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Os rostos do poeta Ricardo Aleixo

Reunindo textos escritos entre 2010 e 2015, Impossível como nunca ter tido um rosto é a publicação mais recente do belorizontino Ricardo Aleixo, um dos mais importantes artistas da palavra na República. Eu tento não usar esses superlativos, mas com Aleixo sinto-me mais do que justificado. Pois, se o objetivo deste texto é comentar seu último livro, é impossível (como nunca ter tido um rosto) não pensar em todas as suas atividades neste período que a obra abarca.

Poeta, músico, performer, compositor, produtor cultural, artista plástico, editor, agitador – eu poderia ter resumido tudo com a primeira das palavras: poeta. Mas ainda vivemos dias em que isso não seria compreendido em sua acepção completa, esta que Ricardo Aleixo vem incorporando e encorpando desde os anos 1990. Sua presença tem sido sempre esta, a de pluralizar o ofício único, unificar o ofício plural. Meu xará, prefiro sempre me referir a ele como Mestre Aleixo.

Ler esses textos de meia década reunidos é deparar-se com sua voz e seu gesto, agora no papel. Mas quem quer que o tenha visto em ação não consegue deixar de ouvir sua entonação saltando da página, as quebras de linha surgindo como pausa na garganta. Nossas línguas são, afinal, todas fonográficas. O símbolo visual leva ao som. E Aleixo sabe usar isso para fazer da página palco. Alguns deles são de uma beleza tão direta, tão nua. Mas, dirigidos a quem? Veja, por exemplo, esta pequena cantiga entre a intimidade e o escárnio:

Queridos dias difíceis,
acho que já deu – embora

eu considere prematuro
um definitivo adeus.

Querendo, voltem. Minha
casa é de vocês. Agora,

pensem bem se será mesmo
saudável nos testarmos em

novos convívios tão longos
(também não sou fácil) como

foi desta vez. Menos mal se
vierem em grupos – tantos,

em tais e tais períodos do mês.
Topam correr o risco? Vão resistir

até o fim? Podem vir, eu insisto.
Mas contem primeiro até três.

Aqui, como em certa poesia lírica brasileira, a do minimalismo de cantos e quinas, textos que são objetos pontiagudos, em que a fala controlada é de mansidão enganosa, é um murmúrio com os dentes cerrados, vê-se um lamento, mas lamento sem a autopiedade de certa poesia nossa, de quem se mantém em pé, de pé, não se dobra, e se pode ser lido na clave do canto pessoal, é também um chamamento à resistência. Como nos poemas mínimos de Oswald de Andrade ou de Bertolt Brecht. E sendo um texto de Ricardo Aleixo, vê-se que seu acabamento não é o que ignora as transformações entre registro oral e escrito: o texto é dizível.

Eu comecei a ler o livro nos subterrâneos de Berlim, cruzando a cidade de Leste a Oeste. Sentado entre pessoas que não entendem a língua de Aleixo, a minha, a sua, era uma sensação estranha perceber a voz do poeta controlando minha respiração com o ritmo dos poemas. Dá até febre nos pulmões. E os músculos ficam tesos quando ele nos lança em meio a nossa guerra civil de fricção, há séculos, como neste que é um dos melhores poemas satíricos dos últimos anos (o melhor satírico sempre político), que já postei aqui e o faço mais uma vez com um excerto:

Conheço vocês
pelo cheiro,

pelas roupas,
pelos carros,

pelos anéis e,
é claro,

por seu amor
ao dinheiro.

%

Por seu amor
ao dinheiro

que algum
ancestral remoto

lhes deixou
como herança.

Conheço vocês
pelo cheiro.

Outros textos com esta potência aparecem no livro, como Na noite calunga do bairro Cabula. No bairro de Salvador ocorreu a Chacina do Cabula, em que, durante uma operação da Polícia Militar realizada em 5 de fevereiro de 2015, 12jovens negros foram mortos. Repetindo o escândalo das pseudoinvestigações conduzidas pela polícia e a Justiça, os policiais envolvidos foram “inocentados”, alegando “legítima defesa”. Aleixo escreve: “Morri quantas vezes // na noite calunga? Na noite trevosa, // noite que não finda, / a noite oceano, pleno // vão de sangue, / morri quantas vezes // na noite terrível, / na noite calunga // do bairro Cabula?”

Encerro com uma pequena história: tive o prazer de convidá-lo para minha curadoria de literatura do Festival Artes Vertentes, em Tiradentes, Minas Gerais, em 2014 e 2015. Foi nesta última edição que, apresentando-se na Igreja do Rosário dos Pretos – construída por escravos – pude ouvir seu corpo e ver sua voz invocar o orixá da comunicação, Exú, entre as pedras erguidas no tempo em que o horror existia em meio ao silêncio. Cada sílaba de sua voz parecia destruir e reerguer aquele templo, mas em uma comunidade real, entre poeta e ouvintes. É difícil explicar a força daquilo. Esta é a beleza também da performance: há que se estar presente.

Cansado das mesmices do trato com editoras, sempre em busca da literatura-Omo, Ricardo Aleixo, um dos maiores artistas da República, lançou o livro em edição própria. Que seus concidadãos todos tenham em mãos e garganta, o quanto antes, este álbum de sua presença desperta entre nós.

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quarta-feira 22.02.2017 | 10:46

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O amor e os homens avulsos no segundo romance de Victor Heringer

Algumas diferenças chamaram minha atenção entre o romance de estreia de Victor Heringer, o premiado Glória (Rio de Janeiro: 7Letras, 2012), e seu segundo, O amor dos homens avulsos (São Paulo: Companhia das Letras, 2016), um dos mais discutidos na imprensa no ano passado.

Talvez a mais óbvia seja uma questão entre realidade e ficção geográficas. Se em Glória o autor lançava mão de seu interesse e conhecimento da história de minúcias das ruas do centro do Rio de Janeiro, levando-nos a um espaço urbano conhecido, com o bairro da Glória como epicentro e título do romance, em seu segundo trabalho a ação é transportada para um bairro fictício, o Queím.

Mas há outra diferença que talvez tenha chamado mais minha atenção, ao começar o romance. A transformação na linguagem do autor. Acompanhando seu trabalho desde a estreia, e leitor frequente de suas crônicas para a revista Pessoa em textos que sempre me levam a admirar a elegância de sua prosa, não pude deixar de notar em seu segundo trabalho o que me pareceu um maior despojamento de sua escrita em comparação com trabalhos anteriores. Não apenas no início do romance, quando o autor se debruça sobre as memórias infantis da personagem principal, levando também sua linguagem para o vocabulário desse nosso tempo de vida.

O amor dos homens avulsosGlória é um romance de estreia ambicioso, com uma linguagem trabalhada e que, em vários momentos, usa o rebuscamento com ironia. Com diferentes níveis de leitura, usando a ficção histórica e a metaficção, o romance e seu romance dentro do romance balançavam-se entre o realismo daqueles leões da sátira impiedosa da sociedade carioca entre o Império e a República, com Machado de Assis e Lima Barreto à frente, e certos experimentos dos modernistas.

Não que estas questões tenham desaparecido em O amor dos homens avulsos. Mas parecem internalizadas, subreptícias. Subterrâneas e sutis. O tom direto de sua linguagem distancia-se da crítica irônica, e segue para uma descrição melancólica e bastante próxima de perdas e destruições dos que vivem longe dos holofotes dos centros de poder.

Talvez a ternura que o autor declarou ter guiado a escrita deste livro tenha começado justamente por sua relação com suas personagens, desaguando necessariamente sobre os leitores do romance.

Creio que a trama do livro já tenha sido relatada um par de vezes, mas repasso-a em linhas gerais para aqueles que ainda não a conhecem: a personagem principal, um homem de meia-idade, relembra seu primeiro amor por um menino que seu pai adotara durante sua adolescência, até chegar ao relato do assassinato brutal do garoto, jamais realmente esclarecido, e a maneira perdida com que a personagem passa o resto de sua vida à procura daqueles sentimentos e de um desfecho para a história, que o liberte. O tempo histórico deste romance de meninos é o período da Ditadura Militar (1964–1985), e o papel algo misterioso do pai da personagem principal naqueles anos terríveis de tortura e desaparecimento de corpos.

Muito tem sido discutido sobre a questão da sexualidade das personagens centrais. Eu teria vários motivos para abraçar esta leitura, mas eu creio que ela tem obscurecido a complexa trama de violências que o autor propõe no romance. Pois o que mais surpreende no trabalho, em minha opinião, vai além da incrível delicadeza e sensibilidade com que Victor Heringer tratou da sexualidade homoerótica nascente entre dois adolescentes e, mais tarde, a orientação mais claramente homossexual do narrador. Não é simplesmente um romance sobre a homofobia patente da sociedade brasileira de então e de hoje.

Parece-me que o autor carioca insinua ou propõe, na verdade, uma teia inextricável de violências em que os aspectos sexuais, raciais, religiosos e de classe social não podem ser facilmente desenovelados. Da relação entre a família rica branca e as pessoas negras que trabalham na casa; entre meninos ricos e pobres, brancos e negros, heterossexuais e homossexuais; e ainda entre o cristianismo e as religiões de matriz africana, o narrador, e seu autor, parecem estar em busca dos nódulos, dos nós dessa teia de subjugações e destruições. É sintomático, por exemplo, que uma das cenas mais delicadas de despertar sexual entre os garotos do bairro fictício se dê no antigo terreno de uma senzala, logo seguida por um ato de violência entre humanos e um animal. E é no mato alto da ex-senzala que o corpo do menino, o amor do narrador, seria encontrado, violentado e esfaqueado dezenas de vezes.

A escolha do período é importante, creio. Pois quando poderíamos ter imaginado o país avançando na cicatrização de tantas feridas de violência, o país foi lançado em outra ditadura sangrenta, na qual o estupro, a destruição de corpos, e o abismo social entre brancos, negros e índios, ricos e pobres, monoteístas e politeístas, homens e mulheres, foi novamente escavado e ampliado para a manutenção dos privilégios de uma elite que não se cansa de violentar, matar e fazer desaparecer.

A busca do narrador por seu passado, pela tentativa de resolução daquele crime – que foi sexual, racial e de classe – talvez espelhe a invocação por uma busca nossa, por nosso próprio passado sangrento. Não se contrói sociedade justa sobre o apagamento de nossas feridas históricas. Não se apaga o sangue que embebeu a terra. A violência retorna, como numa fantasia sinistra que envolve o narrador e o filho do assassino. O alerta bíblico de que a iniquidade dos pais é visitada nos filhos é insinuada aqui como inevitável consequência histórica, que não se repete como tragédia e mais tarde como farsa, mas como tragédias continuadas e subsequentes cada vez maiores.

Precisamos entender os nós dessa trama de violências. Não apenas para desenovelá-los, mas talvez para ver neles a possibilidade também de união, em nossa inocência e nossa culpa, e por fim na compreensão mútua de opressões interligadas, que possa nos levar a novas alianças políticas entre os diversos grupos que lutam hoje por igualdade no país. Tavez deixemos então de ser homens avulsos e possamos nos tornar finalmente concidadãos.

Data

segunda-feira 30.01.2017 | 12:32

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Dezesseis histórias de um brasileiro

flyer-1_complet-16stmokokokNesta segunda-feira, fui a uma região de Berlim que frequento pouco, logo à saída da estação de metrô do Märkisches Museum. Todas as vezes que fui à Wallstrasse, tinha um objetivo específico: visitar a Embaixada do Brasil que fica ali, naquela rua, para resolver alguma questão burocrática. Logo diante do metrô, está também a Embaixada do Congo, e mais à frente as embaixadas de Angola e da Austrália. Mas, naquela noite, entrei pelo estacionamento de uma escola no número 32 até chegar a um pátio interno onde fica a TheaterHaus Mitte. Havia sido convidado pelo ator e encenador brasileiro Leonel Henckes a assistir ao seu espetáculo 16 Stories Towards Me, com direção de Christina Kyriazidi.

Apenas 16 pessoas podiam assistir a cada apresentação e, ao chegar à sala do espetáculo, com 16 cadeiras dispostas pelo palco e destinadas à plateia, algo do conceito começou a delinear-se, antes mesmo que Henckes entrasse em cena. A apresentação era conduzida em português, com legendas em inglês numa tela. Como eu era o único brasileiro presente, o ator pediu que eu me sentasse na cadeira que ficava de costas para a tela.

A partir dali, Henckes tomava sua própria cadeira, posicionava-se à frente de uma das pessoas na plateia, e começava a narrar, para aquela pessoa, uma de suas dezesseis histórias. Todas eram histórias pessoais, retiradas de sua própria vida. Uma conversa com o avô; o momento com a mãe, quando ele estava prestes a deixar o Rio Grande do Sul a caminho da Bahia, onde estudaria; o começo, meio e fim de um relacionamento, que ele chamou de seu primeiro amor; a relação com o pai, com o irmão, um encontro desagradável (como costuma ser) com a polícia brasileira. Histórias corriqueiras na sua forma, mas individuais em seu conteúdo. Conversas, brigas, revelações e declarações que ocorrem em vários lares brasileiros, mas com suas pequenas variações decorrentes de nossas embrenhadas tramas e tramoias religiosas, raciais, sexuais. Com um mínimo de recursos cenográficos, Henckes apresentava sua experimentação: em recursos narrativos, em dispositivos de comunicação e contato afetivo.

Em uma das vinhetas narrativas, o espectador que ouvia a história sobre o primeiro amor do ator, e o subsequente fim deste, estava claramente emocionado, disfarçava os olhos mareados. Era uma maneira muito mais sutil de trazer o espectador para dentro da cena, sem o arrastar gritando para o palco. A plateia já estava no palco, e a peça era o que narrava Henckes, mas principalmente o que ocorria entre o ator e a plateia.

É um espetáculo simples e bonito, que me fez pensar muito no início da própria linguagem e de como surgiram todas essas sofisticadas formas e gêneros artísticos sobre os quais temos tantas teorias hoje. Não terá sido primeiro assim, um grupo de pessoas à noite, recontando histórias da tribo e dos antepassados, que nossas primeiras formas de poesia, teatro e narrativa surgiram? Não terão sido nas primeiras reuniões dessa forma, ao redor de uma fogueira ou dentro de uma caverna, há milhares de anos, que nossas primeiras palavras começaram a ser inventadas, para poder seguir com a narração? Neste aspecto, as histórias de Henckes passam a não ser mais suas, para se tornarem as histórias das pessoas ali também, que não podem deixar de pensar no momento em que elas próprias largaram a mãe chorando em casa e partiram, numa conversa com os próprios avós, em suas próprias noções de casa, comunidade, país.

Se você estiver em Berlim, Henckes apresenta o trabalho mais duas vezes na cidade, nestes 11 e 12 de janeiro, n’A Livraria (Torstrasse 159), às 19h. Mais informações abaixo:

16 Stories Towards Me

Sinopse: 16 cadeiras, 16 espectadores, 16 histórias. Um homem encara os seus olhos. 16 histórias entre vocês. As histórias que fizeram ele o que ele é hoje. Anedotas infantis, segredos de família, o primeiro amor, passado diaspórico e viagens do futuro. Memórias esporádicas, verdade ou ficção, persistem entre a necessidade de revelar e a vontade de esconder. Quantas das minhas histórias você precisa conhecer para chegar a me conhecer?

Ficha Técnica
Direção: Christina Kyriazidi
Atuação: Leonel Henckes
Dramaturgia: Christina Kyriazidi e Leonel Henckes
Música ao vivo: Ismael Martínez Ferrer
Assistente e consultora: Julia Lehmann

Serviço:
11 e 12/01/2017 – 19h
A Livraria Berlin (Torstrasse, 159)
Ingressos: € 7
A performance comporta apenas 16 espectadores.

Mais informações: www.16storiestowardsme.com

Reserve seu lugar antecipadamente pelo e-mail: leonelhenckes@hotmail.com

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quarta-feira 11.01.2017 | 12:41

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“Muito Romântico”, uma década de Berlim nas telas

Melissa Dullius e Gustavo Jahn dirigiram, montaram e filmaram "Muito Romântico"

Melissa Dullius e Gustavo Jahn dirigiram, montaram e filmaram “Muito Romântico”

Escrever sobre este filme dirigido, montado e filmado pelo duo Distruktur, formado pelos brasileiros Melissa Dullius e Gustavo Jahn, mistura-se a escrever sobre suas vidas desde que deixaram o Brasil e embarcaram (literalmente) para a Alemanha, fixando residência em Berlim em 2007. Com estreia na Berlinale deste ano, na seção Forum Expanded, Muito Romântico (Alemanha/Brasil, 2016) foi exibido uma vez mais na capital alemã durante o Berlin Art Film Festival na semana passada, para uma sala lotada no tradicional Kino Moviemento, na fronteira entre os bairros de Kreuzberg e Neukölln. Com forte carga de identificação para brasileiros que fizeram essa viagem de migração específica e enfrentaram as agruras, experimentaram os prazeres e presenciaram as transformações de Berlim na última década, o filme é ainda um ensaio sobre a migração, as adaptações a uma nova cultura e sobre o amor no estrangeiro.

Dullius é de Porto Alegre. Jahn é de Florianópolis. Mas é de Porto Alegre, em 2007, que os dois entram em um navio e embarcam para a Alemanha, “sem saber no que vai dar, mas com força total”, como diz a personagem que se confunde com Jahn logo no começo do filme. Confunde-se porque, como na prática do duo, as personagens são e não são os próprios. É já no navio que começam a filmar em 16mm, com a ideia de fazer um filme que se passasse inteiramente ali, naquela travessia. O filme do navio não se materializa, mas o casal segue filmando as explorações por Berlim, da busca por apartamento na cidade a caminhadas pelas regiões em eterna construção e reconstrução e às amizades que vão se forjando. Com várias imagens exteriores, o centro do filme, porém, é o apartamento do casal em Friedrichshain, onde ocorrem as festas típicas do hedonismo berlinense – essa cidade sempre em polvorosa, aonde desde os anos 1920 artistas vêm produzir e desperdiçar obras. Ali ocorrem as crises comuns de um casal pelo dia a dia de qualquer dia e lugar, mas especialmente as crises específicas de artistas em uma cidade como Berlim e as saudades de brasileiros soterrados sob a neve, cercados por uma língua tão diferente da portuguesa. Em alemão e português, acompanhamos essa década do casal.

A prática artística de Dullius e Jahn, agindo com mais frequência no contexto das artes visuais, faz-se sentir na textura do filme, sua paixão, em primeiro lugar, pela materialidade do cinema em suas cores, focos, jogos de câmera, as possibilidades estéticas da própria escolha de trabalhar sempre com 16 mm. Isso não quer dizer que o filme não esteja interessado no aspecto narrativo do cinema como arte. É tentador, para mim, fazer um paralelo entre o trabalho com a imagem movediça (para englobar aqui todo trabalho fílmico) e o trabalho com a linguagem (para englobar toda escrita), e dizer que o filme de Dullius e Jahn, em sua paixão pela materialidade do seu meio artístico, está mais para a poesia do que para a prosa. Isso os liga a toda uma tradição do cinema. Ao fim do filme, o curador do festival, Tobias Ashraf, buscou paralelos com outros diretores e, sendo europeu, trouxe à baila o nome de Jean-Luc Godard. Mas qualquer brasileiro na plateia percebia desde o princípio uma ligação estética com o brasileiro Júlio Bressane (ainda que ele próprio esteja ligado a Godard), a quem o duo presta homenagem com uma citação no filme. Mas não consigo deixar de ver nesse filme berlinense um filme brasileiro. Ainda que filmado todo ele fora do Brasil, em Muito Romântico o espectador sente-se dentro do Brasil. O filme adentra a tradição experimental e subterrânea do nosso cinema, a de Bressane e Rogério Sganzerla.

Brasileiro, mas o filme nasce de todo o arquivo pessoal dos diretores nos seus últimos dez anos em Berlim. Abrindo com as cenas no barco em 2007, a narrativa nasce na ilha de edição, como nossa memória faria ao tentar contar a história de uma década em uma cidade estrangeira. Poucas cenas foram filmadas especialmente para o filme, com o intuito de criar pontes onde eram estritamente necessárias. No entanto, a constância estilística das mentes criadoras de Jahn e Dullius dão ao filme uma cara de coberta que aquece sem chamar a atenção para suas costuras entre os retalhos. É um filme de gênero híbrido talvez por buscar respostas às várias perguntas que praguejam a mente de um artista fora do Brasil: se é em primeiro lugar um ensaio sobre o amor, é também um ensaio sobre a migração, sobre o exílio, sobre a saudade, como já disse. É, em suma, um filme muito bonito.

Os brasileiros já tiveram a chance de ver Jahn e Dullius, como atores, no filme Os Residentes (2010), de Tiago Mata Machado, e Jahn está em O Som Ao Redor (2012), de Kléber Mendonça Filho. Sua prática como artistas segue, portanto, imiscuindo-se em todos os aspectos da imagem que se move, e os dois trabalham agora no roteiro de um filme que deve se passar em Florianópolis. Dullius também continua sua pesquisa apaixonada sobre a poeta alemã Marie Luise Kaschnitz (1901-1974) – contemporânea de poetas brasileiras como Cecília Meireles e Henriqueta Lisboa, e que, assim como esta última é no Brasil, é algo esquecida na Alemanha. A Kaschnitz Dullius gostaria de dedicar um filme. Aos leitores deste artigo, recomendo que assistam a este Muito Romântico quando tiverem a chance. Vou agora, brasileiro, encarar o resto do dia frio em Berlim.

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segunda-feira 12.12.2016 | 12:18

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França publica antologia de poetas brasileiros vivos

capa da antologiaA maneira mais adequada de iniciar o anúncio e apresentação desta antologia é falar sobre seu organizador e tradutor: Patrick Quillier. Nascido em Toulouse em 1953, ele é poeta, ensaísta e um dos mais respeitados tradutores da língua portuguesa em francês, responsável, entre outros projetos hercúleos, pela versão das Obras Poéticas de Fernando Pessoa lançada na prestigiosa coleção La Pléiade. Professor da Faculdade de Letras da Universidade de Nice, Quillier é ainda autor dos livros Office du murmure (1996) e Budapest (2004). E esta não é sua primeira incursão tradutória pela poesia brasileira. Quando o Brasil foi o convidado do festival Europalia em 2011, Quillier se encarregou da tradução do volume de poetas nacionais que acompanhou as leituras dos autores que foram à Bélgica.

Intitulada Retendre la corde vocale: anthologie de poésie brésilienne vivante, a antologia de agora traz três dezenas de poetas vivos de várias partes do território nacional e de poéticas bastante distintas, e será um número especial da revista Bacchanales, editada pela Maison de la Poésie Rhône-Alpes, em Grenoble. A capa, assim como as ilustrações que perpassam o volume são todas do pintor francês Gerard Serée.

O próprio livro é dividido em quatro partes, guiando-se pelas idades dos autores. A primeira traz quatro importantes poetas nascidos na década de 1930 e que passaram a atuar no cenário cultural brasileiro com grande força a partir dos anos 50:  Ferreira Gullar, Augusto de Campos, Zuca Sardan e Sebastião Nunes – e ainda nos ajuda a recuperar o trabalho de uma poeta que eu desconhecia, Regina Célia Colônia.

A segunda parte traz autores nascidos nas décadas de 1940/50: Elisabeth Veiga, Lu Menezes, Eliane Potiguara, Cuti, Adriano Espínola, Salgado Maranhão, Régis Bonvicino e Josely Vianna Baptista. Na terceira parte, autores nascidos a partir de 1960: Ricardo Aleixo, Ronald Augusto, Edimilson de Almeida Pereira, Cida Pedrosa, Marcos Siscar e Renato Negrão. Por fim, a antologia encerra-se com autores nascidos nos anos 1970/80, com Leo Gonçalves, Angélica Freitas, Marcus Fabiano Gonçalves, Dirceu Villa, Marília Garcia, Fabiana Faleiros, Érica Zíngano, Juliana Krapp e o mais jovem, Reuben da Rocha. Há poemas meus nessa última parte.

Por estar incluído na antologia, vou me abster de maiores comentários. A função deste texto é fazer uma simples apresentação do projeto, em homenagem aos esforços de Quillier. Quem está familiarizado com a escrita de alguns destes poetas saberá o trabalho que uma tradução deste porte envolveu. Antologias sempre tendem à discórdia, eu próprio poderia imaginar outros autores entre os que aí estão. Comentei a falta, com o tradutor, de um poeta maior como Leonardo Fróes. Ou Eliane Marques, poeta do Rio Grande do Sul que descobri há pouco tempo. Mas a boa notícia é que Quillier traduziu poemas suficientes para duas antologias e pretende suprir algumas lacunas, às vezes incontornáveis, em um volume maior que apresente também poetas que já nos deixaram, como Haroldo de Campos, Hilda Hilst, Roberto Piva e Hilda Machado. Poucas vezes a poesia brasileira viu-se em mãos de um tradutor tão hábeis quanto as de Quillier. Ainda que eu não estivesse incluído, teria visto essa lista de nomes com alegria.

E posso dizer que também já aprendi algo com ela: não conhecia o trabalho de Regina Célia Colônia, autora do livro Sumaimana (1974). Nascida no Rio de Janeiro em 1940, ela viveu seus primeiros dez anos de vida em diversos países latino-americanos com os pais, que trabalhavam junto a povos ameríndios. Estudou em Paris e retornou ao Brasil, onde viveu por um tempo junto à nação Kayapó e à nação Macuxi. Seu Sumaimana poderia ser conectado, por veios subterrâneos, a outros autores contemporâneos, como Sérgio Medeiros, Josely Vianna Baptista e Douglas Diegues, que buscam fontes e referências para além do cânone ocidental eurocêntrico em seus trabalhos. O lançamento da antologia será no dia 14 de outubro, em Grenoble.

Retendre la corde vocale: anthologie de poésie brésilienne vivante

Seleção e tradução de Patrick Quillier

Bacchanales n° 55 – Maison de la Poésie Rhône-Alpes

primeira parte

Ferreira Gullar (1930)

Augusto de Campos (1931)

Zuca Sardan (1933)

Sebastião Nunes (1938)

Regina Célia Colônia (1940)

segunda parte

Elisabeth Veiga (1941)

Lu Menezes (1948)

Eliane Potiguara (1950)

Cuti (1951)

Adriano Espínola (1952)

Salgado Maranhão (1953)

Régis Bonvicino (1955)

Josely Vianna Baptista (1957)

terceira parte

Ricardo Aleixo (1960)

Ronald Augusto (1961)

Edimilson de Almeida Pereira (1963)

Cida Pedrosa (1963)

Marcos Siscar (1964)

Renato Negrão (1968)

quarta parte

Leo Gonçalves (1973)

Angélica Freitas (1973)

Marcus Fabiano Gonçalves (1973)

Dirceu Villa (1975)

Ricardo Domeneck (1977)

Marília Garcia (1979)

Fabiana Faleiros (1980)

Érica Zíngano (1980)

Juliana Krapp (1980)

Reuben da Rocha (1984)

Data

sexta-feira 16.09.2016 | 06:19

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