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Começo e continuação do ano

Há alguns anos, num “reveião” passado, um amigo me disse: “Ora, é apenas outro dia.” Eu me lembro de dizer a ele que não subestimasse comportamentos ritualísticos. A passagem de ano nos dá a todos a sensação de recomeço, de novas chances. Faz-se a resolução de mudança na própria vida e tenta-se chegar à mudança com um tiquinho mais de afinco. Mesmo que apenas sensação de recomeço, é provável que ela seja mais essencial do que imaginamos para sobrevivermos aos golpes de sempre. Não subestimo a coisa, ainda que este ano tenha sido particularmente difícil entrar no clima de renovação. Ontem, quando me perguntaram como ia meu ano novo, respondi que não tinha ainda a sensação de ano novo. Parecia apenas um ano longo. Todo pela frente.

O ano passado foi particularmente difícil. Mas a verdade é que muito do que aconteceu no ano passado será sentido de verdade apenas neste. Segurem-se nas cadeiras. Não preciso mencionar os acontecimentos políticos de 2016 aos quais me refiro, no Brasil, nos Estados Unidos, na Europa, que parecem dividir-nos a todos em dois grupos distintos. É possível que esta polarização apenas cresça este ano. Em seu poema “Lamento do historiador”, o alemão Heiner Müller descreve como o historiador romano Tácito reclama dos tempos de paz em um de seus livros, que não lhe davam material para escrever grandes sagas imperiais, e desculpava-se junto a seus leitores. O alemão encerra seu poema: “Eu, por minha vez, dois mil anos depois dele, / Não preciso desculpar-me e não posso / Queixar-me da falta de bom material.”

Enquanto celebrávamos dos dois lados do Atlântico, um ataque terrorista acontecia em Istambul, e uma chacina horrenda ocorria em Campinas. Há qualquer ligação entre as duas? Como poderia? Istambul, Campinas. Talvez nossas violências sexuais, religiosas e raciais tenham matriz comum? Este é um ano de aniversários auspiciosos. Centenário da Revolução Russa. Neste clima de polarização, tenho medo de como isso será discutido. A julgar pelas reações em torno da morte de Fidel Castro, temo que muito será dito por pura pirraça intelectual, cada lado querendo ofender o outro um pouco mais. É o ano ainda de do aniversário de 10 anos da morte de uma poeta ainda desconhecida do público, que comanda porém minha imaginação com o pouco mais de uma dezena de poemas que conhecemos: Hilda Machado (1952-2007). Espero conseguir editar seu trabalho este ano. São dela estes versos que vêm a calhar num começo de janeiro:

“feliz ano novo
bem-vindo outro
como é que abre esse champanhe
como se ri”

Infelizmente, o ano mal começou e já nos brindou também com a morte de um intelectual admirável: o romancista, poeta e crítico de arte John Berger (1926-2017). Seu famoso programa “Ways of Seeing” para a BBC é mais do que recomendável a quem não o conhece, e pode ser visto na íntegra na Rede. Aos 90 anos, porém, ele já tinha nos dado provavelmente mais do que merecíamos. Vínhamos pedindo que 2016 acabasse logo como se fosse alta temporada de morte. Mas quando acaba a temporada de morte e de nascimento? É que os nascimentos só são descobertos muito mais tarde. A morte não precisa de ajuda publicitária. Por isso, encerro com este pequeno poema de John Berger que traduzi hoje de manhã, mas o dedico aos poetas que estão nascendo nestes dias ao redor do mundo.

“Outubro”

Talvez Deus seja como os contadores de histórias

que amam os frágeis mais

do que os fortes

os vitoriosos menos

do que os abatidos.

De qualquer forma

num outubro fraco e tardio

a floresta queima

com a luz do sol

do verão inteiro que se foi.

Data

terça-feira 03.01.2017 | 14:33

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