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Literatura durante e após a catástrofe

Poeta francesa Charlotte Delbo

Poeta francesa Charlotte Delbo

Ontem pela manhã [27.01.2015], eu estava na Estação Ferroviária Central de Frankfurt, aguardando o trem que me traria de volta a Berlim. Na banca de jornais, manchetes sobre Auschwitz, a rememoração dos 70 anos de libertação do campo. Na capa da revista Der Spiegel, o rosto de sobreviventes que ainda estão entre nós, hoje octogenários e nonagenários. Tomei o trem pensando que deveria escrever a respeito, mas como? Falar sobre os escritores que ali morreram, como Etty Hillesum (1914-1943)? Sobre os que sobreviveram e relataram os horrores, como Primo Levi (1919-1987), autor de É isso um homem? (1947), um dos primeiros livros a surgir após a guerra sobre aqueles horrores, ao lado de A espécie humana (1947), de Robert Antelme (1917-1990), que sobreviveu a Dachau?

O livro de Primo Levi abre com um poema, no qual ele comanda e exige, a nós “que vivemos em nossas casas mornas”, a não esquecer, a relatar a nossos filhos que aquilo ocorreu, caso contrário, que “a doença nos entrave, que nossos filhos virem seus rostos contra nós.” Outra sobrevivente de Auschwitz, menos conhecida, mas que relatou suas experiências, foi a francesa Charlotte Delbo (1913-1985), que passaria vinte anos trabalhando em sua trilogia Auschwitz et après (Auschwitz e depois). Um poema assustador de Delbo, chamado “Oração aos vivos para que sejam perdoados por estarem vivos”, diz: “Eu suplico a vocês / façam qualquer coisa / aprendam um passo / uma dança / alguma coisa que os justifique / que dê a vocês o direito / de vestir a sua pele o seu pelo / aprendam a andar e a rir / porque será completamente estúpido / no fim / que tantos tenham sido mortos / e que vocês aí vivam / fazendo nada de suas vidas.”

Ao mencionar os poemas de Levi e Delbo, que sobreviveram ao campo, assim como o título da trilogia da francesa, “Auschwitz e depois”, é impossível não pensar na citação de Adorno, a qual imagino tenha sido usada e abusada ontem, de que após Auschwitz seria um ato de barbárie escrever poesia. A citação é frequentemente tirada de contexto, vindo do último parágrafo de um ensaio bastante denso do alemão, sobre a reificação de tudo e todos em uma sociedade totalitária. Num parágrafo anterior, ele escreve: “Na prisão ao ar livre em que o mundo está se transformando, não é mais tão importante saber o que depende de quê, tal é a extensão em que o total se unifica. Todos os fenômenos se enrigecem, tornam-se insígnias do império absoluto daquilo que é.” Sempre compreendi a afirmação de Adorno como a negação da cultura que havia gerado Auschwitz, que simplesmente não se podia seguir escrevendo poesia como se Auschwitz não houvesse ocorrido. Um chamado à História. É importante lembrar que Paul Celan, o poeta mais conhecido entre os sobreviventes da Shoah, escreveu como o horrorizara perceber que autores seguiram escrevendo seus poemas sonoros e belos em meio ao horror da guerra e dos campos. Hoje um clássico do pós-guerra, lido basicamente em traduções, muitos não percebem que a escrita de Celan, a maneira como ele parte e quebra a sintaxe da língua alemã, era uma resposta a isso. Sua escrita hoje é simplesmente vista como “bela”. Sua busca por uma fala partida, feia e dentro do horror, é discutida por alguns como mera “inovação”, parte da “originalidade” de Celan. Transforma-se em literatura. No Brasil, por algum tempo usou-se Celan para resgatar certa aura de autoridade poética. Mas a autoridade de Celan não é apenas literária, é histórica.

Assim como se cita Adorno sobre a impossibilidade da poesia após Auschwitz fora de contexto, e poetas usam as “técnicas” de Celan de forma a-histórica, é comum dizer que Adorno mudou de ideia, ao escrever mais tarde que “o sofrimento perene tem tanto direito à expressão quanto um homem sob tortura tem direito ao grito, dessarte talvez tenha errado em dizer que após Auschwitz não se podia mais escrever poesia.” No entanto, raramente se cita o resto do parágrafo, que talvez seja uma declaração ainda mais tenebrosa que aquela sobre a poesia após Auschwitz: “Mas não é errado levantar a questão menos cultural se após Auschwitz se pode continuar vivendo – especialmente se alguém escapou por sorte, se alguém que poderia ter sido morto pode continuar vivendo. Sua sobrevivência exige frieza, o princípio básico da subjetividade burguesa, sem a qual não poderia ter havido Auschwitz; esta é a trágica culpa daquele que sobreviveu. Sua expiação será a de ser atormentado por pesadelos nos quais ele nem mesmo vive, nos quais ele foi enviado aos fornos em 1944, e toda a sua existência desde então foi imaginária, uma emanação do desejo louco de um homem assassinado 20 anos antes.” É uma passagem assustadora. E penso novamente no poema de Charlotte Delbo, “Oração aos vivos para que sejam perdoados por estarem vivos.” Penso em Simone Weil, que se recusou a comer no hospital onde estava, à beira da morte, pois se outros judeus como ela morriam aos milhares, ela não podia comer. Penso em Hannah Arendt, dizendo em sua entrevista a Günter Gaus em 1964 que “isto [Auschwitz] jamais deveria ter acontecido. Algo ocorreu ali com o qual nenhum de nós jamais poderá conciliar-se.”

Como posso eu escrever sobre aqueles horrores, escritor brasileiro nascido mais de 30 anos depois da libertação do campo? No entanto, e se pensarmos que estamos no auge daquela reificação total, de tudo e todos, dentro do sistema capitalista, contra o qual escreveu Adorno, e Pasolini, e tantos outros? A noção de civilização e cultura que gerou Auschwitz (não me refiro apenas à ideologia nazista) realmente foi vencida? Trinta anos depois da libertação dos sobreviventes do campo, Pasolini faria seu filme Salò ou os 120 Dias de Sodoma (1975), com o qual argumenta que aquela cultura permanece. A do poder obsceno. A da transformação de seres vivos (não apenas humanos) em coisas, mercadorias. Temos mesmo outro conceito de civilização após Auschwitz? Não foi para destruir por completo certo conceito de civilização que ainda permanecia, que a personagem de A Paixão segundo GH (1964), da judia Clarice Lispector, comungou com um inseto e comeu a matéria viva de uma barata? É importante lembrar-se da formulação terrível de Jean Améry (1912-1978), que passou por Auschwitz, Bergen-Belsen e Buchenwald, e que, ao falar sobre os torturadores nazistas nos campos, escreveu “… uma pequena pressão da mão que controla o aparelho é suficiente para transformar a outra – junto com sua cabeça, na qual talvez estejam arquivados Kant e Hegel, e todas as nove sinfonias, e O Mundo como Vontade e Representação – num leitão guinchante no matadouro.” Os nazistas eram homens educados em Kant, Hegel, Beethoven e Schopenhauer. Pertenciam à mesma cultura, e, no entanto…

E aqui, ao final, me pergunto: de que forma eu, escritor brasileiro, posso escrever sobre isso e ainda conciliar-me com os horrores do meu próprio país, onde a reificação de seres humanos já estava no sequestro e escravização de três milhões de africanos, e o genocídio de outros milhões de indígenas? Posso, como escritor brasileiro, escrever sobre Auschwitz sem pensar nisso? Não tenho a ilusão de ter respostas certas para estas questões. O que posso dizer é que nos últimos tempos, pensando a respeito delas, percebi com certo terror e me perguntei se não havia errado em querer alertar leitores para uma possível distopia futura (quando falava sobre uma “poesia pré-distópica”), se talvez não os estava apenas distraindo para o fato de que já estamos (ou continuamos) em plena distopia. Hoje, confesso crer, com Adorno e Pasolini, que este é o caso.

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quarta-feira 28.01.2015 | 12:48

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Relação com as águas (de córregos brasileiros a rios alemães)

frankNasci no município de Bebedouro, no estado de São Paulo. Diz o dicionário: be.be.dou.ro, substantivo masculino. 1- Lugar, recipiente, vasilha etc., em que os animais bebem água. 2- Aparelho com água encanada, munido de torneira que jorra para cima, da qual se aproxima a boca para beber. Desde cedo, alguma relação com a água. Mas trata-se de uma cidade pequena, as proporções das coisas são menores. Se grandes cidades cresceram às margens de rios longos, serpenteando por vários países, cortando continentes, a vila de Bebedouro cresceu às margens de um córrego, o antigo córrego Bebedor. Ali paravam os tropeiros e peões de boiadeiro para dar de beber ao gado, pernoitar. Ali muita capivara foi caçada. Mas isso foi há décadas, um século. Em algum momento, um esperto teve a ideia de represar o córrego, formando hoje o que nós bebedourenses todos chamamos simplesmente de “O Lago”, menos lago que açude, talvez. Onde você mora? Perto do lago. O que você vai fazer hoje? Caminhar pelo lago. O lago centra a cidade. Mas capivaras não há mais. Apenas umas garças solitárias por vezes aparecem, e, quando criança, lembro-me daquela invasão ensurdecedora de andorinhas. Esta foi uma das minhas primeiras experiências estéticas quando pequeno: ficar ali, perto da comporta que represa o córrego, vendo aquele sobrevoar louco de andorinhas pela superfície do lago. Afinal, o município já foi a vila de São João Batista da Bela Vista de Bebedor. O Batista, o das águas. A primeira catástrofe natural que presenciei foi a grande enchente de 1983. Grande, para nossas proporções de gente pequena. As comportas foram abertas, a região do lago ficou intransponível, o museu de carros e aviões antigos da família Matarazzo, danificado, acabou fechado por anos.

Com 17 anos, fui estudar nos Estados Unidos, graças a uma bolsa de estudos. Acabei hospedado por uma família sem filhos em Shreveport, na Louisiana. Cortava a cidade o Red River of the South, o Rio Vermelho do Sul, outro desconhecido, mas que é tributário de nada menos que o Mississippi, o mítico, e ainda do Rio Atchafalaya. Mudei-me para São Paulo com 19 anos. Que águas tem São Paulo? O Tietê, pobre esgoto. O córrego Bebedor tem mais dignidade. Nem Mário de Andrade conseguiu dar ao Tietê algum lustro poético. “É noite. E tudo é noite. Debaixo do arco admirável / Da Ponte das Bandeiras o rio / Murmura num banzeiro de água pesada e oliosa,” como escreveu em seu “Meditação sobre o Tietê.” Ah, como eu queria que fosse melhor este poema. Talvez houvesse salvado o rio ao menos na memória. Não, o verdadeiro rio dos paulistanos é o Anhangabaú, aquele ribeirão canalizado. Seu vale é uma calçada. Parece-me apropriado, agora que veio o que eufemisticamente se vem chamando de “crise hídrica”, uma cidade de 20 milhões de habitantes à beira da morte por sede. Geraldo Alckmin sempre teve algo de Mad Max.

Nem carioca nem soteropolitano, nem Baía de Guanabara nem a de Todos os Santos. Não cresci às margens do mítico São Francisco (também secando), nem do Amazonas. E ao mudar-me para Berlim, fui dar às margens desse outro rio desviado, canalizado, anônimo. Pobre Spree. Que nome é esse? Gosto dele, mas não sou dos que se apinham no Parque Monbijou durante os verões berlinenses para a cerveja às suas margens de concreto. Rio alemão famoso é o Reno, claro. O grande Reno, o Rhein, símbolo do nacionalismo romântico alemão. Mítico e literário como o nosso Velho Chico. Cantado por poetas gigantesco como Heinrich Heine, “Eu não sei como explicar / Porque ando triste à beça; / Uma história de ninar / Não me sai mais da cabeça. // Dia ameno, a noite cai / Sobre o Reno devagar; / Na montanha, a luz se esvai / Faiscando pelo ar”, na tradução de André Vallias para um dos poemas mais famosos do alemão. Mas o Reno é distante das cidades alemães onde vivi. É um rio literário, para mim. Sua importância em minha mitologia pessoal é alimentar o Lago de Constança, na fronteira tríplice-germânica da Alemanha, Áustria e Suíça, o Lago de Constança, às margens do qual nasceu uma criatura que me trouxe delícia e desgosto.

Sempre achei impressionante o Elba, no norte do país, às margens do qual cresceu a cidade portuária de Hamburgo. Chega a assustar, ver aqueles navios enormes atravessando o rio, cidade adentro. Hamburgo se agarra a ele, é como se crescesse da lama do rio, se alimentasse dela. E foi o rio que fez de Hamburgo uma das cidades mais importantes e ricas da Alemanha.

Mas, aqui, ao fim deste texto, chego ao rio alemão pelo qual tenho especial carinho. Escrevo este texto enquanto da janela vejo correr o Main,  aquele que chamamos de Meno em nossa língua, o rio que corta Frankfurt, onde estou, Frankfurt am Main. Ou, Francoforte no Meno. Gosto deste hábito de nomear a cidade com o rio que a corta. Como se disséssemos São Paulo do Tietê e Manaus do Amazonas, ali onde o Negro e o Solimões se encontram. Ao longo do Meno, o caminho para os andarilhos, os museus. Talvez eu goste tanto de Frankfurt apenas por ter aqui amigos especiais, como o músico alemão Markus Nikolaus, com quem colaboro. A cidade tem má fama, sendo centro comercial e financeiro do país. É cara. Engravatados por todos os lados, aqui também a “deselegância discreta de tuas meninas” e a “força da grana que ergue e destrói coisas belas”, mas talvez seja isto que também faz dos jovens aqui alguns dos mais relaxados que já conheci no país, pois resistem ao que veem em seu redor desprezando tanto a força da grana como a deselegância discreta. E é aqui, desta janela às margens do Meno, que mando aos amigos do Bebedor, do Tietê, do Amazonas, da Guanabara e do Abaeté esse texto em forma de cartão-postal. Em um poema sobre Murilo Mendes, João Cabral de Melo Neto conta uma anedota sobre o poeta de Juiz de Fora:

Murilo Mendes e os rios

Murilo Mendes, cada vez que
de carro cruzava um rio,
com a mão longa, episcopal,
e com certo sorriso ambíguo,

reverente, tirava o chapéu
e entredizia na voz surda:
Guadalete (ou que rio fosse),
o Paraibuna “te saluda”.

Nunca perguntei onde a linha
entre o de sério e de ironia
do ritual: eu ria amarelo,
como se pode rir na missa.

Explicação daquele rito,
vinte anos depois, aqui tento:
nos rios, cortejava o Rio,
o que, sem lembrar, temos dentro.

[in João Cabral de Melo Neto, Agrestes, 1985]

Adotei o hábito, sendo discípulo de Murilo Mendes como sou. Hoje, pela manhã, saí para fumar meu cigarro e carreguei a xícara de café para as margens do Main, do Meno, e lá disse: “Meno, o córrego Bebedor grüßt dich (te saúda).” Enquanto isso, São Paulo seca e o nível dos mares sobe. Talvez o verso de Murilo Mendes passe de convite a profecia: “Vamos voltar para a água.”

 

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quinta-feira 22.01.2015 | 17:54

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Escritores brasileiros entre os países escondidos

Machado traduzidoVou começar este texto com uma pergunta que já me foi feita várias vezes na Alemanha e em outros países, intensificou-se durante o período da Feira do Livro de Frankfurt em 2013, e volta, vira e mexe: “Se eu tivesse que ler um único escritor brasileiro, qual seria?” São sempre pessoas bem-intencionadas, realmente interessadas, e, dependendo do meu humor, respondo, fazendo alguns apartes, tentando incluir dois ou três escritores mais na lista. Nos momentos de pouca paciência, respondo com outra: “Você faria esta pergunta a um russo, a um francês ou a um americano?” Pois, imagine a situação: perguntar a um cidadão de um país cuja literatura vem sendo celebrada e traduzida há décadas ou séculos, com vários autores de importância mundial, “se eu fosse ler apenas um russo/francês/americano, qual deveria ler?”

Mas um país como a Rússia, para a tomarmos como exemplo, tem tido importância geopolítica crucial para o globo, seus autores têm influenciado outras literaturas, e uma pessoa saberia o ridículo de imaginar-se lendo apenas Dostoiéviski e, assim, perder Tchékhov, Tolstói, Maiakóvski, Tsvetáieva, e assim por diante. E, mesmo assim, não lemos Tchékhov ou Maiakóvski porque eles são russos, mas porque são Tchékhov e Maiakóvski, em primeiro lugar, mas sabendo que através deles recebemos informações sobre a vida russa. São escritores universais que não poderiam ter nascido em qualquer outro lugar, ou seriam autores diferentes. A relação entre local e universal talvez seja uma das mais difíceis de definir.

Talvez você esteja se perguntando: “mas, quando você responde, qual autor menciona?” Eu respondo, sem titubear, Machado de Assis. Quanto ao aparte, tento educadamente apontar que o leitor interessado deveria lê-lo, não porque seja brasileiro, mas porque um leitor realmente interessado na literatura ocidental, que não conheça Machado de Assis, tem uma lacuna em sua biblioteca tal qual não houvesse lido Flaubert ou Tchékhov. Uma pessoa deveria ler Machado de Assis porque ele foi Machado de Assis, mas, ao mesmo tempo, sei que o nosso grande autor local e universal, entre alguns outros, não poderia ter escrito o que escreveu em outro país além do Brasil. Como Flaubert, universal, é francês, e Tchékohv, universal, é russo. Um grande poema do século 20 como “A mesa”, de Carlos Drummond de Andrade, poderia ter sido escrito por alguém que não tivesse nascido no Brasil, e, ainda mais, em Minas Gerais? Mais uma vez, repito: definir esta relação entre universal e local seria assunto para vários tomos. Quanto à narrativa histórica da literatura no século 20, o crítico italiano Alfonso Berardinelli levanta algumas destas questões de forma muito interessante em seu ensaio “Cosmopolitismo e provincianismo na poesia moderna” [Da Poesia à Prosa, São Paulo: CosacNaify, 2007. Tradução de Maurício Santana Dias].

Nele, Berardinelli discute a relação entre o cosmopolitismo de poetas internacionais como André Breton, T. S. Eliot, Jorge Luis Borges e Giuseppe Ungaretti, em oposição a autores que se mantiveram fieis a certo localismo, como Antonio Machado, Miguel Hernández, Williams Carlos Williams e Sandro Penna. Ao ler o ensaio, me pareceu que seria uma tarefa interessante pensar nas complicações da inserção da poesia brasileira no cenário dos Modernismos Internacionais a partir desta relação entre cosmopolitismo e localismo, já que a maior parte da poesia e prosa brasileiras modernas fincaram pé em sua própria terra: eram modernas e locais. Isso as torna menos universais? É importante notar que Berardinelli usa o termo “cosmopolita”, não “universal.” O crítico italiano percebe uma mudança em nossos parâmteros, passando a dar maior ou a mesma importância ao universalismo do local, e, realmente, hoje Williams parece ter suplantado Eliot nos Estados Unidos, e confesso ter nos últimos tempos maior interesse em poetas italianos como Cesare Pavese, Sandro Penna ou Giorgio Caproni que na lírica hermética, “cosmopolita”, de Ungaretti e Quasimodo. O grande Pier Paolo Pasolini é um poeta eminentemente local, italiano, por vezes escrevendo até mesmo no dialeto de sua mãe, o friuliano, e, no entanto, tem um alcance que vai muito além das fronteiras da Itália.

A importância geopolítica de um país, e o uso político que faz o Governo de sua cultura, têm efeitos intensos sobre a recepção da literatura e arte daquele território no resto do mundo. Bombardeados como fomos por Hollywood, espalhando a mitologia identitária norte-americana pelo globo, não nos é, hoje, tão difícil adentrar uma literatura tão localista e insular como a norte-americana. Parece-nos fácil chamar de universais trabalhos bastante localistas como As I Lay Dying (1930), de William Faulkner, ou On The Road (1957), de Jack Kerouac. Mas, quantas notas-de-rodapé um americano precisaria para compreender Macunaíma (1928), de Mário de Andrade, ou Grande Sertão: Veredas (1956), de João Guimarães Rosa, tão marcados e determinantes para nossa mitologia identitária? Serão mais cosmopolitas ou menos localistas Clarice Lispector e Hilda Hilst, que vêm sendo celebradas no Estados Unidos nos últimos dois anos? A Hora da Estrela (1977) poderia ter sido escrita em outro país? E A Obscena Senhora D (1982)?

Não são perguntas fáceis de responder. Sabemos que, por vezes, aquilo que parece mais simples e direto torna-se o mais difícil de traduzir. Não sei se um dia alguma tradução poderá mostrar a estrangeiros a grandeza da simplicidade de Manuel Bandeira. E estes são todos escritores brasileiros que deveriam ser conhecidos, como devem ser conhecidos outros autores, de tantos países. Como escreveu o poeta inglês Andrew Marvell, “had we but world enough, and time.”

Sim, o Brasil é um país enorme, com centenas de milhões de habitantes, importante geopoliticamente, e produziu algumas joias da modernidade ocidental, como Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), O Guesa (1884), alguns poemas de Cruz e Sousa, Os Sertões (1902), Memórias Sentimentais de João Miramar (1924), Angústia (1936) [tão superior a O Estrangeiro (1942), de Camus, p.ex. e em minha opinião], Grande Sertão: Veredas (1956), Crônica da Casa Assassinada (1959), A Paixão segundo GH (1964) ou A Obscena Senhora D (1982), além de poemas de Manuel Bandeira, Murilo Mendes, Carlos Drummond de Andrade, Henriqueta Lisboa, João Cabral de Melo Neto, Augusto de Campos, e outros. Certamente, a coisa tem mudado. Já escrevi para a DW Brasil sobre a recepção internacional tanto de Clarice Lispector [“Romances de Clarice Lispector voltam a despertar interesse internacional”, DW Brasil, 28.06.2012] quanto de Hilda Hilst [“A recepção de Hilda Hilst em língua inglesa“, DW Brasil, 12.09.2014]. Para 2016, a escritora e tradudora alemã Odile Kennel e eu planejamos a primeira antologia de Hilda Hilst em alemão, a sair por minha editora aqui, a Verlagshaus J. Frank, em uma coleção de poetas internacionais mortos que já conta com antologias do grego Konstantínos Kaváfis, do britânico Wilfred Owen e do russo Vladimir Maiakóvski. Poetas extremamente locais, mas que o mundo não teme em chamar de universais.

Mas, se frequentemente nos irritamos com o desconhecimento do público internacional em relação a nossa literatura, podemos realmente jogar pedras na casa do vizinho, ou talvez nossa casa seja de vidro, para usar o ditado americano? Por exemplo, este ano a Feira do Livro de Frankfurt homenageia a literatura da Indonésia, o quarto país mais populoso do mundo. Os três mais populosos, logo à frente, são China, Estados Unidos e Índia. Logo em seguida, em quinto lugar, vem o Brasil. Pois bem, quantos escritores indonésios você leu ou poderia mencionar, assim, de cabeça? Eu, sinceramente, só poderia agora mencionar o poeta e prosador Afrizal Malna (Jacarta, 1957), e tão-só porque o conheci e li com ele em um festival de poesia na Holanda, no ano passado. Hoje, graças à revista americana Asymptote Journal, que dedica bastante energia a divulgar autores internacionais nos Estados Unidos (já publicou Hilda Hilst, Waly Salomão, Nuno Ramos e Paulo Scott, por exemplo), descobri a poeta e arquiteta Avianti Armand, nascida em Jacarta em 1969. A revista menciona, em um artigo sobre a literatura indonésia contemporânea, o autor Pramoedya Ananta Toer (1925-2006), que parece funcionar para a literatura indonésia como Jorge Amado por muito tempo funcionou para a brasileira e Gabriel García Márquez para a colombiana. Ou seja, “aquele único autor” do país que deve cumprir o papel de porta-voz e compêndio de todas as experiências do território, quando se trata de um país do qual o “mundo civilizado” não espera demasiado. Pessoalmente, veja bem, não me lembrava de jamais ter ouvido falar de Pramoedya Ananta Toer. E quanto a um clássico da literatura indonésia, do porte de Machado de Assis ou Anton Tchékhov? Eu não saberia responder, da mesma forma que imagino que um holandês ou indonésio possam perfeitamente, apesar de cultíssimos, jamais ter ouvido falar de Machado de Assis. Quantos autores australianos conheço, daquele país enorme? Será que um dia o excelente escritor zimbabuense Dambudzo Marechera (1952-1987) será traduzido no Brasil? Enfim, nós mal conhecemos a poesia produzida no território brasileiro em línguas que não a portuguesa, como a poesia araweté, a maxakali ou a kuikuro.

E aqui chegamos talvez à doença da qual tudo o que discuti acima sejam apenas os sintomas: nossa mentalidade colonial e colonialista, ainda imperando em pleno século 21. E, contra esta doença, a tradução continua sendo o melhor remédio. Traduzir, traduzir, traduzir: indonénios, zimbabuenses, australianos, húngaros, e, por que não?, mais russos, e mais franceses, e mais americanos. Mas com uma certa atenção para nossas grandes lacunas de gente cultíssima.

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terça-feira 20.01.2015 | 19:06

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Sobre o “Jóquei” de Matilde Campilho

jóqueiPoucos livros de poesia em língua portuguesa nos últimos anos foram recebidos com a atenção e o entusiasmo que se dedicou a Jóquei (Lisboa: Tinta-da-China, 2014), de Matilde Campilho. Sim, é certo que a Poesia Reunida de Paulo Leminski entrou para a lista de mais vendidos, e a felicidade de muitos leitores foi grande com a reunião da obra poética de Ana Cristina Cesar em um único volume, ambos pela Companhia das Letras. Mas são autores de culto já há algum tempo. Matilde Campilho era uma estreante, tendo surgido no cenário com alguns poucos poemas publicados em jornais e revistas, todos no Brasil. Em Portugal, a recepção foi tonitruante. Em poucos meses, o livro chegou à terceira edição, e a autora foi convidada de programas de televisão, rádio, tendo o livro comentado pelos principais jornais dos dois lados do charco Atlântico.

As expressões de críticos eram de pasmo, surpresa. No jornal português O Público, o crítico João Bonifácio chegou a chamar a autora de “meteorito” (“A montanha privada de Matilde Campilho”, O Público, 1.8.2014). A metáfora me pareceu estranha, já que meteoritos não são exatamente bem-vindos, e tendem a espatifar-se no chão, causando um ou dois estragos. No mesmo O Público, o crítico Gustavo Rubim escreveu uma pequena nota, dizendo: “Esta coisa é certa: nenhuma geração de poetas nos prepara para a geração seguinte. Fôssemos acreditar em certo recato, pacato até na rebeldia, que por aí imperou em livros e revistas, e o vento de pura selvajaria que sopra na poesia de Matilde Campilho ser-nos-ia absolutamente ininteligível. Jóquei é um acontecimento precioso em língua portuguesa, nem vale a pena dizer menos.” E uma palavra parece recorrente nos comentários ao livro: alegria, a alegria da autora e seus poemas, diagnosticando esta como o motivo para a paixão de tantos leitores pelo trabalho de Matilde Campilho. No Brasil, a última autora portuguesa a gerar esta atenção havia sido Adília Lopes, quando Carlito Azevedo publicou sua Antologia (São Paulo/Rio de Janeiro: CosacNaify/7Letras, 2002), na década anterior.

Parece difícil filiar a poesia da autora, e isso não deixa de ser sorte para Campilho, que escapou em grande parte da obsessão, de certos críticos (eu, muitas vezes, entre eles), de encontrar pai e mãe para novos poetas. Ao mesmo tempo, essa tentativa de fazer sua poesia pairar como sem âncora na poética lusófona contemporânea não me parece completamente correta. Talvez Rubim tenha apontado um caminho correto ao posicionar a obra da autora contra o pano de fundo das publicações dos últimos anos. Creio que ele se referia tão-só à poesia portuguesa, mas não deixa de fazer sentido também em relação à brasileira.

Portugal conta hoje com excelentes poetas. Sou um admirador do trabalho de Miguel Martins, assim como de António Barahona, Rui Pires Cabral, Inês Dias e vários outros. Mas são autores de outra geração, e talvez haja realmente algo diferente acontecendo agora, cada qual à sua maneira, no trabalho de poetas como Golgona Anghel, Raquel Nobre Guerra… e Matilde Campilho, foco deste artigo.

Tentarei elaborar algumas ideias a seguir, como poeta e crítico brasileiro, o que certamente condiciona minha leitura. Não vou retomar a narrativa sobre sua biografia nos últimos anos. Sabe-se, isso foi mencionado em todos os artigos, que Matilde Campilho, nascida em Lisboa em 1982, vive há alguns anos entre sua cidade natal e o Rio de Janeiro. A influência disso sobre sua escrita foi também discutida, seu português lisboeta-carioca, o uso de construções sintáticas que se mesclam entre os infinitivos e os gerúndios, expressões dos dois países casadas muitas vezes no mesmo poema. Isso certamente tem um impacto sobre sua linguagem e portanto sobre seus leitores, um impacto de estranhamento, que funciona poeticamente nos dois territórios lusófonos.

Mesmo antes de publicar – como nos acostumamos a entender publicação, ou seja, botar no papel, Matilde Campilho já havia publicado (tornado públicos) outros textos, com sua voz, em vídeos. Isso é um fator importante. Ainda que os textos dos vídeos não tenham entrado no livro, com a exceção de “Conversa de fim de tarde depois de três anos no exílio”, a composição deles, seja qual for o suporte de publicação, parece-me fincada na tradição oral. No seu manifesto “Personism”, Frank O’Hara – com quem creio que a portuguesa aprendeu algumas coisas, escreve: “While I was writing it I was realizing that if I wanted to I could use the telephone instead of writing the poem.” Há no trabalho de Campilho um tom de conversação, de diálogo, e dois dos poemas chegam a assumir esta forma [“Obituário de J. Anderson Pritt, pela mão da viúva” e “Quando (A) e (B) se sentam no degrau da banca de jornal para conversar sobre pormenores supradimensionados”]. Mas ainda assim eles não são mera conversa, linguagem transparente, apenas funcional em sua transmissão de uma mensagem. Se eu tentasse aqui uma filiação na tradição, diria que a poesia de Campilho é bárdica, se me permitem usar a expressão altissonante. Trata-se de algo que perpassa grande parte da poesia ocidental, de Taliesin no século 6 a Ginsberg no século 20.

Quando em um verso ela diz algo simples, direto, até comum, mas logo em seguida o liga a algo que jamais esperaríamos em sequência, ela está lançando mão de uma forma eficiente de iluminar o comum com o incomum, e vice-versa. É como o “I do this, I do that” de O’Hara, mas a experiência logo é transformada pela imaginação. O texto pode surgir de uma ocasião banal, mas a autora logo o conecta a outras experiências, e tudo se torna experiência de linguagem. Pois, a isso tudo, une-se o talento fanopaico invulgar de Matilde Campilho, sua poesia que é fortemente imagética, gerando suas surpresas através de metáforas e símiles que causam um sobressalto, não por qualquer surrealismo, mas por ser capaz de fazer conexões, em nossa mente, de coisas que não teríamos imaginado irmanadas. No entanto, sem retirá-las do mundo onde e tal qual são e estão. Se seus poemas nascem de impactos recebidos em sua vida, a imaginação da autora imediatamente parece fazer com que ela os conecte a impactos outros, sobre outros, ligando a História geral à sua história pessoal. E é isso que difere sua poesia da de alguns outros autores que partem de sua biografia. Muito diferente do que por vezes se chama de “poesia do cotidiano”, Campilho não está buscando a beleza do simples, do diário, do pessoal, apenas por serem simples, diários, pessoais. É aqui que eu tentaria classificar o diagnóstico de alegria em sua poesia. Não me parece tanto alegria quanto certo espanto. Matilde Campilho é uma poeta que ainda se espanta, e o confessa com candor, em meio a um tempo que espera demonstrações de inteligência através da ironia, do sarcasmo, de certa contemplação fria do mundo. Mas a contemplação da portuguesa jamais é fria. É por isso que eu diria: não alegria, mas espanto. E esse espanto parece-me eminentemente religioso. Há em sua poesia uma sensação, mesmo que tênue, de algo sagrado que sobrevive. Ainda que ela não faça aparentes voos ao transcendental, eu diria que sopra pela poesia de Matilde Campilho uma certa reverência pelo mundo como local em que algo, mesmo que tangível e visível apenas por segundos, revela-se. Se alegria, então aquela que Clarice Lispector descreve em sua advertência aos possíveis leitores de A Paixão segundo GH (1964): a alegria difícil.

Pois, ao ler Jóquei, de Matilde Campilho, não vejo ingenuidade em seu candor. É um risco que ela assume, como escritora. Pessoalmente, sendo também poeta, às vezes mal consigo crer que ela tenha escolhido começar um poema da forma como começa alguns deles. Mas conforme a leitura do texto avança, os choques entre o banal e o maravilhoso vão se acumulando, gerando um efeito bastante singular. Não é fácil escrever sobre sua poesia, pois ela parece caminhar na corda-bamba entre o que é e o que não é com um equilíbrio delicado. E fica-se com medo de distraí-la. Pensei nas expressões de Federico García Lorca em sua conferência “Teoria e prática do duende”, quando diz “O anjo deslumbra, mas voa sobre a cabeça do homem, está acima, derrama sua graça, e o homem, sem nenhum esforço, realiza sua obra, ou sua simpatia, ou sua dança. (…) A musa dita, e, em algumas ocasiões, sopra.” Há vários poetas hoje, escrevendo em nossa língua, que parecem ter uma linha direta, estilo 0800, com a Musa, e outros que têm encontros semanais com o Anjo. São excelentes. E há alguns como Campilho, de quem eu diria simplesmente: “tiene duende, cariño, tiene duende.” Bem-aventurados, pois estes acertam até quando erram.

Preciso encerrar este texto, esta aproximação. Deixem-me tentar fazer da seguinte maneira: eu acredito que Matilde Campilho sabe que “a aproximação, do que quer que seja, se faz gradualmente e penosamente – atravessando inclusive o oposto daquilo que se vai aproximar,” como escreveu Lispector naquela mesma advertência. O que chamei de atenção ao sagrado, o que chamei de místico, de religioso em Jóquei, talvez seja certa lucidez, certa atenção ao mundo que Orides Fontela descreveu tão bem em seu pequeno poema: “A um passo / do pássaro/ res / piro”: atenção ao pássaro unida à atenção do próprio pássaro. No momento em que as duas se encontram, perde-se a contemplação. Trata-se do contrário, me parece, da ideia de Drummond sobre a tristeza das coisas “contempladas sem ênfase.” Matilde Campilho dá seu passo, a um passo da res (coisa, em latim), seja pássaro ou amante distante ou sorvete ou roda gigante ou a ilha Formosa ou a baleia que tropeça – jamais sem ênfase, e res-pira.

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quarta-feira 14.01.2015 | 13:01

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Charlie Hebdo e a necessidade da sátira

hebdoO atentado contra a redação do semanário satírico francês Charlie Hebdo ontem [07.01.15] em Paris, no qual foram executados o editor Stéphane Charbonnier, o Charb, assim como vários membros da revista (Tignous, Cabu, Wollinski, entre outros) e dois policiais, causou consternação, revolta e repúdio ao redor do mundo. Foi um dia lúgubre. Do outro lado do Atlântico, uma bomba explodiu diante do escritório da NAACP (National Association for the Advancement of Colored People) em Colorado Springs, sem deixar feridos. No Cairo, um policial do esquadrão antibombas perdeu a vida ao tentar desarmar um explosivo que detonou em suas mãos. Tudo isso com um mundo que parece polarizar-se cada vez mais ao fundo. Reportagens já pipocam hoje com notícias de represálias na França. Em Les Mans, oeste de Paris, granadas foram lançadas contra uma mesquita.

É tudo muito recente e é difícil escrever no calor da hora. Cartunistas, jornalistas, escritores, poetas de vários países fizeram suas homenagens aos artistas mortos. Sem dúvida, é um momento para unirmo-nos em nossos ideais republicanos e democratas, defender a liberdade de expressão contra qualquer tipo de censura, seja política ou religiosa. Para alguém vivendo na Alemanha, o momento parece particularmente perigoso. Há semanas vêm recrudescendo as manifestações islamofóbicas semanais na cidade de Dresden, com o movimento Pegida, em alemão: Patriotische Europäer gegen die Islamisierung des Abendlandes (Europeus Patriotas contra a Islamização do Ocidente). Já se pode imaginar de que forma o movimento tentará instrumentalizar o atentado horrível de ontem.

Democratas de todo o mundo, de qualquer religião ou ideologia, sabem qual a importância da sátira para a democracia. São os totalitários, de qualquer religião ou ideologia, que não a podem tolerar. Na República de Roma, ela floresceu nas mãos de poetas como Catulo. Seu poema contra Júlio César foi tolerado pelo político, mas, segundo Suetônio, ele sabia muito bem que o poema seria uma mancha em sua reputação pelos séculos vindouros. Já Ovídio, no Império, não teve a mesma sorte com Augusto. Não se sabe o motivo de seu exílio, mas Ovídio o teria explicado como sendo fruto de carmen et error, um poema e um erro.

Na própria França, Honoré Daumier acabaria preso por 6 meses em 1832 por representar em um desenho o rei Louis Philippe I como Gargântua e, mais tarde, com uma pera por cabeça. O semanário que precedeu Charlie Hebdo, chamado Hara-Kiri (“Journal bête et méchant”), foi banido pelo governo de Charles de Gaulle entre 1961 e 1966, e em 1970, quando o jornal satirizou a morte do próprio De Gaulle, sua venda foi proibida para menores pelo Ministro do Interior da época, Raymond Marcellin. São tantos e horríveis os exemplos no século 20. Basta mencionar aqui o caso triste de Óssip Mandelshtam (1891-1938), que morreria no Gulag por seu poema satírico contra Stálin.

O Brasil tem uma longa e forte tradição satírica. Nosso primeiro poeta lusófono, Gregório de Matos (1636-1696), é conhecido como Boca do Inferno. No século 19, a sátira foi uma arma política em autores como Sapateiro Silva, Machado de Assis e Luiz Gama, cada um à sua maneira. No século 20, grande parte do nosso modernistmo recorreu à sátira, como no poema “Os sapos”, de Manuel Bandeira, ou no romance Memórias Sentimentais de João Miramar (1924), de Oswald de Andrade. Jamais me esqueci do capítulo 8, “Fraque do ateu”:

FRAQUE DO ATEU

Saí de D. Matilde porque marmanjo não podia continuar na classe com meninas.

Matricularam-me na escola modelo das tiras de quadros nas paredes alvas escadarias e um cheiro de limpeza.

Professora magrinha e recreio alegre começou a aula da tarde um
bigode de arame espetado no grande professor Seu Carvalho.

No silêncio tique taque da sala de jantar informei mamãe que não havia Deus porque Deus era a natureza.

Nunca mais vi o Seu Carvalho que foi para o Inferno.

(Oswald de Andrade, Memórias Sentimentais de João Miramar, 1924)

Durante a ditadura militar, foi inestimável a importância de um semanário satírico como O Pasquim, com jornalistas e cartunistas como Jaguar, Sérgio Cabral, Tarso de Castro, que o fundaram, e, mais tarde, Millôr Fernandes, Ziraldo, Henfil e Fausto Wolff, entre outros. Mesmo hoje, a escrita satírica vem sendo uma arma na mão de vários autores contemporâneos, como Ricardo Aleixo, Marcus Fabiano Gonçalves, Angélica Freitas, Veronica Stigger e Dirceu Villa.

O riso é um direito inalienável. E ele sempre causa desconforto. Não há maior ofensa, em determinadas situações, do que o riso. Mas trata-se de uma ofensa apenas para os que se creem detentores de uma verdade única e absoluta. As relações entre as diferenças de opinião dentro de uma democracia não são fáceis de negociar. Elas têm, no entanto, que incluir o direito de uns ao afirmarem que outros são pecadores, e o direito destes de responder com a afirmação de que aqueles são tolos. Por fim, os extremistas das três religiões abraâmicas parecem desconhecer os próprios ensinamentos pacíficos destas religiões. E isso finalmente leva a estes crimes hediondos, que se acumulam sob os pés do Anjo da História, descrito por Benjamin como em pé sob os escombros das catástrofes. Foram extremistas cristãos os que massacraram milhares de palestinos em Sabra e Shatila em 1982. Foi um extremista judeu quem assassinou Yitzhak Rabin em 1995. Os extremistas que assassinaram Charb, Tignous, Cabu, Wollinski e outras 8 pessoas em Paris eram islâmicos. Mas precisamos manter em mente que esta não é a natureza inerente destas religiões.

Num dia como o de ontem, dedici passar algumas horas lendo, pensando e convivendo uma vez mais com o trabalho de Abul ʿAla Al-Maʿarri (973-1058), um poeta e filósofo árabe que satirizou inúmeras vezes as sandices de qualquer religião, dirigindo sua pena contra judeus, cristãos, masdeístas e muçulmanos. Um de seus poemas diz:

Erram todos – judeus, cristãos,
muçulmanos e masdeístas:
A humanidade segue duas seitas:
Uma:  pensadores sem religião,
Outra: religiosos sem intelecto.

Seu riso agnóstico causa desconforto até hoje. Mais de um milênio depois de escrever estas linhas, a estátua de Al-Maʿarri na Síria seria decapitada por rebeldes durante a Guerra Civil.

Cartunistas ao redor do mundo, ontem, responderam com o riso. Não era um momento fácil para ele. Em seu poema em resposta aos atentados [“a quente manhã de janeiro”, revista Modo de Usar & Co., 08.01.15], o paulistano William Zeytounlian recorreu a uma epígrafe de Konstantínos Kaváfis: “aproxima-te – não hesites – da janela / e escuta comovido, porém / sem pranto ou prece pusilânime, / como quem frui de um último prazer, os sons, / os soberbos acordes do místico tíasos: / e saúda Alexandria, enquanto a estás a perder”. Que Alexandria estamos perdendo? Teremos a lucidez para saber, quando há sangue jorrando? O próprio Zeytounlian escreve em seu poema:

Hollande diz, em seu pronunciamento, duas vezes
a palavra ‘bárbaro’
(antes da França ser França
os povos que ali habitavam
eram chamados de bárbaros).

hoje, a França se embarbára contra os barbados
e o le point espalha nos metrôs de Paris
a chamada nos ennemis islamistes
(em cima a palavra MALI contextualiza discretamente).

Se a intenção dos assassinos era galvanizar diferenças e dividir, podemos apenas esperar que falhem. Milhares de pessoas em Paris ontem ergueram suas canetas em protesto e homenagem silenciosos. Ergo aqui a minha.

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quinta-feira 08.01.2015 | 10:43

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