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Carta em Istambul a William Zeytounlian

0,,17195112_101,00Meu caro irmão pequeno, como diz Mário de Andrade naquele seu rito a Manuel Bandeira – “E quando a fadiga enfim nos livrar da aventura, / Irmão pequeno, estaremos tão simples, tão primários, / Que os nossos pensamentos serão vastos. / Graves e naturais, feito o rolar das águas” –, várias coisas eu quis dizer a você hoje, com quem me entendo por certo melhor do que com os que comigo compartem sangue, então venho por meio desta agora confessar que, ao sobrevoar e pousar em Istambul, era preso a você que ia meu pensamento, na mesma estranheza que geraria talvez um estrangeiro sobrevoando e pousando em Berlim com o pensamento firme e fixo em um amigo judeu, mesmo que nascido em São Paulo, Buenos Aires ou Nova York; e se me peguei chamando de Constantinopla a cidade, não foi por compartilhar com gregos nacionalistas de sua Megali Idea, sonhando reavivar um Império Bizantino e pan-helênico; muito menos por desejar insulto às tantas famílias muçulmanas há séculos chamando de lar este rincão de terra; tampouco por qualquer romantismo cafona de poeta apaixonado por outros poetas como Kaváfis, que era, de qualquer modo, natural de outra cidade grega tomada, Alexandria; mas pensando em você, jovem poeta e quiçá ateu paulistano, nascido no seio da diáspora daquele povo tradicionalmente chamado de os mais antigos cristãos da Europa, senti um peso e medo estranho, como se a qualquer momento uma reviravolta no tecido do tempo e do espaço pudesse colocá-lo em risco de morte nesta terra onde tantos de seu povo e mesmo de sua família foram mortos, como se o passado pudesse retornar e nos capturar a todos, como tantas vezes o faz, passado que sequer possui reconhecimento oficial nos livros de História deste país.

Mas por que precisaríamos de uma reviravolta no tecido do tempo e do espaço, se neste exato tempo e espaço tantos outros encontram-se ainda em perigo, logo além da fronteira ao norte. São talvez outros possíveis irmãos pequenos que jamais conheceremos, e que no entanto talvez pudessem perambular conosco um dia pelas ruas de São Paulo, ou Berlim, ou Istambul, ou Erevã, ou Arbil, discutindo nossos poetas preferidos, fossem brasileiros, alemães, turcos, armênios ou curdos. Nem sequer tenho realmente os pés oficialmente no país, estou em trânsito apenas, cercado por paredes de vidro neste aeroporto internacional Atatürk de Istambul, vidro que porém permite-me ver, de um lado, os minaretes das mesquitas que se erguem à distância na cidade, e do outro a água azulíssima do mar de Mármara. Não podendo deixar as dependências do aeroporto, à espera do voo que me levará a meu destino final em outra terra em conflito, na cidade de Kiev, murmuro entre os dentes o nome de Hagia Sophia, e esse nome espeta o céu como os minaretes que ora a decoram, e a sabedoria é justamente o que sempre nos faltou na Terra, me levando a pensar nesta basílica-mesquita como um símbolo dos malentendidos milenares entre cristãos e muçulmanos. Monoteístas jamais entenderão talvez nossa convivência e comoriência inevitáveis. Houvesse Abraão ficado em Ur, teríamos paz? Ou seriam outros os deuses comandando-nos à guerra e à matança? Nos corredores do aeroporto, os rostos cobertos de peles das quais emanam as refrações de luz mais diversas que já vi num aglomerado de gente, gente, gente que não acaba, e me lembro que sim, esta faixa de terra foi um dia a ponte que levou os primeiros povos a sair da África em direção à Europa e à Ásia, obedecendo a um deus de nome esquecido talvez, que ordenava: “Crescei, multiplicai-vos e colonizai-vos uns aos outros”. E talvez mais importante que Hagia Sophia, a basílica-mesquita, em um ponto deste mesmo país está Göbekli Tepe, ou o “Monte com umbigo”, que arqueólogos hoje creem ser o mais antigo templo já encontrado, anterior a nossos abraâmicos, nossos monoteístas. Por Deus! Anterior mesmo a nossa descoberta da agricultura.

E dizem que nas culturas neolíticas da antiga Anatólia, os mortos eram deliberadamente expostos aos abutres e só depois enterrados, e a cabeça, removida e guardada como lembrança dentro de casa, culto aos ancestrais. O quanto mudamos, realmente? Alguma Antígona hoje ergue a voz contra os que estão expostos a abutres nas cenas de guerra infindável mundo afora? Cá estou eu, em trânsito, a caminho de outra terra onde gente de fala distinta se digladia pelo controle da terra e de si. Estamos todos em trânsito, estamos todos em guerra. Com o sangue cabloco de minha mãe e o sangue catalão de meu pai, penso como somos todos filhos de povos subjugados, querendo ter capitais e línguas oficiais, e esta é apenas uma carta escrita em um aeroporto, deste seu irmão caboclo-catalão ao irmão pequeno, armênio-paulistano. E retorno ao “Rito do Irmão Pequeno” de Mário de Andrade a Manuel Bandeira para deixar que poeta melhor que eu encerre por mim esta carta: “Vamos caçar cotia, irmão pequeno, / Que teremos boas horas sem razão. / Já o vento soluçou na arapuca do mato / E o arco-da-velha já engoliu as virgens. // Não falarei uma palavra e você estará mudo / Enxergando na ceva a Europa trabalhar; / E o silêncio que traz a malícia do mato, / Completará o folhiço, erguendo as abusões”.

Istambul, 31 de agosto de 2015

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terça-feira 01.09.2015 | 05:53

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O rio corre para sempre: homenagem a River Phoenix

Ontem, 23 de agosto de 2015, o ator norte-americano River Phoenix (1970-1993) teria completado 45 anos de idade. Ler a notícia me encheu de lembranças da infância e da adolescência. Não tenho palavras para descrever como fui obcecado por ele nas décadas de 1980 e início de 1990, até sua morte, quando eu tinha 16 anos e ele, 23. Alguns de seus filmes marcaram momentos da minha vida. Minha infância era cheia da nostalgia estranha de querer viver como em Stand by me (dir. Rob Reiner, 1986, lançado no Brasil como Conta comigo). Minha cidade natal, Bebedouro, tem um Horto Florestal e uma parte dele se chamava Água Branca, mítica, onde jamais pude ir porque era longe demais, e a cidade tem aqueles mesmos trilhos da velha estrada de ferro São Paulo-Goiaz, da Companhia Ferroviária Paulista, hoje desativada. Claude Lévi-Strauss fala dessas estradas de ferro paulistas em seu Tristes Trópicos (São Paulo: Companhia das Letras, 1996. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar).

0,,1679990_6,00Devo ter assistido mil vezes a Running on empty (dir. Sidney Lumet, 1988, lançado no Brasil como O peso de um passado). E, quando eu tinha 14 anos, Gus Van Sant lançou seu My Own Private Idaho (1991, lançado no Brasil como Garotos de programa), com River Phoenix e Keanu Reeves nos papéis principais, filme que teve um impacto gigantesco sobre minha adolescência. A famosa cena da fogueira no deserto, quando as personagens de Phoenix e Reeves estavam já a caminho de Idaho, me dava calafrios de beleza. Devo ter gastado a fita VHS em que gravei, de forma caseira, o filme. Segundo historiadores do cinema, a cena foi a última a ser gravada, por insistência de River Phoenix. É a melhor cena do filme, talvez. Mal sabia que viria a ter conversas parecidas na minha própria vida mais tarde.

“I could love someone even if I wasn’t paid for it. I love you and you don’t pay me.” – “Eu poderia amar alguém sem ser pago por isso. Eu amo você e você não me paga” talvez esteja entre as falas mais pungentes, desesperadas, ridículas e belas que já ouvi no cinema. É como no poema “Rue de Seine”, de Jacques Prévert, em que o francês descreve a briga entre dois amantes que ele entreouve naquela rua parisiense: “Pierre eu quero saber tudo / me diz a verdade/ pergunta grandiosa e estúpida”.

Pierre je veux tout savoir
dis-moi la vérité
question stupide et grandiose

É claro que muito da beleza da cena vem da performance delicada e comovente do ator. River Phoenix era sete anos mais velho que eu. Os três filmes que mencionei foram tão importantes em determinados momentos da minha vida que eu desenvolvera a fantasia de que Phoenix estaria para sempre lá, sete anos no futuro, mandando mensagens para mim em formato de filme, explicando como e o que devemos fazer em cada fase de nossa vida. Sua morte por overdose, na madrugada de 31 de outubro de 1993, me deixou de coração partido. Menciono River Phoenix em um poema de meu novo livro. Alguém precisa analisar o culto contemporâneo ao ator. Ele talvez seja nosso James Dean (1931-1955). Vários artistas, entre eles nosso Milton Nascimento, dedicaram trabalhos a River Phoenix, sempre expressando a mesma obsessão.

Descanse em paz, caro. Você continua no meu futuro. O rio corre para sempre.

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segunda-feira 24.08.2015 | 11:46

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Língua

Sempre me perguntam aqui na Alemanha como é ser um escritor lusófono que vive cercado de outra língua. Eu costumava responder que isso é bastante frutífero, pois desnaturaliza a língua para o escritor. Começa-se, ou pelo menos foi meu caso, a prestar atenção a construções que são mesmo isso, construções, quando antes pareciam tão naturais quanto as plantas e os pássaros que me cercavam na infância. Os sons parecem ficar mais claros, e você volta a questionar se são arbitrários ou se há uma ligação íntima, antiquíssima, entre som e sentido. Discussão também antiga em linguística, ainda que hoje a relação entre som e sentido seja questionada por praticamente todos. Mas, como disse George Steiner, poetas parecem estar sempre do lado desta ligação íntima entre som e sentido, entre nome e coisa, defendida por Crátilo no diálogo epônimo de Platão.

Venho pensando muito na língua. Na nossa relação com esta língua que amamos e que no entanto está relacionada a tanto horror em nosso território. O texto abaixo é o único que escrevi nos últimos meses, desde que dei por encerrado meu livro novo de poemas. Sempre passo por um período de “secura” e pausa após terminar um livro, buscando um novo caminho. Especialmente agora, por sentir que esgotei, para mim mesmo, o módulo de escrita que usei nos últimos três livros, Cigarros na cama (2011), Ciclo do amante substituível (2012) e o novo, ainda sem título definido. O texto é um ensaio sobre a língua materna, que escolho chamar de língua natal e que é, no fundo, a língua da infância. Que foi usada de forma tão exuberante por mulheres e homens, como Euclides da Cunha, que perguntou quem escreveria sobre “as loucuras e os crimes das nacionalidades”.

Testamento de Dom Afonso, o primeiro documento em língua portuguesa

Testamento de Dom Afonso, o primeiro documento em língua portuguesa

Minha cidade natal tem uma Praça da Matriz, na qual estão a Matriz, e a Fonte Luminosa, e a Concha Acústica. São utilizadas raramente, a Matriz, a Fonte, a Concha. Minha cidade natal tem um Lago, que (não gosto de revelar) é lago artificial, represa de nada mais que um córrego. Minha cidade natal tem 131 anos de fundação, minha cidade natal tem um cemitério. Neste cemitério, dois jazigos de família, o dos Domeneck, o dos Cardoso. Ingresso em um deles não obedece leis rígidas. Não se confere o R.G. aos mortos. Há trocas. Não sei em qual jazigo jaz meu pai. Não estava presente quando morreu meu pai em minha cidade natal nem quando o deitaram eternamente em berço pacífico. Raramente penso em minha cidade natal. Às vezes, minha cidade natal me tira o sono, não por causa da Matriz, da Fonte ou da Concha, ainda que me lembre da Matriz, da Fonte, da Concha, mas porque é a minha cidade natal, e nascer, escreveu Murilo Mendes, é muito comprido. Na minha cidade natal, tenho um pai morto e uma mãe sem estômago, uma mãe, literalmente, sem estômago. Na minha cidade natal, tenho irmãos e irmãs que respondiam às demandas de uma mãe sem estômago exigindo o pagamento de nossas dívidas por seus sacrifícios com a sentença: “Eu não pedi pra nascer”. Não apenas na cidade natal, no estado natal, no país natal, no planeta natal, na galáxia natal: eu não pedi pra nascer, ponto final. Gosto de ter nascido. Não pedi pra nascer, mas gosto de ter nascido. Não por causa da cidade natal, do estado natal, do país natal, do planeta natal, da galáxia natal: gosto de ter nascido, ponto final. Minto. Parte de gostar de ter nascido deve-se ao ter nascido na cidade natal, no estado natal, no país natal, no planeta natal, na galáxia natal, ainda que eu não tenha pedido pra nascer. Mas às vezes não gosto de ter nascido. Teria pedido pra nascer, tivessem me perguntado? Talvez. Deveras. Mas gosto de minha língua natal, isso é certo. Gosto de minha língua natal e jamais tive problemas com minha língua natal. Minha língua natal é a língua natal de meu pai morto e de minha mãe sem estômago. Nunca desejei ter nascido em outra língua. Minha língua natal é esta, com que escrevo este texto não natalino. Minha língua natal é a língua com que se compra requeijão em minha cidade natal. Todos na minha cidade natal compram requeijão com esta língua. Com ela, compra-se requeijão, e leite, e goiabada, e alface, e quindim. Nem todos falam minha língua natal no meu país natal, ainda que muitos acreditem que apenas se fale minha língua natal em meu país natal. São várias as línguas natais em meu país natal, ainda que apenas uma seja a língua oficial. Minha língua natal é a língua oficial de meu país natal e oficial. Esta língua, ainda que se diga surgida no além-mar, é minha língua natal. É minha. É minha língua. É minha língua natal. Com ela, não compro requeijão onde vivo, caso onde vivo houvesse requeijão. É uma língua de história violenta, a minha língua, a natal. Para muitos em meu país natal, esta minha língua natal é o símbolo de sua destruição, da morte de suas línguas natais, dos seus pais mortos por gente que fala esta minha língua natal, suas mães sem estômago, suas mães de úteros invadidos por esta minha língua natal. Por que não a chamo de língua materna se ela é a língua materna e natal de minha mãe sem estômago? Por respeito às línguas maternas e natais de outros tempos. Minhas línguas maternas foram proibidas pela língua paterna. Minhas línguas maternas foram o tupi e o iorubá. Mas o tupi e o iorubá não são minhas línguas natais, são minhas línguas maternas proibidas. Minha língua natal tem 800 anos. Como é jovem minha língua natal, bela e culta. Quanta beleza já se disse em minha língua natal, quanto horror já se impôs com minha língua natal. Em minha língua natal já se matou e estuprou, em minha língua natal segue-se matando e estuprando. Mente-se muito em minha língua natal. Sinto-me responsável por minha língua natal. Minha língua natal me tira o sono e, quando sonho, é quase sempre em minha língua natal. Minha língua natal é minha, e de outros em outros 7 países natais e oficiais. Em todos eles, mata-se e estupra-se e mente-se, enquanto se grita nesta nossa língua natal. Que bela língua natal, como é linda minha língua natal. Que pena que tenho dos que não falam minha língua natal. Que sorte a dos que não falam minha língua natal, pois que são outros seus berços esplêndidos. Não há berços pacíficos, apenas o dos jazigos das famílias, sejam Domeneck ou Cardoso ou outrem. R.I.P. não é uma sigla de minha língua natal. Nem todo jazigo é um berço pacífico. Neste nosso mundo natal, há valas comuns, berços violentos. Xibolete. Xibolete é um jogo que se joga com uma língua natal. Ouvir dizer e disse-que-disse são expressões de minha língua natal. Então digo ter ouvido dizer que na Guerra do Paraguai, uma das guerras da minha língua natal, usou-se a palavra pão como xibolete. Pão. Diga pão, paraguaio.  Diga pão paraguaio. Diga pão, estrangeiro. João. João é o nome do meu pai morto. Diga João, estrangeiro. João, meu xibolete. Quando eu morrer, espero que minhas últimas palavras sejam em minha língua natal. Com meu corpo, façam o que lhes bem aprouver. Eu não pedi pra morrer.

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segunda-feira 06.07.2015 | 11:39

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Encontros internacionais de escritores

A chegada da primavera na Europa dá início à estação dos festivais de literatura e poesia. Hoje, no Brasil, com eventos como a Festa Literária Internacional de Paraty, o Festival Artes Vertentes em Minas Gerais ou o Festival Internacional de Poesia do Recife, tais encontros se tornaram mais comuns e esperados. Não era assim no início deste século, quando a ideia de autores lendo em público ainda era algo estranho no país.

Acabo de retornar de Bremen, onde participei do festival “Poetry On The Road”, organizado por Regina Dyck anualmente desde o ano 2000. Li ao lado de autores de Gana (Nii Ayikwei Parkes), China (Bei Dao), Áustria (Gerhard Rühm), Botsuana (TJ Dema), Israel (Maya Kuperman), entre vários outros. A noite de abertura aconteceu no Theater Bremen, que acomoda cerca de 500 pessoas. Casa lotada. A segunda leitura ocorreu no teatro da Shakespeare Company, que acomoda outras 250 pessoas. Casa lotada. Todos os outros eventos, em locais menores, geraram o mesmo interesse. São daqueles acontecimentos que nos levam a questionar a tirada jornalística preguiçosa sobre a crise da poesia, como já escrevi aqui [ver meu artigo “O que está em crise quando se diz em crise a poesia”, DW Brasil, 11.03.15]. Como qualquer evento, se bem organizado e com convidados interessantes, o sucesso será o mesmo do de um festival de música ou uma exposição de artes visuais.

Como autor, estes encontros têm sido muito importantes para mim, desde que fiz minha primeira leitura pública em São Paulo, na Casa das Rosas, em fevereiro de 2006. Pois, ao ler em público, em contato direto com seus leitores/ouvintes, recebendo a reação imediata a seus textos, um autor começa a entender a importância do contexto para um trabalho literário. Além disso, quais textos funcionam quando lidos em voz alta? Há textos que só funcionam na página? Há textos que exigem a atenção dos olhos, a oportunidade de reler? A atenção e reação do ouvinte é diferente da do leitor?

Passei a compreender, de forma prática, certas características da poesia relacionadas ao som, em especial ligadas à repetição (rima, assonância, aliteração, anáfora), nestes eventos. Além disso, o contato com escritores de outros países, para alguém como eu, que também escreve crítica, é importantíssimo. Minhas conversas com o prosador e poeta ganês Nii Ayikwei Parkes e com a botsuanesa TJ Dema foram não apenas importantes para conhecer o que se passa em termos literários como políticos em dois países da África sobre os quais sei tão pouco. E ver um octogenário como o austríaco Gerhard Rühm, do Grupo de Viena, foi mais que didático.

Este mês ocorre em Berlim um dos maiores festivais literários da Europa, o PoesieFestival. Participo nele de uma conferência chamada “O futuro da poesia”, ao lado de autores como a sueca Cia Rinne e a norte-americana LaTasha N. Nevada Diggs, e no dia 22 de junho ocorre um evento para o qual fui responsável pela curadoria, investigando formas alternativas de “publicação” de textos, no sentido de tornar públicos, dá-los ao público: seja pela gravação da voz, por vídeos, através da antiga tradição de cantar seus poemas, ou por novas plataformas como o Twitter. Convidei o sueco Karl Holmqvist, que se move no mundo da artes visuais preparando vídeos com seus poemas ou escrevendo-os nas paredes brancas de galerias de arte; a norueguesa Hanne Lippard, que colabora com músicos e também trabalha com vídeo e performance; o britânico Crispin Best, uma das estrelas da poesia na internet, soltando seus poemas pelo Twitter e em leituras públicas; a portuguesa Matilde Campilho, que primeiro ficou conhecida através de seus vídeos no YouTube; e encerramos a noite com uma performance da britânica/alemã Annika Henderson, mais conhecida como Anika, cantando.

oswald

Dona Olívia Guedes Penteado, Blaise Cendrars, Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade Filho (Nonê) e Oswald de Andrade na fazenda Santo Antônio, Araras, São Paulo, 1924

Em setembro, retorno ao Brasil para performances no festival Artes Vertentes, para o qual tenho também colaborado na curadoria ao lado de Luiz Gustavo Carvalho, um encontro em Tiradentes que já anunciou a vinda ao Brasil do premiado autor lituano Tomas Venclova, ao lado de uma das revelações da poesia brasileira jovem, o paulistano William Zeytounlian.

Estes encontros internacionais podem ser decisivos para a literatura de um país, para uma abertura de sua escrita a outras tradições e práticas. Sabemos da importância, hoje, que a vinda do suíço Blaise Cendrars teve para o modernismo brasileiro, e como os diálogos dos poetas concretos Haroldo de Campos e Décio Pignatari com intelectuais e poetas estrangeiros como Eugen Gomringer, Max Bense e Roman Jakobson foram frutíferos. Que frutos contemporâneos nasçam destes novos encontros nos dias de hoje.

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quarta-feira 03.06.2015 | 08:08

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Do Vai-Quem-Quer à Quarta-feira de Cinzas

Ainda me lembro da primeira vez em que vi os meninos da rua passando em frente da minha casa, vestidos de mulher. O que era aquilo? Minha mãe disse: é o vai-quem-quer. Naquela minha infância na década de 80, era como começava o Carnaval na sexta-feira. Os homens (só os homens) vestiam-se de mulher e caíam na gandaia. Vocês usam a palavra “gandaia”? Não sei se era uma tradição local, que apenas acontece em Bebedouro. Ainda existe? Acabei de encontrar no jornal da cidade, a internacionalmente conhecida Gazeta de Bebedouro, um artigo sobre o bloco: “‘Vai quem quer’ comemora 38 anos” [Gazeta de Bebedouro, 12/02/15]. Ou seja, existe desde 1977! O ano em que eu nasci! Isso explica muita coisa. Estranho como pesquisas na adultez destróem mitos da infância. Eu sempre acreditei que fosse uma tradição popular brasileira. Se ocorria em Bebedouro, ocorria no mundo! Bebedouro era o mundo. Perdoem, sou poeta municipal. Então nada mais era que um bloco de carnaval local.

carnaval rioMas Bebedouro tinha outra tradição carnavalesca: o desfile dos “carros críticos”, caminhões sobre os quais eram reencenados, de forma satírica, acontecimentos políticos ou policiais da cidade. Ainda me lembro de um, deve ter sido por volta de 1983, em que um grupo de jovens satirizou os roubos que vinham acontecendo no cemitério local, onde ladrões andavam abrindo túmulos para roubar dentes de ouro dos falecidos de antanho. A vida era tão pitoresca. Ai, que saudades da Viúva Porcina.

Como era fascinante imaginar o que acontecia na tal Terça-feira Gorda. Eu imaginava orgias, bebedeiras em plena Bebedouro, bacantes regando o planeta com vinho tinto Sangue de Boi. Só podia imaginar, porque minha mãe não permitia que fôssemos. Coisa do demo. Desculpem, não do demo, mas do Inimigo. Não se diz o nome do dito-cujo lá em casa. É apenas “o Inimigo” ou “aquele que não mencionamos”, feito o Voldemort em Harry Potter. Mas ainda me lembro da primeira vez em que me foi permitido ir. Era no Clube de Campo. Serpentina, confete. Que alegria!

Era como naquele poema maravilhoso de Manuel Bandeira:

Sempre tristíssimas estas cantigas de carnaval
Paixão
Ciúme
Dor daquilo que não se pode dizer

Felizmente existe o álcool na vida
e nos três dias de carnaval éter de lança-perfume
Quem me dera ser como o rapaz desvairado!
O ano passado ele parava diante das mulheres bonitas
e gritava pedindo o esguicho de cloretilo:
– Na boca! Na boca!
Umas davam-lhe as costas com repugnância
outras porém faziam-lhe a vontade.

Ainda existem mulheres bastante puras para fazer vontade aos viciados

Dorinha meu amor…
Se ela fosse bastante pura eu iria agora gritar-lhe como o outro: – Na boca! Na boca!

É, Bandeirão poetinha-poetão, felizmente existe o álcool na vida. Que vontade de gritar “na boca, na boca!” E quem disse que nunca gritei isso aqui em Berlim, em determinadas circunstâncias? Mas hoje é Quarta-feira de Cinzas. É o primeiro dia da Quaresma. Teria novena entre as senhoras da rua, hoje. Ainda tem? Ainda estão vivas as senhoras que rezavam o terço? Ai, a ladainha. Até da ladainha dá saudades de vez em quando. Beata era elogio naquela época.

Beato era também Eliot, com quem encerro esse texto, os últimos versos de seu longo poema chamado “Ash Wednesday” (Quarta-feira de Cinzas), e passo a fazer meu jejum de poeta pobre. Poeta vive em eterna quaresma.

And pray to God to have mercy upon us

And pray that I may forget

These matters that with myself I too much discuss

Too much explain

Because I do not hope to turn again

Let these words answer

For what is done, not to be done again

May the judgement not be too heavy upon us

 

Because these wings are no longer wings to fly

But merely vans to beat the air

The air which is now thoroughly small and dry

Smaller and dryer than the will

 

Teach us to care and not to care

Teach us to sit still.

Pray for us sinners now and at the hour of our death

Pray for us now and at the hour of our death.”

 

— T.S. Eliot, Ash Wednesday.

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quarta-feira 18.02.2015 | 13:18

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