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Pequena homenagem a Tomaž Šalamun

Tomaž Šalamun em Tiradentes, Minas Gerais © Ezequiel Zaidenwerg

Tomaž Šalamun em Tiradentes, Minas Gerais © Ezequiel Zaidenwerg

Este ano de 2014 parece realmente não querer dar trégua aos obituários. No mesmo dia em que fazia minha homenagem a Friederike Mayröcker por seus 90 anos [Friederike Mayröcker: 90 anos, DW Brasil, 20.12.2014], mencionando a alegria de poder comentar um aniversário num ano de tantas mortes de escritores, vim a saber algumas horas depois da morte de Gerardo Deniz (1934-2014), poeta nascido na Espanha mas residente no México e que eu admirava imensamente. Minha família poética mexicana havia celebrado há pouco seu aniversário de 80 anos com uma série de eventos.

Mas ao receber do artista esloveno Dražen Dragojević a notícia, esta manhã [27.12.2014], de que havia falecido o grande poeta Tomaž Šalamun (1941-2014), nosso querido amigo em comum, a sensação foi de perda pessoal, além da grande perda literária. Infelizmente, não foi uma surpresa, pois os mais próximos sabíamos que ele há dois anos lutava contra um câncer. Triste saber, no entanto, que o ano levaria este amigo. E em uma semana, outra vez, perdemos dois grandes poetas contemporâneos internacionais.

Tomaž Šalamun era considerado um dos maiores poetas europeus da atualidade, amplamente traduzido, e provavelmente o mais famoso poeta do Leste Europeu nesta última década. Esteve no Brasil uma única vez, no ano passado, a convite meu e de Luiz Gustavo Carvalho, para participar do Festival Artes Vertentes, em Tiradentes. O quarto número impresso da revista que coedito, Modo de Usar & Co., trazia uma mini-antologia de seus poemas, com traduções de Flávio Britto. Era sua primeira publicação no Brasil. Está muito longe de ter feito de Šalamun, no Brasil, um nome tão conhecido como já era há anos nos Estados Unidos e Europa Ocidental, mas era um começo.

Šalamun nasceu em Zagreb, na Croácia, em 1941, mas viveu quase toda a sua vida em Liubliana, na Eslovênia. Era poeta esloveno. Seu livro de estreia, Poker (1966), é considerado um marco das Letras de seu país, um renovador da tradição poética na  língua. Amplamente traduzido para dezenas de línguas e um dos poetas mais conhecidos e respeitados da Europa, era convidado frequente dos grandes festivais de poesia do continente e uma estrela nos Estados Unidos. Isso, no entanto, jamais transformou sua atitude generosa para com poetas mais jovens. Foi um dos mais gentis cavalheiros que já conheci nesta profissão.

Por coincidências felizes, estivemos juntos em alguns festivais de duração mais longa, permitindo que passássemos algum tempo juntos em algumas ocasiões. Tínhamos o mesmo aniversário, ambos nascidos a 4 de julho, e tivemos a sorte de passá-lo juntos em um ano. Nos encontramos algumas vezes no Festival de Poesia de Berlim e, em 2008, passamos uma semana bastante estranha juntos nos Emirados Árabes, durante o primeiro Festival Internacional de Poesia de Dubai, ao lado de poetas como Wole Soyinka (o Nobel da Nigéria), Yang Lian (China) e Breyten Breytenbach (África do Sul), mas Tomaž sempre parecia preferir a companhia dos mais jovens, com um interesse genuíno, comentando nossos trabalhos pessoalmente ou por correspondência. Em 2009, tive a chance de passar um tempo com ele em seu próprio país, quando participei de um festival nas cidades eslovenas de Liubliana e Medana. Ele, sempre jovial e generoso.

Nosso último encontro mais demorado foi no Brasil, meu país desta vez, no ano passado, mas o câncer que o mataria já havia tomado muito de suas forças, de sua alegria. Só meses mais tarde soube que ele estava doente, através de outro amigo em comum, o poeta norte-americano Christian Hawkey. Fiquei me perguntando se havia aproveitado sua companhia o suficiente durante os dias brasileiros, temeroso de que não voltaria mais a vê-lo. Infelizmente, foi este o caso.

O mundo perdeu um grande poeta e um verdadeiro cavalheiro. Os poetas mais jovens perderam um aliado. Descanse em paz, amigo. Deixo vocês com um poema de Šalamun, em tradução de Flávio Britto, publicada originalmente na Modo de Usar & Co.

A Janela da Morte
Tomaž Šalamun

Estancar o sangue das flores e virar a ordem das coisas.
Morrer no rio, morrer no rio.
Auscultar o coração do rato. Não há diferença
Entre a prata da lua e a das minhas tribos.
Limpar o campo e correr até os limites da terra.
Carregar no peito a palavra: o cristal. Na porta
O sabão evapora, a conflagração iluminou o dia.
Dar meia-volta, outra vez meia-volta.
E despir a túnica. A papoula havia mordido o céu.
Caminhar pelas estradas desertas e beber sombras.
Sentir o carvalho na boca de uma primavera.
Estancar o sangue das flores, estancar o sangue das flores.
Os altares se fitam, olho no olho.
Deitar num repolho azul.

(tradução de Flávio Britto, Modo de Usar & Co. 4, Rio de Janeiro: Berinjela, 2013).

Data

segunda-feira 29.12.2014 | 08:02

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Natal e textos

Murilo MendesChega o primeiro natal, tendo este espaço na DW Brasil, e pensei que seria interessante falar sobre um par de textos dedicados à data na literatura brasileira. Basta pensar em “natal” e “poema” para que o primeiro a vir à mente seja o famoso “Poema de natal”, de Vinicius de Moraes: “Para isso fomos feitos: / Para lembrar e ser lembrados / Para chorar e fazer chorar / Para enterrar os nossos mortos.” É um poema triste, quando pensamos que a data deveria ser a mais alegre dentro do calendário religioso cristão. O começo da esperança. A chegada da esperança. Religar. Unir deus e homens, mas pelo signo da morte. Mas é difícil pensar na manjedoura e não ver ao fim da trama a cruz. Quando criança, pensava que manjedoura fosse sinônimo de berço. Mas é o comedouro. Talvez todo berço tenha algo de manjedoura, ali deitados, à espera de ser mastigados.

Há também aquele “Conto de Natal” de Rubem Braga, que transpõe para algum rincão do Brasil a viagem de José e Maria, “— Eu de lá ouvi os gritos. Ô Natal desgraçado! — Natal?”, que termina também de forma não menos triste, “O menino Jesus Cristo estava morto.” Pessoalmente, outro famoso conto sobre a data, “O peru de Natal” de Mario de Andrade, tem umas conexões dolorosamente familiares para mim, que perdi meu pai também há cerca de cinco meses: “O nosso primeiro Natal de família, depois da morte de meu pai acontecida cinco meses antes, foi de consequências decisivas para a felicidade familiar. Nós sempre fôramos familiarmente felizes, nesse sentido muito abstrato da felicidade: gente honesta, sem crimes, lar sem brigas internas nem graves dificuldades econômicas.” Mas não vou passar este natal em família, já que a minha vive do outro lado do Charco Atlântico. Vou passar com a família postiça em Berlim.

Alguém se lembra daquele impressionante poema de Machado de Assis, o “Soneto de Natal”, que quase parece saído da produção da oficina irritada de Carlos Drummond de Andrade?

Soneto de Natal
Machado de Assis

Um homem, — era aquela noite amiga,
Noite cristã, berço do Nazareno, —
Ao relembrar os dias de pequeno,
E a viva dança, e a lépida cantiga,

Quis transportar ao verso doce e ameno
As sensações da sua idade antiga,
Naquela mesma velha noite amiga,
Noite cristã, berço do Nazareno.

Escolheu o soneto… A folha branca
Pede-lhe a inspiração; mas, frouxa e manca,
A pena não acode ao gesto seu.

E, em vão lutando contra o metro adverso,
Só lhe saiu este pequeno verso:
“Mudaria o Natal ou mudei eu?”

Mas meu poema de natal favorito, e talvez o mais lúgubre, seja o pouco conhecido “Natal 1961”, de Murilo Mendes. O poema adquire ainda mais força quando pensamos na importância do cristianismo para a obra do poeta mineiro, que um dia quis, com seu amigo Jorge de Lima, restaurar a poesia em Cristo.

Natal 1961
Murilo Mendes

Deslocados por uma operação burocrática – o recenseamento da terra – a Virgem
e o carpinteiro José aportam a Belém.
«Não há lugar para esta gente», grita o dono do hotel onde se realiza um congresso
de solidariedade.
O casal dirige-se a uma estrebaria, recebido por um boi branco e um burro cansado
do trabalho.
Os soldados de Herodes distribuem alimentos radioativos a todos os meninos de menos
de dois anos.
Uma poderosa nuvem em forma de cogumelo abre o horizonte e súbito explode.
O Menino nasce morto.

(in Poesia Completa e Prosa, Nova Aguilar, 1994)

Murilo Mendes apresenta-nos uma visão distópica da sociedade de consumo que já se formava, algo tão desmascarável em tempos de Natal como celebração do comércio. Com todas as diferenças entre eles, o poema sempre me faz pensar em Pier Paolo Pasolini, e é muito forte, para mim que os amo a ambos, saber que os dois habitavam a mesma cidade de Roma, por tantos natais. Não sei se algum dia se conheceram. Sei que nenhum dos dois viu o natal de 1975 ou os subsequentes, já que morreram ambos naquele ano, Murilo em agosto, Pier Paolo em novembro.

Chegou o Natal. Passe-o com aqueles que ama. Nunca se sabe se será o último.

Data

terça-feira 23.12.2014 | 11:48

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Friederike Mayröcker: 90 anos

myaEste 2014 foi um ano de grandes perdas para nós leitores, gente apaixonada por livros e, consequentemente, por aqueles que os produzem. Houve semanas em que pareciam diárias as mortes de poetas e prosadores importantes. No Brasil, perdemos Donizete Galvão, João Ubaldo Ribeiro, Manoel de Barros, Ariano Suassuna, Moacy Cirne e Rubem Alves, entre outros. No cenário internacional, deixaram-nos poetas e prosadores como Vasco Graça Moura, Juan Gelman, Nadine Gordimer, Victoria Santa Cruz, Maya Angelou ou Leopoldo María Panero. Em meio a estas perdas, o centenário em vida de Nicanor Parra e, hoje, o aniversário da agora nonagenária Friederike Mayröcker nos deixam ainda mais felizes.

Algumas informações para os leitores que porventura não a conheçam: Friederike Mayröcker é uma poeta e prosadora austríaca, nascida em Viena no dia 20 de dezembro de 1924, há 90 anos. Seus primeiros textos publicados surgiram na revista Plan, a partir de 1946, e, apesar de ter mantido um diálogo com os poetas do Wiener Gruppe (Grupo de Viena), não se filiou a ele. O Grupo de Viena foi a neovanguarda mais importante do pós-guerra em língua alemã, formado pelos autores H.C. Artmann, Gerhard Rühm, Konrad Bayer, Friedrich Achleitner e Oswald Wiener. Em 1954, Mayröcker conhece o poeta Ernst Jandl (1925-000), com quem viveria até a morte dele. Seu trabalho afasta-se muitas vezes da sintaxe normativa e está entre os mais difíceis de traduzir na poesia contemporânea em língua alemã, especialmente os textos polifônicos, orquestrais, ou que Haroldo de Campos chamaria de barroquizantes.

Dois de seus livros de poemas mais importantes são Tod durch Musen (1966) e Winterglück (1985). Ganhadora em 1991 do prestigioso prêmio Georg Büchner, equivalente ao nosso Prêmio Camões, ela teve seus Poemas Reunidos (Gesammelte Gedichte) publicados pela editora Suhrkamp em 2004.

Friederike Mayröcker é uma personagem já lendária na cidade de Viena. Conhecida por guardar obsessivamente seus papéis, há alguns anos precisou abandonar o primeiro apartamento por este ter sido invadido completamente por livros, manuscritos, cartões postais, papéis por toda parte. Mudou-se então para o apartamento do andar de baixo, deixando o de cima com os papéis. O novo apartamento, habitado há alguns anos, já caminha na mesma direção. Algo isolada, com vida de eremita, abriu sua casa para a diretora  Carmen Tartarotti, que fez das filmagens o documentário Das Schreiben & das Schweigen (A escrita e o silêncio), lançado em 2008.

Traduzi vários poemas seus, mas são todos de sua lírica mais direta, jamais tendo conseguido chegar a versões satisfatórias de seus textos mais complexos. Mas esta lírica é uma das mais belas da literatura contemporânea em língua alemã, e eu celebro hoje o nonagésimo aniversário de Friederike Mayröcker com esta tradução de um de seus mais bonitos poemas. Feliz aniversário, Friederike Mayröcker.

Às vezes por quaisquer movimentos
acidentais
roça minha mão sua mão o dorso de sua mão
ou meu corpo enfiado em roupas encosta-se quase sem saber
um piscar-de-olhos em seu corpo de roupa
estes minúsculos movimentos quase vegetais
seu olhar de ângulos e suas pupilas de propósito
vagam no vazio
sua pergunta logo de início interrompida aonde você
viaja este verão
o que você está lendo
atravessam-me o peito em cheio
e através da garganta como uma doce faca
e eu resseco por completo como um poço num verão escaldante

Poema de Friederike Mayröcker, tradução minha.

Data

sexta-feira 19.12.2014 | 17:34

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Inconstitucionalissimamente

Tramita no Congresso Nacional uma Proposta de Emenda à Constituição conhecida como PEC 215/2000, de autoria do ex-deputado Almir Sá do PPB de Roraima, descrita na página da Câmara dos Deputados como visando a “incluir dentre as competências exclusivas do Congresso Nacional a aprovação de demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios e a ratificação das demarcações já homologadas; estabelecendo que os critérios e procedimentos de demarcação serão regulamentados por lei”. O projeto pretende mudar o artigo 231 da Constituição de 1988, que regulamenta os direitos do indígenas brasileiros sobre suas terras: “Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.” Vale reler este artigo da Constituição, em todos os seus parágrafos, em especial diante dos desrespeitos a ele nos últimos anos.

Portanto, a PEC 215 pretende fazer passar ao Congresso Nacional e ao Poder Legislativo a demarcação de novas terras indígenas, decisão que hoje cabe ao Executivo. Mesmo permanecendo com os órgãos responsáveis do Poder Executivo, como a Fundação Nacional do Índio (Funai), os estudos prévios sobre as demarcações, o debate, votação e decisão final ocorreriam no Congresso Nacional. Com  influência maciça da bancada ruralista hoje no Congresso, alguns deles tendo já demonstrado seu racismo raivoso contra os indígenas, esta proposta significaria certamente o fim das demarcações. A bancada ruralista vem tentando votar esta proposta ainda este ano, de portas fechadas. Nesta terça (16/12), outra sessão foi cancelada e mais uma vez houve violência contra indígenas perante o Congresso Nacional.

Não sou jurista, nem filósofo do Direito. O que esta discussão estaria fazendo em um espaço dedicado à literatura? Deixem-me falar sobre o que me impele a escrever sobre isso, tocando no que vejo ser a responsabilidade política de um escritor.

A matéria-prima de escritores é a linguagem e sua encarnação na língua de sua comunidade. Trata-se, portanto, de propriedade comum, compartilhada. Aí reside parte de suas responsabilidades, talvez menos sociais que comunitárias. O escritor não vai à esquina e compra tela, estica-a na moldura e então a preenche com tintas compradas. Sua matéria prima é dada a ele por sua mãe, e sua inserção em uma comunidade começa já com o “Nana, nenê, que a Cuca vem pegar.” Por acreditar que o trabalho literário tem consequências sobre a língua (propriedade pública), sinto que o escritor não pode simplesmente estar alheio às implicações do que faz com a língua, ou ao contexto em que exerce sua atividade.

É na linguagem e sua encarnação como língua que muitos crimes começam a ser preparados por governos: ditadores, reis, ou presidentes, através de seus legisladores. E não seria um escritor, um poeta, o melhor equipado a perceber isso, talvez antes de outros? Até mesmo o extermínio de povos não se dá da noite para o dia, é preparado aos poucos, por uma série de leis que visam primeiro a destitui-los de seus direitos civis, para então destitui-los de seus direitos humanos. Isso ocorreu no passado.

Se a língua une, por tudo o que nos permite compartilhar, ela também é usada para separar. Qualquer poeta deveria estremecer ao pensar nas implicações do xibolete (schibboleth), o costume de usar uma palavra específica para identificar, através de sua pronúncia, aquele que pertence ao grupo e o que não pertence, tendo sido usado já em guerras para “desmascarar” estrangeiros e minorias dentro do território. O que acontecia com estes estrangeiros ou minorias depois, deixo para sua imaginação.

A questão das responsabilidades políticas de um escritor é polêmica, mexe com o brio das pessoas. Muitos diriam que um escritor não deve se misturar com estas questões, sob o risco de atrapalhar a qualidade de seu trabalho “literário”. O poeta francês Stéphane Mallarmé (1842-1898) escreveu que o papel do poeta é “donner un sens plus pur aux mots de la tribu”, ou dar um sentido mais puro às palavras da tribo. Muito já foi feito dessa declaração, até mesmo a defesa de um absenteísmo necessário por parte de poetas das questões mais práticas da sua comunidade, vistas como mesquinhas. Contrário ao sentido que eu, pessoalmente, tomo para mim.

Um exemplo recente: o que os dois principais partidos políticos da República têm feito com o verbo mudar. Temo que mais uma ou duas eleições presidenciais como as últimas e este verbo estará danificado a ponto de se tornar irreconhecível. Serão necessárias duas gerações de bons poetas para restitui-lo a seu sentido original.

A palavra que dá título a este artigo, como se sabe, é considerada uma das mais longas da língua portuguesa. Palavra que poderia ser bastante frequente na República Federativa do Brasil. Advérbio de modo, estes modos conhecemos bem. A Constituição de 1988 é a sexta do país, já que certamente não chamaremos de Carta Magna a Emenda Constitucional nº 1, de 1969. E temos aqui um exemplo de como certas palavras podem ser usadas para roubar, já que o documento de 1969 não emendava, mas rasgava o documento que pretendia remendar.

Quando se trata da Constituição, o maior documento da comunidade, temos que tomar muito cuidado com o que se esconde por trás de palavras como emenda. Para que não se permita jorrar mais sangue em nome de um documento que pretende proteger, prevenir e cicatrizar.

Mas, no Brasil, sequer entendemos ainda os significados de palavras como democracia e República. Somos um país onde público não parece ser compreendido como pertencente a todos, mas a ninguém. Daí a transformar o nosso em meu, trata-se de um pulo.

Somos uma democracia representativa. Os funcionários eleitos hoje no Congresso ou no Palácio do Planalto são pagos para representar, mas isso não significa um cheque em branco. Como cantou Gal Costa, é preciso estar atento e forte. É preciso debate, para que grupos não rasguem trechos da Constituição que vão contra nossos interesses privados, pessoais. Em minha opinião, um exemplo é a proposta mencionada no início deste texto, a Proposta de Emenda à Constituição nº 215-A, que representa um perigo à Carta Magna do país, e que, caso passe, poderá vir a permitir que se pilhe ainda mais os direitos constitucionais dos povos indígenas no território.

Não sou jurista, não sou filósofo do Direito, já disse. Há escritores no Brasil melhor equipados para esta discussão, como Pádua Fernandes e Marcus Fabiano Gonçalves. Mas, como escritor que passa o dia com as mangas arregaçadas e as mãos na língua, tentando manuseá-la, sinto a necessidade de manter-me atento a quando ela está sendo manipulada. Somos bombardeados por linguagem e língua 24 horas por dia. Até em nossos sonhos são linguagem e sua encarnação na língua em ação.

Na imprensa, nos comerciais, no Diário Oficial da União, nossas vitórias e desastres começam ali: na língua. E se há hoje uma palavra na língua portuguesa que precisa não ter um sentido mais puro, mas ter seu sentido protegido, é constituição e suas derivadas. Como inconstitucionalissimamente.

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quinta-feira 18.12.2014 | 08:51

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Marília Garcia e um teste de resistores

marília garciaEu me lembro de uma conversa com Marília Garcia certa manhã, em um café de Bruxelas, onde estávamos para participar do festival Europalia, que tinha o Brasil como convidado aquele ano. Ela me contava uma anedota. Ao visitar o poeta francês Emmanuel Hocquard, que Marília Garcia vem traduzindo no Brasil de forma pioneira, ele perguntou a ela quais outros poetas franceses ela apreciava. Quando ela respondeu que lia Nathalie Quintane, que havia sido lançada no Brasil em tradução de Paula Glenadel pela coleção Ás de Colete no volume Começo: autobiografia (SP/RJ: Cosac Naify/7Letras, 2004), o poeta francês respondeu: “Mais ça c’est pas de la poésie” (Mas isto não é poesia). Ficamos ali algum tempo, conversando sobre a declaração de Hocquard, justo dele. Eu ri na hora, e comentei com ela que certa vez, conversando com um poeta brasileiro justamente sobre Hocquard, o brasileiro havia dito a mesma coisa do francês: “Mas isto não é poesia.” Naquela manhã, decidimos que algum dia organizaríamos um volume de ensaios, convidando poetas brasileiros a meditarem sobre isso. O mote seria a história da declaração de Hocquard sobre Quintane, unida à do brasileiro sobre o próprio Hocquard. Mais ça c’est pas de la poésie. Ok. Acabou a discussão?

A pergunta final é algo que sempre me vem à mente quando ouço essa frase, bastante frequente entre poetas sobre outros poetas: “Mas isto não é poesia”, como uma cartada final, um às no colete, um xeque-mate. Eu sempre respondo: Ok, aceitemos por um segundo que não seja poesia. Acabou a discussão? É o quê, então? E o que quer que seja, consequentemente não presta porque não é poesia?

No ano seguinte, Marília Garcia lançou o livro engano geográfico (Rio de Janeiro: 7Letras, 2012), no qual relata sua viagem e seu encontro com Emmanuel Hocquard, mas não a anedota. Ao ler o livro, tive a ideia de que um dia começaria um texto sobre o trabalho de Marília Garcia com a anedota da declaração de Hocquard sobre Quintane.

Em setembro deste ano, Marília Garcia lançou seu mais novo livro, Um teste de resistores (Rio de Janeiro: 7Letras, 2014). Carreguei o livro comigo em minha viagem pelo Brasil, abindo-o na primeira página já com a ideia de escrever sobre ele e resgatar aquela anedota. Qual não foi minha surpresa quando vejo que a história já havia sido incorporada pela própria autora no livro. Na verdade, o livro foi aos poucos desarmando por completo meu discurso crítico, por torná-lo supérfluo. As referências que eu pensava fazer sobre o trabalho da carioca iam surgindo na textura do texto, seu apreço pelo poeta norte-americano Charles Reznikoff (1894-1976), que ela vem traduzindo, pelo artista argentino Guillermo Kuitca (n. 1961), os franceses Henry Deluy (n. 1931) e o próprio Hocquard. O “mas isto não é poesia” se torna o motor do próprio texto de Marília Garcia, uma espécie de desafio, afronta, resposta, fazendo o que para muitos não será poesia. Realmente, todos os dispositivos clássicos da poesia estão ausentes: não há metáfora, não há métrica, não há ritmo constante ou marcado, não há assonância, não há aliteração. Os textos baseiam-se em dispositivos que reconhecemos como estruturais da prosa: a metonímia, a sinédoque.

A autora vinha valendo-se de uma forte narratividade desde seu primeiro livro, 20 poemas para o seu walkman (SP/RJ: Cosac Naify/7Letras, 2007), mas em seu novo livro, como no anterior, ela leva isso ao extremo. A prática não é de todo desconhecida no Brasil. John Cage usa o recurso em todos os seus livros, especialmente em A Year from Monday: New Lectures and Writings (1967) e M: Writings ’67–’72 (1973), mas Cage é autor consagrado. Em um autor mais jovem, aceitar certos riscos é, com o perdão da tautologia, mais arriscado. A prática está presente também, de forma ainda mais clara, no trabalho do norte-americano David Antin e seus talk poems e, no Brasil, poderíamos pensar na prosa porosa de Augusto de Campos e seu O Anticrítico (1986). Mas caio, novamente, nas referências de autoridade.

A verdade é que este texto, como disse, é supérfluo. Gostaria de poder publicar apenas um recado, dizendo: “Leiam Um teste de resistores, de Marília Garcia. O livro diz-se.” Pois se trata de um livro, em minha opinião, que instrumentaliza, arma o leitor para compreendê-lo. O livro diz o que faz e faz o que diz. Se Marília Garcia lança mão da quebra-de-linha, não é para dizer ao leitor “Olá, isso é poesia”, mas porque a noção de corte está presente no livro, a noção da memória e sua narratividade como ilha de edição. Os cortes e os espaços em branco, para aqueles que diriam que se trata “apenas” de prosa entrecortada, ali surgem porque é assim que contamos a nós e a outros nossas histórias: entrecortadas, editadas.

O livro é um exemplo do que venho chamando de “poética de implicações”, e que é um elemento forte no trabalho (por algum motivo que não nos cabe discutir aqui) em sua maioria de mulheres, hoje, no Brasil: Marília Garcia, Juliana Krapp, Veronica Stigger, Érica Zíngano… cada uma à sua maneira. É obra aberta no sentido de dizer algo querendo dizer o que diz, mas também incitando o leitor a pensar nas implicações do que é dito. E, como se trata de textualidade, de linguagem apresentada como texto, incita a pensar nas implicações do que foi dito e feito. A crítica norte-americana Marjorie Perloff falou em “poética da indeterminação”, discutindo Cage e Antin no ensaio “’No More Margins’: John Cage, David Antin, and the Poetry of Performance”, presente no livro The Poetics of Indeterminacy (1983). Trata-se realmente de poesia e performance, já que os textos de Marília Garcia foram escritos para “falas”, como vejo muito aqui na Europa também, entre poetas que apresentam seus trabalhos basicamente em galerias, muitos sem publicar, como os britânicos Hanne Lippard e Tris Vonna-Michell.

Talvez tudo o que eu quero dizer aqui seja apenas: leia o novo livro de Marília Garcia. Se a você parecer que isso não é poesia, deixe-me responder de antemão: Ok. Acabou a discussão?

Data

sexta-feira 12.12.2014 | 14:56

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