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Historietas e epitáfios

O biográfico como ponto de partida para a escrita é uma moeda instável no mercado dos valores literários. O que em uma época pode tornar seus autores famosos, pode também lançá-los no esquecimento na seguinte. Autores recorrem a ele com fins e efeitos diversos. Podemos pensar em escritores que permanecem em nossa memória e nossas estantes por seus diários e memórias, como Anaïs Nin e Helena Morley, para citar autoras de carreiras e temperamentos praticamente opostos. Há os que ficcionalizam suas próprias experiências, como Jack Kerouac em todos os seus romances. Há ainda o caso peculiar do livro de Gertrude Stein, The Autobiography of Alice B. Toklas.

Na década de 60, os poetas norte-americanos conhecidos como confessionais, entre eles Sylvia Plath, Anne Sexton e John Berryman (três suicidas), tornaram-se celebridades com seus poemas viscerais sobre seus divórcios, suas guerras contra a insanidade, suas derrotas. Sua reputação ascende e decai, dependendo do valor que a época dá ao biográfico e, especialmente, autobiográfico. Na verdade, parecemos fazer uma distinção de valor entre os dois, como se estivéssemos preparados a aceitar o autobiográfico no mesmo patamar da ficção, mas relegando a escrita de biografias ao campo da historiografia, do documentário e do jornalismo. O que tomamos por mais literário? As memórias em vários volumes de Pedro Nava, ou as biografias de Carmen Miranda e Nelson Rodrigues escritas por Ruy Castro?

HistorietasEm muitos casos, biografia e ficção tornam-se inseparáveis, como na poesia de Ana Cristina Cesar. Em outros, mesmo que apresentados como ficção, um conhecimento da vida do autor mostra imediatamente que ele buscou lidar com demônios bastante reais no texto. Um caso clássico é a peça mais conhecida de Eugene O’Neill, Long Day’s Journey Into Night, que leva ao palco sua família, da forma mais desnuda: seu pai, um ator fracassado; sua mãe, viciada em morfina; seu irmão alcóolatra. Memória e biografia são elementos que perpassam a literatura mundial em todas as suas manifestações e podem gerar textos assustadores, essenciais, revolucionários. Para terminar com a já imensa lista de exemplos: Joseph Brodsky considerava os dois livros de memórias de Nadezhda Mandelshtam a mais alta prosa russa do pós-guerra, e Claude Lévi-Strauss revolucionou o pensamento antropológico com um livro que foi em primeiro lugar idealizado como um livro de memórias, Tristes Trópicos.

Biografia real e inventada. É uma questão que me interessa como escritor especialmente por estar entre aqueles que se baseiam fortemente nas próprias experiências para a escrita. Mas nem sempre o biográfico precisa assumir um caráter épico, almejando a grandeza da figura humana. O biográfico pode ser impiedosamente satírico, devastador em nossas ilusões de grandeza, própria e alheia. Gostaria de comentar aqui dois livros discretos que li nos últimos meses e que me levaram a pensar nestas questões uma vez mais. Um deles acaba de ser lançado no Brasil pela editora Civilização Brasileira, um pequeno volume do bibliófilo francês Jacques Bonnet, intitulado Algumas Historietas, ou Pequeno elogio da anedota em literatura (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015), com tradução de Marcelo Jacques de Moraes. Nele, Bonnet se debruça sobre o trabalho de Gédéon Tallemant des Réaux (1619-1692) em suas Historiettes, um escritor francês do século XVII que comentou, em pequenas histórias biográficas, sem piedade, as sandices de várias figuras importantes das cortes de Henrique IV e Luís XIII. Sobre o cardeal Richelieu, ministro-chefe de Luís XIII, escreveu: “O cardeal, se tivesse desejado, com o poder que tinha, fazer o bem que podia fazer, teria sido um homem cuja memória teria sido bendita para sempre. É verdade que o gabinete lhe dava muito trabalho”, ou, para ilustrar a relação entre o cardeal e o rei: “O rei só foi ver o cardeal um pouco antes de ele morrer, e tendo-o encontrado muito mal, saiu muito contente.”

Em poucas linhas, Tallemant des Réaux é capaz de descontruir a imagem épica dos tais grandes homens, mostrando-os em suas paixões mais mesquinhas, como, por exemplo, a mania de Luís XIII de imitar com caretas seus súditos, assim como anedotas sobre vários homens e mulheres da corte, entregues a suas loucuras e disparates. Na primeira parte do livro, Jacques Bonnet faz uma defesa da anedota como fonte de verdades muitas vezes mais confiável, com sua inteligência e graça particulares. Ele cita Albert Camus: “Eu trocaria de bom grado todo o livro das Máximas por uma frase feliz de A princesa de Clèves [romance histórico da Madame de La Fayette, publicado em 1678] e por dois ou três fatos verdadeiros como os sabia colecionar Stendhal.” Na última parte do livro, Bonnet demonstra sua erudição ao buscar ecos de Tallemant des Réaux em autores que o leram ou não, como os franceses Guy de Maupassant, Marcel Proust ou Pascal Quignard, o russo Nikolai Leskov, e até mesmo os brasileiros Aluízio Azevedo e Machado de Assis. O livro é de leitura leve e divertida, conseguindo apontar caminhos interessantes de crítica, sem pompa e fanfarra. Atacando justamente a pompa e a fanfarra com que se cercavam aquelas pessoas. Não é de se admirar que o livro de Tallemant des Réaux só seria publicado no século 19.

antidio cabalO segundo livro que gostaria de comentar é a coletânea de poemas Epitafios, do espanhol Antidio Cabal (1925-2012), lançado postumamente, no ano passado, pela editora barcelonense Kriller71 Ediciones. Nascido em Las Palmas de Gran Canária, Antidio Cabal emigrou muito jovem para a Venezuela e mais tarde para Costa Rica, exilando-se de seu país, como muitos intelectuais, em fuga da ditadura de Franco, e viveu o resto de sua vida na América Latina, tendo sido professor de filosofia em universidades na Venezuela e na Costa Rica. O livro consiste tão-somente de epitáfios para personagens fictícias. Como Bonnet, buscando ligações entre Tallemant de Réaux e outros escritores, não pude deixar de pensar, ao ler as historietas do francês, na argúcia e lucidez de Antidio Cabal em suas poucas e curtas linhas usadas para descrever a vida de suas personagens, após a hora de suas mortes:

EPITÁFIO PARA JACINTO MODALES, VULGO O BOTAS

Vivi lutando contra a gordura e a ontologia,
agora está tudo no caixão.

§

EPITÁFIO DO VIGÁRIO TRÚSTEGUI, VULGO O SABICHÃO

Antes eu queria ser eu,
agora ser me dá na mesma.

Os exemplos são vários, personagens descrevendo suas vidas e lutas, nesta última tentativa de ter a última palavra que é o epitáfio, e desmascarando-se em ilusão e desilusão: “Há muito mérito em se estar morto, / já não sou um náufrago”, “Nascer existir falecer / já sei como se divide / o nada por três”, ou ainda “Os que me amaram me achavam um tonto, / só os que me odiaram me conheceram bem.”

Entre experiência e invenção, entre as vidas épicas e as mesquinhas, vamos contando nossas histórias sobre nós mesmos e os outros, às vezes mentindo um pouquinho para nós próprios, às vezes para os demais, muitas vezes descobrindo a verdade quando já é tarde demais. Como no verso de Dante Milano, “Até que a terra / Com sua garra / Nos rasgue a máscara.”

Data

quarta-feira 04.03.2015 | 18:41

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