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Abud Said: um autor nascido na Síria, refugiado na Alemanha e agora publicado no Brasil

Guerras são o reino oficial dos números. Números de tropas, de batalhas, de refugiados, de mortos. No ano passado, as manchetes dos jornais europeus ganharam novos números, recorrentes: os de afogados no Mediterrâneo. Eram 400 numa manhã, para uma semana depois subirem para 900. Os números flutuavam como os corpos, mas eram constantes. A História oficial não tem como dar conta de cada um destes indivíduos, especialmente após termos nos acostumado a ler nela apenas sobre os feitos de vida e da morte de reis e de presidentes.

Capa do livro de Abud SaidA guerra civil síria, iniciada em 2011, tem reverberado num raio de milhares de quilômetros, atingindo países do norte da África, do Oriente Médio e de toda a Europa. Mais uma vez, somos confrontados com os destinos abstratos de números.

Até que abrimos um livro com textos escritos em meio aos bombardeios, e lemos: “Meu quarto é o que não tem cama / tem uma TV e um aquecedor / minha mãe sempre fica sentada nele / rezando e assistindo às notícias, e como ela não sabe ler, todo dia me pergunta o número de vítimas. / Fico nervoso com as perguntas dela e de vez em quando invento um número da minha cabeça.”

Este é um fragmento do livro O Cara Mais Esperto do Facebook, do sírio Abud Said (na Alemanha grafado como Aboud Saeed), que a Editora 34 lança neste mês de junho em tradução do árabe por Pedro Martins Criado. Foi um dos primeiros textos que li ao me deparar com a tradução alemã de Sandra Hetzl, lançada pela Mikrotext Verlag, lançado pela primeira vez como livro digital, especialidade da editora alemã.

Abud Said jamais planejou ser escritor, ou ter estes textos reunidos em livro. Nascido na vila síria de Manbij em 1983, vivendo a maior parte de sua vida em Alepo, no norte do país, ele trabalhava como ferreiro quando eclodiu a guerra. Seus textos, todos postagens no Facebook, documentam a vida normal de um homem que trabalha em seu país natal, falando sobre cigarros, mulheres, a relação com sua mãe. E o impacto humanizador de seu livro é justamente ver sua vida seguir desenrolando-se entre cigarros, mulheres, o trabalho, a vida doméstica em meio à guerra. No dia 30 de dezembro de 2011, já após a chamada Primavera Árabe, Said posta: “Escreverei tudo que me vier à cabeça / sobre a vizinha que pegou um prato nosso / emprestado e devolveu outro / Minha mãe, ressentida, mandou-me à casa dos vizinhos para dizer: este não é o nosso prato. / O nosso é o que tem uma flor verde estampada.” Um texto como esse, escrito em tal contexto, dá um significado mais vivo à nossa expressão surrada de “A vida continua”.

Nas palavras do próprio Abud Said, “Escreva como se tocasse piano em uma sala vazia”. Talvez tenha sido sua despretensão por qualquer carreira literária, mas eivada por um talento claro, que o tenha tornado tão conhecido e lido num momento em que muitos escritores oficiais naufragaram ao tentar dar voz aos vivos e aos mortos da guerra.

Conversando com sua tradutora alemã, Sandra Hetzl – que vive há algum tempo em Beirute, foi assim que ela me relatou a descoberta: buscando autores contemporâneos de língua árabe a pedido de editoras alemãs, ela encontrava apenas vozes de palanque, ou enfeitadoras demais. Um conhecido sugerira: adicione Abud Said no Facebook ou o siga. Foi assim que a reunião de seus posts se tornou o volume Der klügste Mensch im Facebook: Statusmeldungen aus Syrien, que teve tanto sucesso em sua versão digital que também ganhou versão impressa. Traduzido para o inglês e o espanhol, e transformado em peça radiofônica. Agora, o livro chega ao português, editado no Brasil, e Abud Said vem ao país para participar da FLIP 2016. Vivendo há um ano como refugiado em Berlim, após a guerra destroçar sua cidade de Alepo, Abud Said vê tudo com o ceticismo que demonstra em seus textos. Eu o conheci pessoalmente em um festival na Eslovênia. Ele continua sendo um cara que quer apenas fumar seus cigarros em paz.

Data

terça-feira 24.05.2016 | 08:49

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