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Austríacos em meus olhos e ouvidos

Em meu último texto neste espaço [“Sprachraum. Lusofonia.”, DW Brasil, 8.5.2015], comentei as diferenças entre as esferas linguísticas da língua alemã e da língua portuguesa, apontando de passagem o que elas geram em distinções nas comunidades literárias das duas línguas. Pois, ainda que os trabalhos de escritores de língua alemã circulem de forma mais livre no bloco geográfico germânico, por este ser tão compacto, é óbvio que os contextos históricos específicos de cada país, em especial sua relação com a história recente do século 20, exigem muitas vezes dos autores estratégias diferentes. Antes de seguir, quero frisar que minha conversa não quer propor hierarquias entre as literaturas nacionais que comentarei aqui.

Eu sempre insisti na importância do contexto histórico para a compreensão e discussão do trabalho literário. No caso do Brasil, o passado colonial sempre terá uma influência sobre as relações literárias entre o país e Portugal. Quando pensamos na literatura de vários países das Américas, é interessante notar como, por exemplo, as literaturas do Brasil, do México e dos Estados Unidos tendem a ter sanha e manha experimentais maiores que as de Portugal, Espanha e Inglaterra, respectivamente. Talvez isso se dê justamente pelo passado colonial, e aquela sensação de que a tradição da língua lhes pertence e não lhes pertence, ao mesmo tempo. Crer que se está começando dá maior liberdade.

Mas como se daria isso no caso dos países que têm o alemão por língua oficial? Talvez um novo paralelo entre o português e o alemão nos ajude: pois um dos mais frutíferos movimentos experimentais brasileiros, a Poesia Concreta, teve dupla paternidade em língua portuguesa e em língua alemã, com os experimentos iniciados por volta de 1952 por Haroldo de Campos, Décio Pignatari e Augusto de Campos no Brasil, e por Eugen Gomringer, poeta boliviano naturalizado suíço. Ao mesmo tempo, as estratégias das vanguardas históricas do entreguerras, em especial o Dadaísmo (que teve seu nascimento em 1916 em Zurique, na Suíça, não na Alemanha), foi retomado com força primeiramente na Áustria, com o Grupo de Viena (H. C. Artmann, Konrad Bayer, Gerhard Rühm etc.).

Quando comparo as literaturas alemã e austríaca hoje, em especial na poesia, noto as mesmas sanha e manha experimentais maiores que noto nos países americanos em comparação com os países da matriz de suas línguas. Isso não quer dizer que não houve experimentação na Alemanha no mesmo período, com Helmut Heissenbüttel por exemplo na década de 50. Mas isso teve muito mais força na Áustria. Quando pensamos na prosa experimental, alguns nomes nos vêm à mente: Joyce e Beckett, em inglês (nascidos na Irlanda), Guimarães Rosa, em português (nascido no Brasil), assim como vários escritores de língua francesa nascidos fora da França. Na língua alemã, o prosador geralmente mencionado junto destes é o austríaco Robert Musil, assim como pensamos nas inovações do suíço Robert Walser e do austro-húngaro/tcheco Franz Kafka. Mas, um vez mais, deixo claro que não estou tentando hierarquizar, nem criar um determinismo, como se bastasse nascer em determinado país para se tornar um escritor experimental. Sabemos dos tantos tradicionalistas que já nascem com mofo no Brasil.

O poeta austríaco mais conhecido no Brasil, eu arriscaria dizer, é o expressionista Georg Trakl, que me parece mais moderno que alguns de seus companheiros alemães, como Ernst Stadler, Georg Heym e Else Lasker-Schüler, exceção feita a August Stramm.

Minha primeira paixão austríaca foi na verdade um pensador, o judeu homossexual Ludwig Wittgenstein. Em seu livro A Escada de Wittgenstein [São Paulo: Edusp, 2008. Tradução de Aurora Bernardini], a crítica norte-americana Marjorie Perloff discute como o pensamento de Wittgenstein parece congenial na língua alemã ao trabalho literário de outros três austríacos: Ingeborg Bachmann, Thomas Bernhard e Peter Handke. São três dos autores por quem mais tenho interesse no pós-guerra germânico. Peter Handke, no contexto de nossa conversa, foi instrumental para a renovação do debate literário germânico no período, em especial por seu papel em questionar a influência do chamado Grupo 47, formado na Alemanha em 1947 para retomar os trabalhos literários após a queda do regime nazista, e no qual ganharam atenção alguns dos mais importantes escritores de língua alemã das próximas décadas, como Günter Eich, Heinrich Böll, Martin Walser e Günter Grass.

Com uma estética e ideologia que poderíamos chamar de neo-realista, é conhecida a reação de grande parte do grupo quando Paul Celan leu em um dos encontros pela primeira vez: rejeição completa. Ainda que a literatura do grupo tenha formado o que ficou conhecido como Trümmerliteratur (Literatura dos escombros), uma poesia como a de Celan, que fazia em escombros a própria língua e literatura, não era bem-vinda. O ataque de Peter Handke ao grupo em 1966 é considerado um dos fatores determinantes para sua dissolução, que teve seu último encontro em 1967. Peter Handke viria a se tornar um dos autores mais influentes e renovadores da língua nas décadas seguintes.

Outra das experiências mais radicais da literatura em língua alemã do pós-guerra, tratando de frente o terrível passado histórico da região, é o trabalho do também austríaco Heimrad Bäcker. Usando material linguístico já existente, extraído dos arquivos do regime nazista (algo como o que Oswald de Andrade faria com documentos e textos coloniais), Bäcker criou alguns poemas poderosos, como este abaixo, intitulado “epitáfio (3)”, de 1986, que usa o material do “plano ferroviário nr. 587 da direção geral da ostbahn (ferrovia do leste), do dia 15 de setembro de 1942 – ‘trem especial para migrantes'”.

9228 de sedziszow para treblinka

9229 trem vazio

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Sedziszow, Szydlowiec e Kosienice são cidades do interior da Polônia. O campo de extermínio de Treblinka é o mais conhecido dos quatro campos de extermínio da chamada “Operação Reinhard”, nome dado pelos nazistas para o programa de extermínio dos judeus poloneses. Treblinka foi o destino da grande maioria dos judeus do Gueto de Varsóvia. Entre julho de 1942 e setembro de 1943, cerca de 750.000 judeus foram assassinados no campo. Trabalhos de apropriação como este só começariam a ser praticados na Alemanha nos últimos anos, em especial no trabalho crítico e poético de Swantje Lichtenstein.

As cenas poéticas alemã e austríaca são razoavelmente distintas hoje. Com formações literárias e acadêmicas, a poesia alemã demonstra ainda hoje características menos experimentais que a austríaca. Gostaria de encerrar este texto tratando de quatro poetas contemporâneos austríacos por quem tenho especial admiração e interesse, vindo de quatro gerações distintas: Christian Ide Hintze (1953-2012), Jörg Piringer (n. 1974), Max Oravin (n. 1984) e Oskar May (n. 1991). Quatro poetas experimentais, ligados à prática da poesia sonora, que tem muito mais força na Áustria que na Alemanha.

Christian Ide Hintze, nascido em Viena, foi uma das vozes mais importantes da poesia experimental germânica nas últimas décadas. Defensor das possibilidades que as novas tecnologias traziam para novas práticas e também de um retorno a formas milenares de manifestação poética, trabalhou com filme e intervenções urbanas em cidades como Viena, Londres, Estocolmo. Chegou a ser preso na Berlim Oriental por uma performance, expulso de uma feira editorial em Stuttgart e condenado em Viena por destruição de patrimônico público por colar poemas e cartazes nas paredes do Burgtheater. Em 1992, fundou em Viena a importante e influente Schule für Dichtung (Escola de Poesia), na qual deram aulas poetas como Allen Ginsberg, Humberto Ak’abal, Nick Cave, H. C. Artmann, Anne Waldman, Blixa Bargeld, Henri Chopin, Ed Sanders, Ayu Utami e Inger Christensen. Sua morte prematura em 2012 foi um choque e uma grande perda.

Jörg Piringer é um poeta sonoro e visual. Atualmente, vive e trabalha em Viena. Alguns de seus trabalhos incluem the joseph boys – stille nacht (performance sonora), konkrete inventionen – samplepoems, hearings (trabalho organizado para o Instituto de Pesquisa Transacústica), digitale dichtung (poesia digital) e wir alle (filme sonoro-textual). O trabalho poético de Jörg Piringer une poesia sonora e visual, tornando-se uma demonstração das possibilidades criativas para a poesia em outras mídias, independente do papel para composição, divulgação e distribuição. É uma das experiências mais radicais na língua alemã em termos de uma pesquisa de novas práticas poéticas a partir de novas tecnologias. Nos últimos anos, tem se dedicado à criação de aplicativos para celulares que permitem jogos de linguagem.

Max Oravin prepara seus textos para performance, compondo-os com música eletrônica e apresentando-se como Oravin. Como uma espécie de Minnesänger contemporâneo, seus textos estão ligados à tradição trovadoresca, permitindo que funcionem tanto na voz como na página.

a grande chancelaria do sol

sobre o fogo há uma rocha e sobre ela uma rocha e sobre ela uma rocha
e sobre ela a terra negra
e sobre a terra estão os pés
e sobre os pés flutua um crânio
e sobre o crânio está uma faca e costura
um pensamento

e sobre o crânio está um osso e sobre o osso os cabelos
e sobre os cabelos está o céu o inquieto amplo céu
e entre o céu estão pássaros com ossos e penas
e no crânio os pensamentos

e sobre o céu está o mundo e curva-se perante o rei

sobre o rei está um chanceler e sobre ele um chanceler maior
e sobre ele a chancelaria
a grande chancelaria do sol
e sobre o sol está a noite longa
com longos dedos frios

e sobre a noite está o dia o infindável dia
e no dia está uma faca e costura o céu
para que caia daí a luz
no dia está a faca e costura
a luz

EU ABRO MINHA BOCA
E VOCÊ INSERE UM VOCÁBULO
UM PEDREGULHO NA LÍNGUA

EU ABRO MEU OUVIDO
E VOCÊ INSERE UM VOCÁBULO
UM OSSO MASTIGADO

EU ABRO MINHA MÃO
E VOCÊ COSPE SEU VOCÁBULO
SEU VOCÁBULO SALIVADO

EU ABRO MINHA MÃO
E VOCÊ ME DÁ UMA PEDRA
E A PEDRA CRESCE EM ROCHA

(tradução minha)

Por fim, tive o prazer de conhecer este ano o jovem poeta e escritor Oskar May, também de Viena, como Hintze e Piringer. Formado em filosofia, Oskar May é um dos cofundadores de um dos eventos mais interessantes da capital austríaca no momento, o “Philosophy Unbound”, que tem atraído centenas de pessoas para eventos em que jovens apresentam suas falas e textos de filosofia. Além disso, Oskar May tem uma das vozes mais belas da poesia alemã contemporânea, como voz física e voz poética, num trabalho sonoro que retoma tanto certas práticas dadaístas como do trovadorismo germânico.

Apesar de viver na Alemanha, é por estas razões que meus ouvidos e olhos muitas vezes se direcionam para a Áustria.

Oskar May

Oskar May

Data

terça-feira 12.05.2015 | 09:08

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