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Começo e continuação do ano

Há alguns anos, num “reveião” passado, um amigo me disse: “Ora, é apenas outro dia.” Eu me lembro de dizer a ele que não subestimasse comportamentos ritualísticos. A passagem de ano nos dá a todos a sensação de recomeço, de novas chances. Faz-se a resolução de mudança na própria vida e tenta-se chegar à mudança com um tiquinho mais de afinco. Mesmo que apenas sensação de recomeço, é provável que ela seja mais essencial do que imaginamos para sobrevivermos aos golpes de sempre. Não subestimo a coisa, ainda que este ano tenha sido particularmente difícil entrar no clima de renovação. Ontem, quando me perguntaram como ia meu ano novo, respondi que não tinha ainda a sensação de ano novo. Parecia apenas um ano longo. Todo pela frente.

O ano passado foi particularmente difícil. Mas a verdade é que muito do que aconteceu no ano passado será sentido de verdade apenas neste. Segurem-se nas cadeiras. Não preciso mencionar os acontecimentos políticos de 2016 aos quais me refiro, no Brasil, nos Estados Unidos, na Europa, que parecem dividir-nos a todos em dois grupos distintos. É possível que esta polarização apenas cresça este ano. Em seu poema “Lamento do historiador”, o alemão Heiner Müller descreve como o historiador romano Tácito reclama dos tempos de paz em um de seus livros, que não lhe davam material para escrever grandes sagas imperiais, e desculpava-se junto a seus leitores. O alemão encerra seu poema: “Eu, por minha vez, dois mil anos depois dele, / Não preciso desculpar-me e não posso / Queixar-me da falta de bom material.”

Enquanto celebrávamos dos dois lados do Atlântico, um ataque terrorista acontecia em Istambul, e uma chacina horrenda ocorria em Campinas. Há qualquer ligação entre as duas? Como poderia? Istambul, Campinas. Talvez nossas violências sexuais, religiosas e raciais tenham matriz comum? Este é um ano de aniversários auspiciosos. Centenário da Revolução Russa. Neste clima de polarização, tenho medo de como isso será discutido. A julgar pelas reações em torno da morte de Fidel Castro, temo que muito será dito por pura pirraça intelectual, cada lado querendo ofender o outro um pouco mais. É o ano ainda de do aniversário de 10 anos da morte de uma poeta ainda desconhecida do público, que comanda porém minha imaginação com o pouco mais de uma dezena de poemas que conhecemos: Hilda Machado (1952-2007). Espero conseguir editar seu trabalho este ano. São dela estes versos que vêm a calhar num começo de janeiro:

“feliz ano novo
bem-vindo outro
como é que abre esse champanhe
como se ri”

Infelizmente, o ano mal começou e já nos brindou também com a morte de um intelectual admirável: o romancista, poeta e crítico de arte John Berger (1926-2017). Seu famoso programa “Ways of Seeing” para a BBC é mais do que recomendável a quem não o conhece, e pode ser visto na íntegra na Rede. Aos 90 anos, porém, ele já tinha nos dado provavelmente mais do que merecíamos. Vínhamos pedindo que 2016 acabasse logo como se fosse alta temporada de morte. Mas quando acaba a temporada de morte e de nascimento? É que os nascimentos só são descobertos muito mais tarde. A morte não precisa de ajuda publicitária. Por isso, encerro com este pequeno poema de John Berger que traduzi hoje de manhã, mas o dedico aos poetas que estão nascendo nestes dias ao redor do mundo.

“Outubro”

Talvez Deus seja como os contadores de histórias

que amam os frágeis mais

do que os fortes

os vitoriosos menos

do que os abatidos.

De qualquer forma

num outubro fraco e tardio

a floresta queima

com a luz do sol

do verão inteiro que se foi.

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terça-feira 03.01.2017 | 14:33

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Oswald de Andrade traduzido: o antropófago que morde em alemão

“A massa ainda comerá o biscoito fino que fabrico”, dizia Oswald de Andrade nos últimos anos de sua vida, naquele conturbado início da década de 1950. Getúlio Vargas equilibrava-se na eterna corda bamba da política nacional, sobre um abismo do qual o separava a linha tesa de sua eleição em 1951. Já sabemos que ele não chegaria ao outro lado. Era sua chegada democrática ao poder após o primeiro governo de 15 anos que lançara na cadeia um homem como Graciliano Ramos e uma mulher como Patrícia Galvão, justamente no momento em que esteve casada com Oswald de Andrade. Esta primeira prisão de Pagu aconteceria no ano em que Oswald publica sua segunda obra de modernização da prosa nacional, Serafim Ponte Grande, em 1931.  Mas naquele pós-guerra, eram outros os tempos. O Movimento Modernista havia triunfado e o país embarcava, no entanto, na reação conservadora do Grupo de 45. A posição de Oswald de Andrade naquele momento talvez fosse análoga à do Tom Zé esquecido das décadas de 80 e 90, quando o Tropicalismo que justamente reabilitaria a obra de Oswald parecia ter também triunfado, e a massa passara a comer o biscoito fino que ele fabricou. Ou, ao menos, na receita que homens como Haroldo de Campos, Caetano Veloso e José Celso Martinez Corrêa haviam preparado. Mas isso é assunto para outra hora. Meu pensamento está aqui em 1954. Getúlio Vargas já se matou há dois meses no Rio de Janeiro. Seu corpo foi já enterrado no jazigo da família em São Borja. É o famoso agosto do livro de Rubem Fonseca. Em outubro, o antropófago Oswald de Andrade morre esquecido em São Paulo.

Mas há outra proposta e desafio do autor do Manifesto da Poesia Pau-brasil e do Manifesto Antropófago que nos interessam aqui, esta: “A nunca exportação de poesia. A poesia anda oculta nos cipós maliciosos da sabedoria. Nas lianas das saudades universitárias” – pois foi lançado há pouco na Alemanha e na Áustria pela editora Turia + Kant a tradução para estes dois influentes manifestos num único volume, Oswald de Andrade: Manifeste, que traz ainda dois estudos clássicos de Benedito Nunes e Haroldo de Campos, assim como um minucioso novo ensaio do próprio tradutor, Oliver Precht. O volume sai na coleção “Neue Subjektile”, que publicou textos de Philippe Lacoue-Labarthe, Paul Virilio e Jean-Luc Nancy, e promete para breve o lançamento também de Crise da Filosofia Messiânica, de Oswald pelo mesmo tradutor. Companhia de biscoitos finos internacionais para o brasileiro, aqui finalmente em exportação entre as raras traduções de seu trabalho.

São consideráveis os desafios de uma tradução como esta. Como verter as proposições poéticas de Oswald de Andrade, tão fincadas no contexto brasileiro, para leitores de língua alemã, de um contexto histórico e poético tão diferente do nosso? Oliver Precht chegou a excelentes soluções e também preparou notas consistentes para elucidar ao leitor estrangeiro as passagens imediatamente claras a nós, mas obscuras a quem nasceu longe do nosso inferno paradisíaco particular. São importantes ainda os ensaios de Benedito Nunes e Haroldo de Campos nesse sentido, pontuando a importância de Oswald tanto nacional quanto internacionalmente no campo das vanguardas históricas. Completa esse serviço o longo ensaio de Oliver Precht, Aprender a dar-se de comida aos outros, no qual discute as ideias do brasileiro em relação a autores como Montaigne e Lévi-Strauss. Também tradutor para o alemão do volume de ensaios de Eduardo Viveiros de Castro, A inconstância da alma selvagem (lançado pela Turia + Kant como Die Unbeständigkeit der wilden Seele), Oliver Precht está preparado para esta discussão, e demonstra nessas traduções um interesse pelas culturas dos Brasis que o coloca numa posição bastante particular na lista de excelentes tradutores trabalhando hoje com autores brasileiros.

Pessoalmente, como um brasileiro que vive na Alemanha, foi muito forte retornar a Oswald de Andrade por meio de Oliver Precht neste ano. Gerou em mim perguntas ligadas ao Brasil e outras à Alemanha. O ano de 2016 causou estragos de ciclone. Em toda minha vida não presenciei como cidadão outro ano como este. Comparações entre 2016 e 1964 foram frequentes. A publicação do livro de José Luiz Passos, O marechal de costas (baseado na vida de Floriano Peixoto), levou a uma conversa sobre paralelos entre nossos tempos de Michel Temer e os daquele outro vice. Venho pensando em outro paralelo, que tem aparecido menos na conversa, mas o faço aqui sem analogias simplistas, tentando apenas entender onde começam nossas agruras que não acabam: entre 2016 e aquele 1954 do início deste texto, quando morrem duas figuras incontornáveis da modernização do país: Getúlio Vargas e Oswald de Andrade. Como se tecem esses nódulos todos das nossas modernizações de mutirão e elite a cada solavanco desta República que sempre parece capenga?

Quanto às perguntas ligadas à Alemanha, o que pode a Antropofagia do brasileiro fazer em um ambiente de xenofobia e fechamento das fronteiras como vemos hoje irradiando de Berlim, de Leipizig, de Dresden? Como podem ser compreendidas as perguntas de Oswald em relação à cultura autóctone e colonial de uma terra, num ambiente como o alemão, onde “terra” e “povo” são parte do vocabulário de uma direita que teme e odeia o outro, estando bem longe de o respeitar a ponto de querer assimilar ritualmente suas forças? São perguntas para as quais ainda não tenho resposta.

Data

terça-feira 20.12.2016 | 18:34

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Nós, lusófonos mimados

“Vocês já imaginaram a desgraça que é escrever em português? Sometimes, I wonder. Quem é que sabe português nesse planeta, fora Brasil, Angola, Moçambique, Cabo Verde, Macau?” – é de Paulo Leminski essa citação, de seu texto Arte in-útil, arte livre?, no qual também escreveu que “a gente já nasce numa língua periférica, escrever uma coisa em português e ficar calado mundialmente é mais ou menos a mesma coisa”.

Muitos escritores brasileiros recorrem a essa citação de Leminski. Eu mesmo já o fiz. Ao participar de qualquer leitura ao lado de escritores de língua inglesa, francesa ou alemã, vem à mente esta fala do poeta de Curitiba. No mesmo texto, ele reconhece que a marginalidade da língua portuguesa no mundo não é a mesma de línguas como o basco ou o catalão, e que esta periferia está ligada a condições históricas e econômicas. Uma língua tem a força do império que a fala. A primazia da língua inglesa no mundo literário advém da força imperial e imperialista do Reino Unido, primeiro, e dos Estados Unidos a partir da Segunda Guerra. Mas vocês já pararam para pensar nesta marginalidade das línguas basca e catalã, por exemplo, e da posição do português?

Recentemente, estive na Eslovênia para uma leitura, e foi interessante ler ao lado de Stanka Hrastelj, uma poeta eslovena, em seu país de 2 milhões de habitantes. É o número de habitantes de uma cidade de médio porte no Brasil. E a língua eslovena é falada apenas ali, na Eslovênia. Isso é solidão.

Estima-se que 250 milhões de pessoas falem português como língua materna no mundo. São cerca de 280 milhões com os que a falam como segunda língua. O português é a língua mais falada no hemisfério sul da Terra. É a quinta língua mais falada no mundo como um todo e a terceira mais falada no hemisfério ocidental. Como o próprio Leminski lembrou-se, somos também vários países de expressão lusófona. E, no entanto, mal nos lemos uns aos outros. Um poeta como Manuel António Pina, português, ganhador do Prêmio Camões em 2011, mal foi editado no Brasil. Quem conhece a moçambicana Noémia de Sousa?

O prestígio da língua inglesa é perpetuado por nós mesmos. Na semana passada, deparei-me com uma lista dos lançamentos de livros traduzidos previstos para 2017. Era praticamente um festival de autores europeus e americanos. Havia alguns poucos autores do Extremo Oriente, mas não pude identificar muitos autores de fora do âmbito cultural do Noroeste. Era um exemplo singular de eurocentrismo galopante. Basta que o New York Times noticie o espirro de um escritor em Nova York para que o espirro seja traduzido no Brasil, com tanta gente espirrando igualzinho entre o Oiapoque e o Chuí, ou na Baixa em Lisboa, ou no bairro de Ingombota em Luanda. Nós próprios nos isolamos dessa forma. É claro que o desejo de inserção no mundo literário global é legítimo. Mas a verdade é que não se quer realmente ser lido no mundo: quer-se ser lido em Manhattan. Nem Camden satisfaria. Sim, é uma alegria verdadeira ver a paixão recente dos norte-americanos por Clarice Lispector, por exemplo. Que alguns melhor informados estejam lendo Hilda Hilst por lá. Que Lúcio Cardoso tenha acabado de ser traduzido.

Mas aqui torna-se necessário pensar também no caráter imperialista da língua portuguesa, expressão de uma força colonial repressora. Afinal, assim como o inglês e o árabe, a língua portuguesa foi responsável pela morte de centenas de línguas, e mesmo as que resistem em nosso território continuam a morrer ignoradas.

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sexta-feira 02.12.2016 | 17:55

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Bandeira possível para o Matriarcado de Pindorama

Bandeira possível para o Matriarcado de Pindorama, desenhada por Philippe Leon

Bandeira possível para o Matriarcado de Pindorama, desenhada por Philippe Leon

Acontece às vezes de pessoas me perguntarem aqui no exterior se “Brasil” significa alguma coisa. O porquê desse nome. É mais difícil de explicar do que parece, pois mesmo a tradução para a árvore que deu origem ao nome do país apenas adota a palavra tal como é em português: pau-brasil em inglês é brazilwood, em alemão é Brasilholz. São traduções com adaptações de pau-brasil, traduzindo “pau” como “madeira”, mas sem traduzir a palavra “brasil”. Como então traduzir “brasil”? Pela lógica do português, brasil seria um adjetivo, derivado de brasa. O dicionário de Aurélio Buarque de Holanda dá várias definições para “brasa”: 1. Carvão ou lenha incandescente, mas sem chama; 2. Estado de incandescência; 3. Estado de afogueamento ou rubor vivo; 4. Mulher interessante, formosa; 5. Carvão e cinza que ficam no forno depois de apagado. Brasil é a qualidade da brasa. Da cor da brasa. Da natureza da brasa. É assim que tento explicar o nome a estrangeiros, passando pela madeira, sua importância para os invasores portugueses, a forma como se tornou sinônimo do país. A árvore tinha outros nomes nas variadas línguas autóctones do território: ibirapitanga e orabutã, por exemplo. O pigmento vermelho que se obtém da árvore é conhecido como brasilina. O nome científico da árvore costumava ser Caesalpinia echinata e passou a ser Paubrasilia echinata. No latim medieval, lignum brasilium.

Há alguns meses, o poeta e compositor carioca Mariano Marovatto publicou um texto intitulado “Genealogia do horror ao vermelho”, no ápice do ódio a esta cor e em meio à sanha antipetista – que levava pessoas até mesmo a atacarem outras na rua se estivessem de vermelho. Nele, Marovatto discute a história do nome e da cor vermelha em bandeiras, cor que jamais esteve na bandeira do Brasil. A partir do texto dele, comecei a me perguntar que outra bandeira possível seria esta, não mais ligada às cores dos invasores portugueses (o verde é a cor dos Bragança, o amarelo, dos Habsburgo). Voltei este mês aos textos de Oswald de Andrade, por ocasião do lançamento aqui na Alemanha das traduções de Oliver Precht para os dois manifestos do autor paulista. Escreverei sobre isso em breve. Se chamei este texto de “Bandeira possível para o Matriarcado de Pindorama”, foi em homenagem a Oswald e sua utopia. Aos nacionalistas, espero que isso acalme qualquer possibilidade de ofensa a seu brio verde-amarelo. Não propomos aqui uma bandeira vermelha comunista para o Brasil, como aquela senhora ensandecida pensou ser o caso da bandeira do Japão no Congresso há poucas semanas. Se há um desejo de comunhão, meu e de Marovatto, será antes a espécie de protocomunismo dos povos indígenas do território. Mas eu, pessoalmente, penso menos nesta bandeira para Pindorama, nome da terra mítica dos povos tupis, do que numa bandeira para um país verdadeiro, não o eterno país do futuro, mas um que talvez pudesse se chamar Ibirapitanga, talvez Orabutã, ou seja, Pau-Brasil, Brasil.

Abaixo, o texto de Mariano Marovatto, a bandeira que idealizamos e Philippe Leon desenhou, e um conto inédito meu, “Mulher de vermelho”, inspirado no atual red scare nacional. As cores da bandeira não querem representar conceitos ou raças. O branco poderia ser transparente, e assim veríamos apenas um pau-brasil brasil tremulando ao vento.

“Genealogia do horror ao vermelho”

Mariano Marovatto

Desde o século X o ocidente tinha registros da madeira nobre para fabricação de grandes objetos da qual se extraía também uma resina vermelha excelente para tingimento de tecidos. ‘Brecillis’, ‘brezil’, ‘brasil’, ‘bersil’ era o nome dado a essa madeira, derivados de seu original latino ‘brasilia’, em bom português, ‘cor de brasa’. Do litoral brasileiro, já nas primeiras décadas do século XVI, foram extraídas cerca de 70 milhões de árvores de pau-brasil. Grupos indígenas inteiros, designados para o corte das árvores, foram mortos ao longo desse período. Pela enorme quantidade de pau-brasil, aos poucos, a Terra de Santa Cruz começou a ser conhecida como Brasil. Os primeiros cronistas, cristãos e bajuladores da coroa, temiam pela troca do nome da terra descoberta. Gândavo pedia a restituição do primeiro nome, afirmando que só podia ter sido obra do demônio trocar o nome santo – a cruz feita de madeira que viu o sangue de Cristo escorrer – pelo nome de uma árvore demoníaca que sangrava também vermelho. João de Barros escreveu que ‘o nome de um pau que tinge panos’ não poderia ser mais importante que ‘daquele pau que deu tintura a todos os sacramentos por que fomos salvos, pelo sangue de cristo que nele foi derramado’. Na Europa a bandeira vermelha era hasteada, desde o século XV, nos castelos em guerra, opondo-se à bandeira branca de rendição: significava que ainda estavam em luta. A bandeira vermelha hasteada nos navios significava que uma vez capturados, nenhum homem seria poupado a bordo. Muitas bandeiras britânicas, espanholas, holandesas e a portuguesa, ao longo dos séculos seguintes, certamente tiveram o seu vermelho tingido de pau-brasil saído do litoral brasileiro, bem como o vermelho de todas as bandeiras de resistência. A bandeira brasileira – surgida muito tempo depois – que possui as cores da família de Bragança de Dom Pedro de Alcântara, verde, e da família Habsburgo, amarela, de Dona Leopoldina, jamais adotou o pigmento que deu origem ao nome e a invenção do país. Aboliu a cor da resistência em prol das mais reluzentes cores aristocráticas. Porém, herdou, canhestramente, o seu nome.

“Mulher de vermelho”

Ricardo Domeneck

(dedicado a André Capilé)

Era o Rio de Janeiro, capital nacional dos machos engraçadinhos. A mulher caminhava pela rua da Glória, chegando à do Catete, vestida de vermelho. Grávida, mas sem saber. Quando sentiu o vestido ser puxado com força por trás, só podia ser mão de estranho, entesou para a guerra. Quando virou, deu de cara com o homem, bufando. Era agosto de 2016. “Petista filha-da-puta!”, berrou o bofe, camisa entreaberta, cruz à vista. “Jesus é maior!” A senhora laqueada que passava saracoteia, aprova, acrescenta: “Acabou a mamata, cambada de ladrão!” O sangue vermelho debaixo do rosto, a mulher, pele negra como Nossa Senhora de Aparecida, o vestido feito o cair do sol na Baía de Guanabara, começou a responder “Tô de vermelho…”, mas não seguiu com o “… porque sô filha de Iansã”, com medo do que isso faria com os bufos do homem pardo de cruz e os saracoteios da senhora branca de laquê.

“Puta!”, gritou a senhora do laquê. “Vaca!”, gritou o homem da cruz. Dentro dela, sentiu mover-se uma búfala, já se preparava o leite no seu corpo, mas se conteve, segurou firme seus chifres. “Eparrei!”, solta, sem cabresto. O homem diz “Tá amarrado!”. A senhora se persigna. O Cristo mantém os braços abertos no Corcovado, a luz pública já começava a o deixar mais branco. Em Aparecida, Nossa Senhora seguia com as mãos unidas em prece. Santa virgem com filho morto. Seiva de pau-brasil escorria em um canto do estado. Fogo desmatava outra área. A mulher de vermelho seguiu a rua do Catete, a caminho do trabalho no sertão da rua do Ouvidor. Passa rápida pelo palácio que abriga o pijama do pai dos pobres, salpicado também de vermelho. A bandeira ondulava nas cores de Bragança e Habsburgo, o brasão das armas do Império contava estrelas para dormir. Na África, àquele momento baliam carneiros.

Data

segunda-feira 28.11.2016 | 11:03

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Dylan, ainda

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Sei que para o mundo do jornalismo cultural como é praticado hoje, o gancho passou, o assunto é velho. Mas permitam-me usá-lo para discutir uma questão que não passou. Afinal, diz-se que Bob Dylan sequer aceitou o prêmio de forma oficial ainda, com exceção de uma postagem em sua página, mais tarde retirada. Eu próprio saudei o prêmio a ele na página de cultura da DW Brasil [“Um prêmio a um trovador moderno”], mas dissenso continua sendo uma coisa positiva no mundo. Minha defesa da decisão, em primeiro lugar, não havia sido uma defesa de Bob Dylan – que não precisa dela. Mas da tradição oral, do reconhecimento desta como origem da poesia. Como ironizou o poeta sonoro austríaco Jörg Piringer nas redes sociais, “um prêmio a um poeta com gravações, bem-vindos ao século 20!”. A ironia de ver o autor de “Masters of War” ganhar um prêmio com dinheiro feito com dinamite não me escapou. Mas, afinal de contas, esta ironia ocorre todos os anos quando o prêmio que deve servir de maquiagem para o legado de Alfred Nobel é anunciado, o Nobel da Paz, com exceção do ano, é claro, em que Barack Obama o recebeu enquanto fazia guerra em alguns países.

Portanto, há sim uma certa alegria pelo prêmio a Dylan, da minha parte. Mas não por ele, que não precisa deste prêmio. Continuo acreditando: a poesia ainda é a arte mais popular do planeta, sempre foi e será, mas trata-se aqui da poesia cantada e falada, porque a população do mundo jamais abandonou a tradição oral, apesar das narrativas históricas de velhos acadêmicos. A despeito deles, vai muito bem a tradição oral, ainda que em tantos casos esta separação marcada demais entre poesia-para-a-voz e poesia-para-a-página tenha tornado preguiçosos os poetas cantores ao escrever seus textos, e tediosos demais os poetas escritores ao compor os seus. Dylan não precisa deste prêmio porque seu legado está seguro, seus poemas cantados ainda são… cantados. E é aqui que se torna imperativo perguntar: a Academia Sueca por acaso sabe que o mundo é mais que seu Noroeste, também tem um Nordeste, um Sudoeste e um Sudeste? Outro homem branco do Noroeste recebe o prêmio, compondo na língua do Império, a inglesa? Portanto, me alegro com muitas ressalvas. Sim, eu sei que é apenas um prêmio. Mas tais coisas têm muito poder, poder que poderia ser usado para salvar obras importantes que estamos perdendo.

Vamos esquecer das nações, por um segundo. A ideia de literatura nacional é outra velharia que não me interessa muito. O que me importa é língua. Quantas línguas receberam o prêmio?

Inglês: 27
Francês: 16
Alemão: 13
Espanhol: 11
Sueco: 7
Italiano: 6
Russo: 6
Polonês: 4
Dinamarquês: 3
Norueguês: 3
Chinês: 2
Grego: 2
Japonês: 2
Árabe: 1
Bengalês: 1
Tcheco: 1
Finlandês: 1
Hebraico: 1
Húngaro: 1
Islandês: 1
Provençal: 1
Português: 1
Servo-Croata: 1
Turco: 1
Iídiche: 1

Como se pode ver, as línguas que serviram de arma ao colonialismo europeu estão muito bem cuidadas. A Academia Sueca voltou os olhos para a África quatro vezes e para a África subsaariana, três: em duas delas, premiou escritores brancos da África do Sul, Nadine Gordimer e J. M. Coetzee. Com todo o respeito a Coetzee, mas quem pode argumentar que se tratava de uma escolha incontornável? O único autor negro do continente a receber o prêmio foi Wole Soyinka. E o egípcio Naguib Mahfouz é o único identificável com o mundo árabe. O prêmio a Dylan, outro americano, significou portanto esnobar mais uma vez escritores como o queniano Ngugi wa Thiongʼo, o moçambicano Ungulani Ba Ka Khosa, a ganesa Ama Ata Aidoo e o somálio Nuruddin Farah, sem mencionar os mortos dos últimos anos, como o sudanês At-Tayyib Salih, o nigeriano Chinua Achebe e a argelina Assia Djebar. Ou, se era hora de premiar a poesia cantada e falada, imaginem o efeito positivo, cultural e político, se Sotigui Kouyaté ou Dan Maraya Jos tivessem sido premiados? Ou o jamaicano Linton Kwesi Johnson, vivo?

Assim, apesar de ter saudado e ainda saudar de alguma forma o prêmio a Dylan, gosto muito de dissenso, e cito aqui outro problema com esta declaração do poeta brasileiro José Rodrigo Rodriguez: “A transgressão das fronteiras entre arte ‘popular’ e arte ‘erudita’ tinha bem mais sentido na época em que o ‘erudito’ não havia se tornado um campo de resistência, atacado por todos os lados pela pressão de dar lucro, pela demanda de ser compreensível e pela exigência de ter ‘relevância social’; lógica falsamente popularizante, embutida em quase todos os programas de incentivo cultural governamentais. Hoje, gestos assim correm o risco de soarem passadistas, repetitivos e de reforçarem a lógica do vencedor.”

Há então em mim uma tristeza e uma alegria inconciliáveis com este Nobel a Bob Dylan. Estamos perdendo línguas e todos os poemas, canções e épicos contidos nelas a um passo assustador. Imaginem quanto Gilgamesh, quanta Odisséia e quanto Popol Vuh perdemos para sempre! Portanto, viva a tradição oral! Este é o mundo do bardo Taliesin, do século 6; é o mundo de trovadores como Arnaut Daniel e sua letra-de-música, aquela maravilhosa sextina; de Minnesängern como Walther von der Vogelweide; mas também de griots como Dembo Kinté e de um poeta épico do século 20 como  Avdo Međedović, que levou tanta poesia consigo para o túmulo. Este é o mundo da miríade de poéticas orais dos povos ameríndios, e daquela tradição viva ainda que anônima do “landay”, das mulheres afegãs. Como seria bom se a Academia Sueca usasse o poder que tem para chamar nossa atenção para estas grandes tradições, algumas delas distantes do Noroeste do mundo.

Data

segunda-feira 24.10.2016 | 11:47

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