Comments on: Inconstitucionalissimamente https://blogs.dw.com/contraacapa/inconstitucionalissimamente/ Sun, 12 Feb 2017 03:03:32 +0000 hourly 1 By: Marcus Fabiano https://blogs.dw.com/contraacapa/inconstitucionalissimamente/#comment-95 Sat, 27 Dec 2014 18:55:34 +0000 http://blogs.dw.com/contraacapa/?p=549#comment-95 O ESCAPE DA ARMADILHA MULTICULTURALISTA

Esse artigo do Ricardo Domenecj nos dá a chance de uma ótima reflexão a respeito de como o Direito é visto por não juristas. É notável como essa crise brutal do espaço político provoca um afluxo de busca na Constituição do seu alcance mais ético. Mas uma Constituição só guarda tal dimensão em um nível retórico muitíssimo etéreo, tão vago que os seus catálogo de princípios axiológicos quase sempre pode ser invocado simultaneamente tanto à esquerda como à direita e para os fins mais díspares. Portanto, não há uma grande verdade substancial subjacente a princípios declarados como valores de normas. Hermeneuticamente, até os princípios mais claros só o são mediante um ato interpretativo que a qualquer momento pode ser alterado.
Em uma época já de pós-humanismo, os direitos humanos apresentam-se como o principal catecismo laico de um Ocidente etnocêntrico que precisa embalar os seus interesses econômicos em um discurso pietista e tolerante. Nesse quadro, o modo como o pensamento norte-americano vem tratando o constitucionalismo (essa invenção liberal) já torna difícil compreender algumas categorias que o formam. Por exemplo: para nós, brasileiros, os chamados “direitos civis” não passam de direitos (humanos) fundamentais de primeira geração. Já o direito à língua e à cultura, de que fala o texto do Ricardo, são, por seu turno, direitos humanos sociais (ou de segunda geração). Dado o caráter individualista celebrado à exaustão pela doutrina liberal da soberania e das garantias civis (proteções contra os excessos e caprichos do Soberano), eu costumo dizer que os direitos sociais (educação, trabalho, previdência, saúde) têm um caráter de precedência individuogênica, isto é, são aqueles que produzem socialmente indivíduos autônomos, embora não lhes correspondam os chamados direitos subjetivos (os direitos mais práticos de se dispor de uma ação judicial para defendê-los e exigi-los: não posso entrar na Justiça com um “mandado de segurança” pedindo um emprego). O paradoxo é bem claro: do que serve um indivíduo ter direito à LIBERDADE DE EXPRESSÃO (direito civil de primeira geração) se ele é ANALFABETO (direito à educação, de segunda geração)? Pois é, a propaganda em torno dos “direitos civis” faz desaparecer esse vínculo.
Ademais, problemas de governo e de administração não podem ser resolvidos pela via constitucional como se se buscasse algum caminho acima da política. Na Constituição, o caráter sagrado dos seus dogmas ecumênicos está longe de ser eticamente consensual entre as diversas seitas de interesses que compõem tanto o Poder Constituinte Originário (a Assembleia Nacional Constituinte) como o Poder Constituinte Derivado (a competência do Congresso Nacional para aprovar Emendas à Constituição) – ambos assentados na ideia de soberania popular-parlamentar expressa pela representação.
Diante dessa miséria programática que corresponde a uma mediocrização dos homens públicos, noto hoje, no campo dos direitos humanos, uma hegemonia dos discursos (1) reparacionista e (2) multiculturalista. Embora ambos até possam representar movimentos de resistência e mesmo trazer coisas positivas, nenhum deles conduz a uma interpretação estrutural (e portanto efetivamente transformadora) das relações entre a política e a economia, ou entre a cultura e o capital, caso se queira. O caráter ético do discurso dos “direitos civis” não supre a falta de formação de um campo programático na esfera da engenharia política. E é nesse quadro que se dá o que chamo de uma “etnização da pobreza”, uma abordagem voltada a apresentar como um mero problema de DIFERENÇAS um acúmulo histórico de crudelíssimas DESIGUALDADES.
Toda uma geração de jovens mobilizados por microcausas corporativas já não consegue vislumbrar tais armadilhas que desembocam em um mercado identitários alimentado pela indústria cultural que lhes sequestra pela autoestima. Muitos deles já chegam a acreditar que “politizar-se” é apenas uma espécie de educação sentimental que consiste em adotar um léxico de eufemismos politicamente corretos e escandalizar-se empaticamente pelas coisas mais aberrantes. Não por acaso, nos Estados Unidos (país sem partidos políticos reais), as questões de direitos humanos foram parar academicamente na mão dos chamados “cultural studies”, com seus portadores da fala em nome do Bem e da Diversidade, esse novelo sem ponta. Com um exército de “tiozões e tiazon@s de palestra”, esses “especialistas” ocupam-se em lotear demandas por visibilidade entre diversas tribos de “literaturas”, enquanto o capital segue mamando na jugular dos clientes desses “ativismos”. Pouco importa se os intelectuais multiculturalistas cometem erros teóricos ou se estão mais interessados em “empoderar” suas próprias falas – para fazer uso de uma expressão que lhes é cara. Amparados pela aprovação dos públicos que cativam, eles só temem mesmo é cair em desgraça moral quando são flagrados traindo os seus próprio “princípios éticos”. Mais um escândalo? Ai, que tédio!

Mas o capitalismo já aprendeu a lidar com esses mercados de minorias: ele dissimula e revende o seu horror ético, mostrando-se sempre vigoroso para se reformar em benefício de sua própria eficiência. O seu objetivo maior é que todas essas minorias jamais se compreendam como parte de uma totalidade social universalista: dividir, atender, regatear, opor, premiar e, em especial, cooptar algumas vozes de legitimidade sempre discutível é a estratégia mais segura para a ampliação desse comércio de atravessadores que envolve conflitos capazes de tantas vezes anularem-se entre si. O multiculturalismo aí se mostra como um comunitarismo supostamente de esquerda. Porém, como tal, o seu varejo não permite que o conceito de universalidade, subjacente à ideia mesma de sociedade, revele-se em suas facetas desiguais e mais severas. Ao brandir distrativamente as bandeiras da pluralidade e da diversidade grupais, o multiculturalismo mascara a crise do contrato cooperativo que está na base fundacional de uma sociedade de indivíduos. Ao mesmo tempo, tais questões raramente são postas ou suscitadas, restando atropeladas por uma “agenda” de urgências que não cessará nunca o seu fluxo nem deixará fôlego para análises de fundo.
Creio que urge então recuperar precedência da crítica à DESIGUALDADE como uma pauta estrutural pela distribuição: de terras (reforma agrária) e, sobretudo, de uma educação pública universal. Está claro que isso não pode mais ser feito pela via da brutal desconsideração das subjetividades outrora patrocinada por diversas matizes do socialismo real (maoísmos, stalinismos e guevarismos, entre outras convicções francamente antidemocráticas às quais estavam vinculados “guerrilheiros” que agora se converteram à “democracia” conquistada pacificamente pelo MDB). Para dizer pouco, a herança marxista emburreceu, burocratizou-se e traiu a sua vocação crítica, tornando-se, além de dogmática, completamente obsoleta para oferecer uma resposta mais ousada ao problema da desigualdade. Observo que isso também ocorreu em razão do seu desdém do lugar da arte no sistema de expressão da singularidade criativa humana. Se o homem precisa de mais igualdade para melhor exprimir suas diferenças, é porque, sem a sombra das necessidades e das religiões, ele poderá exercer sua liberdade para criar. E uma sociedade que se imagina como um coletividade também de criadores já coloca para si mesma os problemas (1) da superação da produção alienada, (2) da distinção entre as atividades manual e intelectual e – por que não!? – (3) do emprego da tecnologia para a extinção da natureza compulsória do trabalho. Alguns dirão que essas são ideias que atingem as raias dos ideais. De fato. Mas creio que isso, recuando aquém do multiculturalismo, não seja um problema: o pensamento progressista precisa articular-se em torno de uma série de ideias que, apesar de ousadas, transcendam o relativismo e a lengalenga demagógica das utopias. Nesse quadro, os artistas e os escritores são convidados ao debate como autênticos Intelectuais. Os que quiserem participar deverão se preparar para isso que também envolve a saída de suas condições de meros ornamentos a que frequentemente se veem reduzidos com a indulgência de suas próprias vaidades. No mais, e por ora, não alimentemos grandes ilusões com os discursos humanistas e constitucionalistas, pois, como dizia Glauber Rocha, “o Povo é mito da burguesia.”

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