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Escritores em guerra

Poucos acontecimentos históricos podem impactar uma cultura tanto quanto uma guerra. Quando olhamos para a literatura europeia, vemos o quanto os sucessivos e intermináveis conflitos bélicos deixaram sua marca na produção literária dos países do continente, em prosa e poesia. Nesta série de artigos em que venho discutindo as necessidades de consciência histórica por parte de escritores, talvez não haja exemplo mais cru do que a literatura produzida em meio a declarações de guerra e avanços de tropas, enquanto civis são estraçalhados.

Vemos esses testemunhos de horrores, ora celebrando, ora lamentando, desde os tempos em que poetas acompanhavam seus reis em batalha, quando não eram eles próprios senhores de terra em guerra, como o trovador Bertran de Born (1140-1215), até os tempos em que tantos soldados-poetas tombaram entre tiros e explosões, como August Stramm e Wilfred Owen em trincheiras opostas na Primeira Grande Guerra, ou Keith Douglas, morto na Segunda. Os sobreviventes certamente não têm como ignorar o morticínio, a devastação e a destruição, vendo suas vidas e comunidades transtornadas por completo. Penso, por exemplo, em Salvatore Quasimodo, passando da poesia hermética dos primeiros livros à transformação ética e estética de engajamento em livros como Con il piede straniero sopra il cuore (1947, traduções em português incluídas em Poesias, Ed. Record, 1999), assim como o trabalho de sobreviventes na acepção mais nua da palavra, como Primo Levi em Se questo è un uomo (1947, edição brasileira É isso um homem?, Rocco, 2013), Robert Antelme em L’espèce humaine (1947, edição brasileira A espécie humana, Ed. Record, 2013), e Paul Celan em Die Niemandsrose (1963, traduções em português incluídas em Cristal, Iluminuras, 1999), testemunhas dos maiores crimes de guerra do século passado.

Ainda que o Brasil tenha participado da Segunda Guerra e muitos jovens soldados brasileiros tenham perdido a vida na Itália, a experiência do conflito chegou-nos pelas mãos de poetas impactados com as notícias de longe, como Carlos Drummond de Andrade nos poemas de A rosa do mundo (1945) e Murilo Mendes em Poesia Liberdade (1947). O grande conflito internacional em que o Brasil viu seu território invadido deu-se no século 19 com a Guerra do Paraguai, certamente um dos conflitos mais horrendos e sangrentos do continente desde a invasão dos europeus, marcado por crimes de guerra até hoje abafados e esquecidos, em especial por parte de comandantes brasileiros como o Conde d’Eu, e que só entraria realmente no literatura brasileira mais de um século depois, em um romance como Viva o povo brasileiro (1984), de João Ubaldo Ribeiro. A experiência da guerra na literatura brasileira, no entanto, é o estopim de um dos nossos maiores livros: Os sertões (1902), de Euclides da Cunha. Foi através deste antiépico da nossa maior guerra civil que o horror bélico marcou nossas letras.

Nestes dois anos, em que relembramos os dois grandes conflitos mundiais e várias reportagens nos levaram de volta a seus horrores, com reedições dos poemas de guerra de vários soldados, como é a literatura de guerra e antibélica contemporânea? Se estamos discutindo a consciência histórica de poetas e prosadores, como os conflitos atuais têm entrado na literatura? Gostaria de comentar apenas um exemplo, o de uma autora nascida no país que se lançou em dois conflitos eivados de crimes neste novo século: os Estados Unidos. De que maneira as invasões do Iraque em 2003 e do Afeganistão em 2001 entraram em sua literatura? Poderíamos pensar que apenas o cinema vem tratando da questão, em filmes como Hurt Locker (Kathryn Bigelow, 2008) ou American Sniper (Clint Eastwood, 2014), mas a guerra tem entrado também na literatura norte-americana.

O livro que gostaria de comentar foi lançado em 2005, da escritora Juliana Spahr (nascida em 1966), intitulado This Connection of Everyone with Lungs (algo como “Esta conexão de todos com pulmões”). Spahr começa seu livro com as reações aos ataques às Torres Gêmeas no dia 11 de setembro de 2001, numa seção justamente intitulada “Escritos após 11 de setembro de 2001”. Para um americano que viveu os ataques, o título remete imediatamente à experiência de estar na cidade de Nova York durante e nos dias posteriores à tragédia, nos quais o ar da cidade seria tomado por poeira, fumaça e matéria carbonizada. Mas a americana não se limita a uma elegia por seu país. O livro é muito mais. A partir da segunda parte, com textos escritos entre 30 de novembro de 2002 e 27 de março de 2003, todos com datas por títulos, a escritora se lança a uma reflexão e meditação formadas por seu desejo de que os Estados Unidos não invadissem o Iraque. Vivendo no Havaí, onde grande parte das forças da Marinha americana estão localizadas, a escritora descreve – entre a esperança e o desespero – o fluxo de informações desencontradas entre a imprensa e os movimentos militares que ela mesma podia ver forjando-se nas bases de sua ilha. Entre notícias de celebridades, do ônibus espacial Columbia preparando-se para voltar à Terra e de ameças de uma guerra, Juliana Spahr digire-se a um Outro e Outros que ela chama de “beloveds”, queridos, amados, num jogo entre lírica e épica, tais como podemos compreendê-las nos dias de hoje. Abaixo, um trecho do texto datado “2 de dezembro de 2002”:

“Como ocorre toda noite, queridos, enquanto nos virávamos dormindo inquietos, o mundo continuou sem nós.

Vivemos em nosso próprio fuso-horário e há nesse fuso-horário apenas alguns milhões de nós e o mundo por consequência tende a começar e acabar sem nós.

Enquanto nos virávamos dormindo inquietos pelo menos dez ficaram feridos quando uma bomba explodiu em Bombaim e quatro foram mortos na Palestina.

Enquanto nos virávamos dormindo inquietos um armazém de auxílio alimentar foi destruído, ações em venda crescente explodiram, a Austrália fez ameaças de primeiros ataques, houve troca de tiros na cidade de Man, o embaixador da Bielorrússia no Japão desapareceu, um cruzeiro ardeu em chamas, em outro cruzeiro ainda muitos adoeceram, e o Papa fez um discurso contra o racismo.

Enquanto nos virávamos dormindo inquietos talvez J Lo tenha exigido sexo de Ben quatro vezes por semana em um acordo pré-nupcial.

Enquanto nos virávamos dormindo inquietos Liam Gallagher teve uma briga e fãs iracundos reclamaram que “Popstars: The Rivals” era um jogo de cartas marcadas.

Enquanto nos virávamos dormindo inquietos a Corte Suprema concordou em estudar o caso de quotas para minorias em universidades.

Enquanto nos virávamos dormindo inquietos caçadores capturaram esturjões num Mar Cáspio cheio de juncos, que abriga javalis e lobos, e alguns dos residentes do ônibus espacial planejaram seu retorno aos EUA.

Queridos, nosso mundo é isolado e pequeno.”

— Juliana Spahr, This Connection of Everyone with Lungs (tradução minha).

As notícias sobre o retorno do ônibus espacial, que já sabemos de antemão se espatifará na reentrada na Terra, funciona como uma espécie de sinal terrível de que suas esperanças se frustrarão e o país invadirá o Iraque, como realmente ocorre em março de 2003, quando a escritora encerra o livro. Sua mescla de uma voz lírica em meio à catástrofe histórica, que sabemos estar prestes a ocorrer enquanto ela medita com seus “beloveds”, torna o livro ainda mais pungente. É algo da mescla que vemos, numa clave bastante distinta, é claro, no grande poema lírico e épico de Oswald de Andrade, “Cântico dos cânticos para flauta e violão”, em que suas declarações de amor à mulher mesclam-se ao canto contra a Segunda Guerra que se desenrolava.

Para mim, tem servido como um exemplo de como um escritor pode manter-se ligado a sua comunidade, atento a seus dilemas, sem lançar-se a meros discursos de palanque, e mantendo-se fiel a sua voz, sem gritos de ordem, mas apenas um murmúrio de solidariedade a todos – todos – com quem compartilhamos oxigênio, nesta nossa conexão de todos com pulmões.

Data

sexta-feira 31.07.2015 | 08:33

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