoje mostra como certas coisas não mudaram desde os dias de Mário de Andrade. Naquele momento, o número de assassinatos contra homossexuais no Brasil já era algo assustador, como vemos no documentário de Rita Moreira, Temporada de caça (1988), trazendo entrevistas com José Celso Martinez Corrêa e com os poetas Roberto Piva e Néstor Perlongher.
Portanto, a relação da intelectualidade brasileira com a questão continua difícil. Com a liberdade pessoal de homens como Lúcio Cardoso, Roberto Piva, Néstor Perlongher convivia o silêncio em torno de Mário de Andrade, Pedro Nava e Ana Cristina Cesar. Neste aspecto, Marcus Fabiano Gonçalves lembra-nos de algo muito importante, muitas vezes ignorada nesta discussão: as diferenças no Brasil que esta questão suscita quando trazemos à conversa a pluralidade religiosa, étnica e de classe do país. Sobre isso, ele mencionou o documentário Tomba Homem (2008), de Gibi Cardoso, sobre o último travesti da geração de Madame Satã e Cintura Fina:
“É bom lembrar que também temos uma outra tradição homoerótica entre nós: aquela de rua e de franca ascendência africana, calcada sobre a tolerância do candomblé e da umbanda às articulações de gênero não tradicionais. No Rio, por certo não é à toa que a distinta Glória do Dr. Pedro Nava faça fronteira com a sombria Lapa de tantos malandros famosos e anônimos.” – Marcus Fabiano Gonçalves na redes sociais.
Pela memória de Pompeia, Mário de Andrade, Nava, Cesar, Martinez Corrêa e por aqueles que continuam matando-se e sendo mortos no Brasil por sua sexualidade, é urgente que aprendamos a falar sobre isso como adultos.
]]>Em agosto de 2016, escrevi um artigo intitulado A escrita do amor fora das normas do patriarcado brasileiro dividido em primeira e segunda parte. Nele, discutia a literatura no Brasil por seu viés homoerótico, a partir dos nomes mais importantes no país de uma escrita que poderia ser compreendida como queer. Mencionava autores como Lúcio Cardoso, Roberto Piva e Ana Cristina Cesar, que já nos deixaram. Naquele momento, parecia-me importante ler autores já (quase) canônicos por esta perspectiva. Minha ideia era encerrar o artigo com uma terceira parte, na qual tentaria chamar a atenção dos leitores para alguns nomes mais recentes, de autores vivos. Não prossegui com a série porque queria pesquisar mais, e também porque a discussão de autores vivos sempre complica a conversa em vários aspectos.
Alguns acontecimentos da última semana me motivaram a tentar voltar àquele artigo. Em primeiro lugar, a morte de João Gilberto Noll no dia 29 de março [2017|. Ao escrever sobre ele, retornei ao assunto pela percepção da sexualidade que perpassa tantos de seus textos, o que me levou novamente a mergulhar em alguns ensaios que tratam dessa questão. Em seguida, li um artigo de Vanessa Thorpe no ‘Guardian’ [Tate Britain celebrates 50 years of gay freedom, The Guardian, 01.04.2017] sobre a abertura da exposição na Tate dedicada à arte queer do país, marcando as comemorações do cinquentenário da descriminalização da homossexualidade no Reino Unido. E por fim um amigo me enviou um documentário de Rita Moreira, Temporada de caça (1988), que trata da violência contra homossexuais que grassava por São Paulo e Rio de Janeiro naquela década.
O filme inclui um depoimento de José Celso Martinez Corrêa, que discute o assassinato brutal de seu irmão, Luís Antônio Martinez Corrêa (1950–1987), assim como de Jorge Mautner, Néstor Perlongher e Roberto Piva. O vídeo também traz entrevistas de rua com vários cidadãos brasileiros não só defendendo como fazendo apologia ao assassinato de homossexuais. Trata-se de um documentário extremamente perturbador.
Durante o ápice da epidemia de aids nos anos 1980 e 1990, ativistas americanos usavam como lema a ideia de que SILÊNCIO = MORTE. Quebra-se o silêncio com a palavra, matéria-prima do escritor. Muitos discordam de que seja papel da literatura tratar desses horrores sócio-culturais. Mas a violência começa pela linguagem. Pelas ofensas verbais que homossexuais (assim como negros e mulheres) sofrem todos os dias nas ruas do país. É na facilidade dessas ofensas pela linguagem que nasce a impunidade dos crimes capitais.
E é aqui, sabendo que silêncio significa morte, que eu gostaria de fazer uma homenagem a um escritor que não discuti nos outros artigos: Caio Fernando Abreu (1948–1996). Ainda que menos estético do que ético, seu trabalho teve um impacto enorme sobre minha vida na adolescência, especialmente com suas Cartas para além dos muros, mas também em contos como Os dragões não conhecem o paraíso. Por sua coragem para quebrar o silêncio. Nos últimos meses, a pesquisa sobre essa escrita me deu alguns presentes, como a descoberta do universo de Samuel Rawet, autor tão injustamente esquecido.
Mas esta última parte de A escrita do amor fora das normas do patriarcado brasileiro deve ser uma pequena lista de recomendações dentre os vivos. De vivos para vivos. E, entre os vivos, a figura de Silviano Santiago continua sendo uma de nossas maiores referências. Sua última publicação como crítico é o ensaio Genealogia da ferocidade (Recife: CEPE / Suplemento Pernambuco, 2017), no qual discute a complexa obra-prima que é Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa. Como romancista, lançou recentemente Machado (2016) e Mil rosas roubadas (2014), ambos pela Companhia das Letras. Este último é sua contribuição mais recente a uma escrita da homoafetividade no Brasil, mas seu trabalho mais importante e pioneiro neste aspecto continua sendo o romance Stella Manhattan (1985), já traduzido para o inglês, o espanhol e o francês. Nele, Silviano Santiago criou algumas das personagens mais não convencionais da literatura brasileira contemporânea, como Stella Manhattan, a Viúva Negra e La Cucaracha, no clima de repressão sexual-política da ditadura militar.
Sem se ater à biografia dos autores mas partindo da busca por uma homotextualidade, Cristina Ferreira Pinto-Bailey discute em seu ensaio O desejo lesbiano no conto de escritoras brasileiras contemporâneas os trabalhos de cinco mulheres: Fátima e Jamila (1976), de Sônia Coutinho; Intimidade (1977), de Edla van Steen; A mulher de ouro (1984), de Myriam Campello; A Escolha (1985), de Lygia Fagundes Telles; e Tigresa (1986), de Márcia Denser.
“Se a expressão da experiência erótica feminina chega a ser tão problemática, a representação da sexualidade lesbiana o é ainda mais, pois rompe com as relações dominantes de gênero, ao excluir a figura do homem e colocar a mulher em uma posição de sujeito atuante, em vez do papel tradicional de objeto do desejo masculino”, escreve.
“Assim, o desejo lesbiano na obra de escritoras brasileiras não só representa uma dimensão importante da sexualidade feminina, como também serve para expor e questionar o controle social sobre a sexualidade e o corpo femininos.”
Dessa lista, chamo a atenção para o trabalho de Márcia Denser, uma de nossas melhores prosadoras vivas. A reedição de Teatro fantasma (1977) e Diana Caçadora (1985) em um só volume pela Ateliê Editorial deveria finalmente fazer o trabalho da autora chegar às mãos dos leitores das novas gerações. No mês passado, o Suplemento Pernambuco publicou também um conto inédito de Myriam Campello, que integra o livro Palavras são para comer, lançado há duas semanas pela editora Oito e meio. Ela é a autora ainda dos romances Sortilegiu (1981) e São Sebastião Blues (1993), entre outros.
Outros trabalhos que poderíamos discutir aqui são os de Assionara Souza, Angélica Freitas, Tatiana Pequeno e Bianca Lafroy, assim como os de Renato Negrão, Rafael Mantovani e Ismar Tirelli Neto. Descubra-os. Seus trabalhos devem ser lidos e julgados em primeiro lugar por sua qualidade literária. Concordamos. Mas são também autores que, ao quebrar o silêncio, ajudam-nos a escapar um pouco da morte. Pois são quase 30 anos desde o documentário assustador de Rita Moreira, e o que mudou nestas três décadas?
A violência contra homossexuais no Brasil continua assustadora. Talvez precisemos também de um exposição como a da Tate, trazendo trabalhos de artistas como Hélio Oiticica, Alair Gomes e José Leonilson, unindo-os ao trabalho literário de homens como Roberto Piva e mulheres como Ana Cristina Cesar. Não vamos esperar mais 20 ou 30 anos para mudanças verdadeiras na situação.
É portanto em tom irônico que encerro este artigo com um dos meus poemas favoritos de Horácio Costa, talvez o mais importante poeta queer surgido no Brasil após Roberto Piva:
Vinte Anos Depois é um romance de Alexandre Dumas
duas décadas não são nada
é a média de vida do homem primitivo do escravo romano
é a idade de um cão muito muito velho
é a média de glória de um artista maior
o tempo sem celulite de uma cortesã
o lapso de procriação depois do casamento
quatro ou cinco mandatos políticos o auge de um Império
vinte anos levou a Constantino reformar Bizâncio
vinte anos fizeram a fortuna de Frick Morgan e Du Pont
vinte anos entre a apresentação no Templo e a crucificação
vinte anos é a matéria dos memorialistas
vinte anos e o povo se cansa da Revolução
vinte anos depois Odette está casada e Marcel morto
a roda o computador pessoal a moda das perucas brancas se
popularizam em não mais de vinte anos
Quéfren e Miquerinos construíram suas pirâmides
em vinte curtos anos
vinte anos depois o cadáver está frio olvidadíssimo
vinte anos de exercício e o êxtase desce ao asceta
nada nada são duas décadas vinte vezes nada
a ponte nova entre aqui e ali está congestionada hoje
a então chamada ponte do futuro já não serve mais
agora quando estás nela também estás aqui
tinhas o cabelo solto tinhas a rédea solta
soltas tinhas as palavras
há vinte anos
entre aqui e ali
(Horácio Costa, Quadragésimo, 1999)
]]>A posição de Noll já era mais estabelecida. Sua estreia com o livro de contos O cego e a dançarina havia, afinal, recebido os prêmios Jabuti, da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) e do Instituto Nacional do Livro. Enquanto outros escritores recebem prêmios sem chegar a um público mais amplo, como eram os casos já naquela época de Hilda Hilst ou Orides Fontela, Noll começava naquele fim de século a ser reconhecido como um dos grandes escritores em atividade na República.
Leitores mais jovens como eu podiam chegar a ele de forma completa no volume dos romances e contos do gaúcho reunidos numa edição imponente de capa dura que a Companhia das Letras havia lançado em 1997. Foi justamente este volume que abri no início de seu primeiro romance, A fúria do corpo, publicado originalmente em 1981. O título havia me atraído. Queria corpo e queria fúria.
“O meu nome não. Vivo nas ruas de um tempo onde dar o nome é fornecer suspeita. A quem? Não me queira ingênuo: nome de ninguém não. Me chame como quiser, fui consagrado a João Evangelista, não que o meu nome seja João, absolutamente, não sei de quando nasci, nada, mas se quiser o meu nome busque na lembrança o que de mais instável lhe ocorrer. O meu nome de hoje poderá não me reconhecer amanhã. Não soldo portanto à minha cara um nome preciso.”
— João Gilberto Noll, início de A fúria do corpo (1981).
O que me prendeu imediatamente àquela escrita foi seu fluxo febril, aquele narrador possesso, a obsessão pelo corpo e suas escuridões. Era fluxo de fala e exatamente o que eu buscava na literatura brasileira naqueles anos, após ter lido os escritores principais e mais celebrados entre nós, famosos justamente por sua elegância, sua secura, sua precisão. Eu queria febre e fome, o que já havia feito de Hilda Hilst uma descoberta desnorteante para mim naquela mesma época. Nos cantos escuros da literatura brasileira, eram textos que não negavam nossas experiências corporais que eu buscava e ia encontrando em trabalhos como A obscena senhora D, de Hilda Hilst; Abra os olhos e diga Ah!, de Roberto Piva; O animal dos motéis, de Márcia Denser; Me segura que eu vou dar um troço, de Waly Salomão; e naquela fúria do corpo do narrador de Noll.
Essa obsessão pelo corpo se dava em personagens e histórias que circulavam pelas noites escuras e às margens do país oficial, mas não era inicialmente um interesse pelo submundo e pelos inferninhos o que me havia atraído. Talvez hoje possamos dizer, na verdade, que a recusa a abstrair o corpo e suas escuridões é o que lança essas personagens às margens. Sabemos o que faz o Brasil cristão-carnavalesco com aqueles que se despem nas horas não estipuladas pelo calendário de feriados. Ou que se despem com desejo perante corpos que algum livro sagrado tenha pregado não serem naturais para corpos pelados juntos. Vivemos num país que busca controlar nossos orifícios e secreções. Era também por essas épocas que começava a perceber como essa escrita do corpo parecia ser mais frequente em escritores homossexuais, em mulheres, em negros. Mas o porquê de o corpo parecer por vezes menos abstrato nesses escritores seria assunto para um longo ensaio.
Do livro de estreia de Noll, o conto Alguma coisa urgentemente entraria na antologia de melhores contos brasileiros do século organizada por Italo Moriconi, após ter sido adaptado para o cinema por Murillo Salles ainda na década de 80, no filme Nunca fomos tão felizes (1984). Harmada seria filmado por Maurice Capovilla em 2003, e Hotel Atlântico, por Suzana Amaral em 2009. Nestes últimos anos, Noll era um escritor consagrado, ainda que a sexualidade escancarada de alguns de seus trabalhos ainda causasse desconforto para a crítica. Isso seria assunto para outra longa discussão: a abstração da sexualidade em autores como Mário de Andrade por parte de certa crítica, e como a explicitação política dessa sexualidade em um autor como Lúcio Cardoso condiciona a recepção de sua obra. Na literatura do pós-guerra, isso se torna mais complexo ao pensarmos na recepção de autores como Noll e seu conterrâneo e contemporâneo Caio Fernando Abreu, além de vários outros.
Noll nasceu no dia 15 de abril de 1946, na cidade de Porto Alegre, onde morreu esta madrugada. Publicou, além dos livros aqui mencionados, Bandoleiros (1985), Rastros de Verão (1986), O Quieto Animal da Esquina (1991 – traduzido nos Estados Unidos por Adam Morris como Quiet creature on a corner), Harmada (1993), A Céu Aberto (1996), Canoas e Marolas (1999), Mínimos Múltiplos Comuns (2003), Lorde (2004), Acenos e Afagos (2008), Anjo das Ondas (2010) e Solidão Continental (2012), entre outros. A literatura brasileira se tornou hoje um pouco menos febril com a morte do gaúcho. Ficou um pouco mais limpinha, mais sequinha, como querem alguns que seja o tempo todo. Restam-nos as febres do passado e a espera por novas febres futuras.
]]>No último dia 17 de março, o mundo perdeu Derek Walcott, poeta e dramaturgo santa-lucense, caribenho e das Américas, que se tornou mundialmente conhecido ao receber o Prêmio Nobel de Literatura em 1992. Meu primeiro contato com seu trabalho se deu ainda na década de 1990, quando a TV Cultura exibiu um documentário inglês sobre o autor, filmado na própria ilha de Santa Lúcia. Com 539 quilômetros quadrados e 162 mil habitantes, o pequeno ponto no mapa se tornou independente apenas no fim da década de 1970 e também deu ao mundo Sir Arthur Lewis, Prêmio Nobel de Economia em 1979.
No documentário, ouvíamos Walcott, dono de um estilo claro e ao mesmo tempo exuberante, lendo alguns dos poemas que já o haviam tornado conhecido no mundo anglófono. Ou talvez a exuberância viesse também daquilo que cantava: a própria beleza tropical de sua ilha natal. À época do documentário, Walcott trabalhava em seu trabalho mais conhecido e citado hoje, o longo poema narrativo e épico Omeros (1990), editado no Brasil em 1994 pela Companhia das Letras com tradução de Paulo Vizioli. Ao publicar Omeros, Walcott já havia porém lançado livros admiráveis como Sea Grapes (1976) e Midsummer (1984), sempre dedicado à paisagem viva das espécies que tinham Santa Lúcia por lar, entre humanos, pássaros e plantas.
Mas também suas experiências como poeta pós-colonial no mundo da língua inglesa, que se encontrava em seus últimos anos de poder imperial e colonial pelo planeta. Como inserir-se nessa língua, que se dizia dos colonizadores? Esta tem sido uma pergunta constante nas poesias das Américas, seja em inglês, português, espanhol ou francês. E foi na vida de pescadores simples que Walcott encontrou seu material épico, conectando sua existência nas águas do Caribe à existência dos homens históricos e míticos nas águas do Mediterrâneo.
A um brasileiro, essa sua lealdade ao mar e aseu povo soa por vezes extremamente familiar pelas canções de Dorival Caymmi e pelos romances de Jorge Amado. E mesmo para leitores brasileiros que já experimentaram essa busca por uma independência poética com os modernistas de 1922, é muito bonito ouvir Walcott defender no documentário a beleza virginal das mangueiras tropicais, tão pouco descritas na poesia, contra a beleza já cantada dos carvalhos europeus. Dos papagaios e não dos rouxinóis. E a força do pescador caribenho Achilles, personagem de sua terra, em relação à força do guerreiro grego Aquiles, personagem de outra terra.
No entanto, como escritor pós-colonial, Walcott cantava a beleza de Santa Lúcia e a força de seu povo sabendo que a grande maioria negra da ilha (85%) havia ali chegado como força de trabalho escrava, sequestrada das margens da África, e era ainda mantida em grande pobreza por uma elite herdeira dos privilégios de um mundo colonial. Foi em meio a essas contradições que Walcott construiu sua obra, sabendo-se poeta santa-lucense e caribenho, em casa na língua inglesa, mas jamais deixando de comunicar-se com as origens históricas, como atesta seu poema A Far Cry From Africa. Poetas importantes do pensamento negro no Brasil vêm lidando com essas questões, como Adão Ventura e Paulo Colina, ainda que suas obras continuem soterradas sob o silêncio da mídia ignorante.
Walcott nasceu em 1930 na capital de Santa Lúcia, a cidade de Castries. Enriqueceu a língua inglesa com os acentos também da língua crioula santa-lucense. Foi um dos gigantes da geração de poetas do pós-guerra, que vamos perdendo aos poucos nesses últimos anos. Restam-nos contemporâneos seus, como o nigeriano Wole Soyinka, o americano John Ashbery, a austríaca Friederike Mayröcker ou o brasileiro Augusto de Campos. Que suas obras sigam nos guiando nestes tempos escuros de recolonização.
]]>Mas não podemos ignorar as fronteiras tal como funcionam hoje. Nos últimos tempos, comecei a perceber que para certos europeus mais jovens é realmente difícil compreender que, apesar de abstratas neste sentido geográfico, fronteiras são reais, obstáculos verdadeiros para a maior parte das pessoas deste mundo. Viajei muito no ano passado, quando a crise migratória se intensificou. Jamais fui obrigado a mostrar tantas vezes meu passaporte ao cruzar fronteiras entre países no continente quanto nesse período. Ônibus parados entre Holanda e Alemanha, e novamente entre esta e a Áustria, ou policiais exigindo os passaportes de todos os passageiros em trens, mesmo entre países que firmaram o Acordo de Schengen. Minha experiência mais estranha foi há duas semanas, quando tentei cruzar o Canal da Mancha de barco, da França à Inglaterra, justamente em Callais. O que antes fora apenas um porto, como outro qualquer, hoje está cercado por inúmeras cercas de arame farpado. É uma cena de calamidades, que remete a um filme distópico como ‘Children of Men’ (2006), de Alfonso Cuarón. Apenas alguns dias antes da minha passagem, a chamada “selva de Callais”, com centenas de refugiados, havia sido forçosamente evacuada pela polícia francesa. Amigos que fazem a viagem com frequência relataram imagens assustadoras desde o início da catástrofe humanitária que vem se desenrolando entre África, Oriente Médio e Europa.
Os amigos europeus na casa dos 20 ou 30 anos, viajando apenas com suas identidades muitas vezes, sem sequer precisar de passaporte, entrando em países de outros continentes, realmente têm dificuldade em compreender como é difícil mover-se no mundo. Nunca precisaram ir ao Departamento de Estrangeiros. Vejam bem, não estou querendo começar uma polêmica entre os leitores desta página em relação à política migratória alemã. Não queria que esse texto (ou apenas sua chamada) fosse apenas a desculpa para brigas em caixas de comentário. Esse texto gostaria mais de chamar a atenção para nossos conceitos de fronteira, e sugerir que antes que comecemos discussões a respeito, possamos compreender o verdadeiro impacto delas nas vidas das pessoas. Que só comecemos certas conversas quando estamos bem informados ao menos sobre como estas fronteiras foram formadas historicamente. Com nossa cultura de atualizações a cada 5 minutos, vamos perdendo cada vez mais nossa noção e orientação histórica. Mesmo as discussões sobre a crise migratória parecem tratá-la apenas em termos de curto prazo, quer-se apenas esconder o problema, ou jogá-lo no colo de outros. Não se compreende sequer seu motivo. Seus motivos. Não apenas a guerra, mas o fato de que as mudanças climáticas causadas por todos nós já começam a atingir várias regiões do planeta, com secas terríveis nunca antes vistas. E isso, nos próximos anos, só deverá piorar.
]]>Canto feminino kuikuro
vamos banhar
disse-me o meu amor
lave-me e tire um pouco do meu cheiro de copaíba
lave-me e tire um pouco do meu urucum
disse-me o meu amor
(tradução de Bruna Franchetto)
:
uãka kete
uhisü kilü uheke
utalitsügü kutsonkgitomi
umüngitsügü kutsonkgitomi
uhisü kilü uheke hegei
§
A noite não adormece nos olhos das mulheres
A noite não adormece
nos olhos das mulheres
a lua fêmea, semelhante nossa,
em vigília atenta vigia
a nossa memória.
A noite não adormece
nos olhos das mulheres,
há mais olhos que sono
onde lágrimas suspensas
virgulam o lapso
de nossas molhadas lembranças.
A noite não adormece
nos olhos das mulheres
vaginas abertas
retêm e expulsam a vida
donde Ainás, Nzingas, Ngambeles
e outras meninas luas
afastam delas e de nós
os nossos cálices de lágrimas.
A noite não adormecerá
jamais nos olhos das fêmeas
pois do nosso sangue-mulher
de nosso líquido lembradiço
em cada gota que jorra
um fio invisível e tônico
pacientemente cose a rede
de nossa milenar resistência.
— Conceição Evaristo
§
Ainda era Rio de Janeiro, Botafogo
Eu me confundi comendo pão
Eu perdi o óculos
Ele ficou com o óculos
Passou a língua no óculos para tratar o óculos com a língua
Ela na vigilância do pão sem poder ter o pão
Essa troca de sabedoria de ideia de esperteza
Dia tarde noite janeiro fevereiro dezembro
Fico pastando no pasto à vontade
Um homem chamado cavalo é o meu nome
O bom pastor dá a vida pelas ovelhas
— Stela do Patrocínio
§
Anatomia
Meu corpo se dobra na curva dos dias,
as ondas passam prenhes de pássaros, peixes e maresias
o mar bebe o mundo com sua língua de onda
e meu útero permanece vazio.
Desconsolada,
engoli naufrágios inteiros
com pescadores e navios
e meus sonhos ganharam pele de peixe.
(Ando com esta barriga murcha,
recolhida no labirinto das entranhas.)
Meu útero bebeu a tinta das letras,
comeu papéis e teclas,
guardou-se debaixo do travesseiro, para o quando,
guardou-se no bolso, numa caderneta fina, para se.
Tudo vão:
Meu útero apenas ganhou guelras
e respira submerso.
— Lívia Natália
§
uma mulher sóbria
é uma mulher limpa
uma mulher ébria
é uma mulher suja
dos animais deste mundo
com unhas ou sem unhas
é da mulher ébria e suja
que tudo se aproveita
as orelhas o focinho
a barriga os joelhos
até o rabo em parafuso
os mindinhos os artelhos
— Angélica Freitas
§
Oriki de Oiá-Iansã
Ê ê ê epa, Oiá ô.
Grande mãe.
Ia ô.
Beleza preta.
No ventre do vento.
Dona do vento que desgrenha as brenhas
Dona do vento que despenteia os campos
Dona da minha cabeça
Amor de Xangô.
Duzentas e uma esposas
O seu amado domina.
Oiá é a favorita.
Um dia de guerra bastou
Para a sua glória.
Orixá que abraçou seu amor terra adentro.
Com o dedo tira a tripa do inimigo.
Oiá que cuida das crianças
Toma conta de mim.
Seu fogo queima como sol.
Ela dorme dançando.
Epa, Oiá ô.
Não me queime o sol de sua mão.
Ligeira mulher guerreira
Corre veloz o fogo de Oiá
Oiá veloz faz o que fizer.
Fêmea forte com passos de macho
Moradora de Irá
Grande guerreira
Enérgica se ergue à mira do marido.
Vendaval e brisa.
Força de orixá que está no alto.
Oiá que vem à vila envolta em fogo.
Rara Oiá, rumores de amores com Ogum.
Aquela que dorme na forja.
Oiá na cidade, Oiá na aldeia
Mulher suave como sol que se vai
Mulher revolta como o vendaval
Levanta e anda na chuva
Assim é a grande Oiá
Eparipá, Oiá ô, he-hê-hê
Firme no meio do vento
Firme no meio do fogo
Firme no meio do vendaval
Firme orixá
Que bate sem mover as mãos
Firme orixá
Que tomou o tambor para tocar
E com pouco rasgou o couro
Epa, vocês tragam mais um tambor
Firme orixá
Epa, ela dançou sob a árvore aiã
Eparipá, as folhas de aia caíram todas
Orixá que é só axé
Castiga sem ser castigada
Dona do vento da vida.
Aquela que luta nas alturas.
Que doma a dor da miséria
Que doma a dor do vazio
Que doma a dor da desonra
Que doma a dor da tristeza.
Mulher ativa, amor de Xangô
Bela na briga, altiva Oiá.
Mãe lúcida.
Fecha o caminho dos inimigos.
Deusa que fecha as veredas do perigo.
Egungum de pé no pilão.
O que é isso?
Oiá espanta o babalaô, que nem apanha o seu ifá.
Oiá, o tempo que fecha sem chuva
Fogo no corpo todo
Riscafaísca – fogo.
Oiá corpo todo de pedra.
Com Oiá eu sou.
Com axé de Oiá na cabeça.
Minha cabeça aceitou a sorte.
Esse orixá me carrega no colo.
Amor de Xangô
Êpa, senhora sem medo
De segredo de egum.
Ialodê
Espada na mão
Bela no batuque
Do tantã tambor.
Ventania que varre lares
Ventania que varre árvores
Não nos desarvore.
Epa Oiá, maravilha de Irá.
Quem não sabe que Oiá é mais que o marido?
Oiá é mais que o alarido de Xangô.
(tradução de Antonio Risério)
]]>Há poucos dias, conversava com um amigo americano sobre o fato de que se traduz pouco nos Estados Unidos. Ambos lamentávamos que não houvesse mais interesse por literatura estrangeira no norte, ainda que algumas editoras independentes como a Action Books e a Burning Deck Press, entre outras, se esforcem bastante neste sentido, assim como a excelente revista Asymptote Journal. No entanto, eu disse a ele que essa insularidade dos EUA tinha ao menos um efeito positivo para eles. Pois, como há a demanda constante de escritores e quer-se que estes escritores sejam americanos, há uma pesquisa maior entre eles sobre os autores que possam ter sido ignorados enquanto vivos, ou que ainda produzam em obscuridade.
Editoras comerciais e universitárias publicam com uma frequência maior as obras de autores do passado, completamente desconhecidos ou esquecidos. O cânone americano parece ter um caráter de processo interminável muito mais do que entre nós, onde a inflação bibliográfica – sempre sobre os mesmos autores – torna a lista de escritores estudados uma procissão de santos imutável. Já foi discutido como isso está claro na própria palavra “cânone”: santo não cai do altar.
Há esforços importantes no Brasil que precisam receber maior atenção. Para mencionar dois recentes, a editora da Universidade Federal do Pará começou a relançar a obra completa do poeta paraense Max Martins, e o Selo Demônio Negro, capitaneado por Vanderley Mendonça, acaba de lançar a poesia completa da carioca Gilka Machado. Outros acontecimentos importantíssimos são a reedição dos romances do mineiro Campos de Carvalho (Editora Autêntica) e a reedição das peças do dramaturgo paulista Plínio Marcos (Funarte). Fico feliz que esss iniciativas tenham encontrado eco na grande imprensa, com artigos em jornais de São Paulo e do Rio de Janeiro. Um dos problemas dos grandes jornais paulistanos e cariocas é comportarem-se como imprensa local em questões de cultura, ainda que tirem todas as vantagens possíveis de seu alcance nacional quando isso é conveniente.
Precisamos conhecer o que teve valor histórico, mas isso jamais deve se sobrepor ao valor artístico e político que as obras podem ter para nosso tempo, mesmo que os seus contemporâneos as tenham ignorado. Há os casos de autores que receberam atenção quando vivos, mas caíram em obscuridade após sua morte, como a poeta mineira Henriqueta Lisboa e o romancista carioca Marques Rebelo. Há os autores que têm ainda suas obras defendidas por leitores apaixonados e por escritores que os elencam entre suas influências maiores, autores cultuados por um pequeno grupo, mas que precisam encontrar reedições de alcance nacional, como o prosador catarinense Manoel Carlos Karam e o poeta mineiro Adão Ventura.
Muitas vezes, a obra de um escritor permanece num limbo de silêncio e poeira de sebos ou escondidos nas bibliotecas particulares de outros escritores, até que suas obras explodem ou reexplodem quando recebem a devida atenção. Basta pensar na obra do poeta mais popular do Brasil nas três últimas décadas, a de Manoel de Barros, que pôde alcançar a leitura apaixonada dos brasileiros quando começou a circular pela editora Record. O primeiro livro do autor, Poemas concebidos sem pecado, é de 1937. O poeta era três anos mais novo que Vinícius de Moraes e quatro anos mais velho que João Cabral de Melo Neto. Sua linguagem de louvor do terreno já vinha sendo formada desde a década de 1960, com a publicação de Compêndio para uso dos pássaros (1960) e Gramática expositiva do chão (1966), mas permaneceu escondida até a década de 1990. E o que dizer dos casos excepcionais de Hilda Hilst e Roberto Piva, cultuados por poucos por tanto tempo, e hoje figuras incontornáveis da literatura brasileira do pós-guerra?
Muitas vezes basta o esforço profissional de uma pequena editora competente. Um dos acontecimentos literários do ano passado, em minha opinião, foi a atenção dada a Leonardo Fróes, que muitos consideram um dos maiores poetas vivos do Brasil, quando a editora Azougue lançou uma antologia de seus poemas, Trilha, e o poeta passou com sucesso pela FLIP. Dono de uma obra extensa, consolidada, como autor e tradutor, está mais do que na hora de que seu trabalho alcance um grande número de leitores. Mas quanto é necessário que um autor escreva para isso?
Nós temos um fetiche compreensível pelos autores de obras vastas, aquelas que cabem mais tarde em tijolos de papel-bíblia pela editora Nova Aguilar. O que fazer dos autores que desaparecem, deixando-nos apenas algumas poucas jóias? Raduan Nassar, autor de um romance, uma novela e alguns contos, não ganhou no ano passado o maior reconhecimento a um escritor da língua, o Prêmio Camões? Uma das leituras inesquecíveis que fiz nos últimos anos foi Uns contos, de Ettore Bottini, seu único livro, com apenas 120 páginas. O livro é todo ele uma pequena joia.
Aos que mantêm os olhos e ouvidos abertos, vêm as descobertas. Ontem, o poeta e professor Marcus Fabiano Gonçalves comentou sobre o trabalho de Waldemar das Chagas, autor do livro Malungo (1954). Após ler os poucos poemas encontrados, ficou apenas o desejo de ver também este autor circulando em escala nacional. Outros autores que recomendo descobrir e espero que encontrem edições, reedições e leituras críticas são Paulo Colina, Stela do Patrocínio, Maria Ângela Alvim, Rosário Fusco, Marly de Oliveira, Arnaldo Xavier, Orlando Parolini, entre tantos outros. Vamos trabalhar, editores.
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