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“Imagina depois da Copa”

O povo é o inventa-línguas, cantou Caetano Veloso a partir de Haroldo de Campos, que por sua vez tomou a expressão do russo Vladimir Maiakóvski. Os brasileiros não são conhecidos no mundo por seu humor, como são os ingleses, por exemplo. Mas é muitas vezes através da língua que os brasileiros procuram exercer sua resistência ao Estado-Nação que a meu ver menos os governa que os oprime. Quando foi decidido que o Brasil sediaria a Copa do Mundo de 2014, não demorou para que a falta de infraestrutura do país, com a qual os brasileiros têm que lidar todos os dias, gerasse um novo bordão para o caos diário das cidades brasileiras: “Imagina na Copa”. Caos no trânsito? Imagina na Copa. Péssimo transporte público? Imagina na Copa. Alagamentos? Imagina na Copa. Tratava-se da suspeita de que a Copa não só tornaria internacional nosso estado de exceções, como o intensificaria. E em grande parte, os brasileiros imaginaram bem a Copa.

Se Wittgenstein escreveu que o significado de uma palavra é seu uso na língua, a própria forma com que os brasileiros tendem a usar o verbo “imaginar” já demonstra algo sobre o país. Distante de poder muitas vezes sonhar novas possibilidades para o futuro, o “imaginar” no uso brasileiro tem menos do “Imagine” inglês de um John Lennon, por exemplo, que os ares de uma interjeição de desabafo. Por vezes, o brasileiro usa o “Imagina” até mesmo para dizer “de nada”. Obrigado – Imagina, como quem diz: isso não é nada, ou “não por isso”. Num país que parece legar tão poucas possibilidades de futuro para uma parcela tão grande da população, nosso “imaginar” passa a exercer uma função de negação, adversativa.

É na língua, propriedade verdadeiramente comunitária de um povo, que a batalha começa. Pois quando não era mais necessário imaginar a situação no país durante a Copa, e o evento chegou muito antes do primeiro chute na primeira bola, e começou a dividir ainda mais o país, com remoções forçadas, mortes nos canteiros de obras, violência policial contra qualquer desacordo, o “Imagina na Copa” transformou-se em “Não vai ter Copa”. É claro que ninguém esperava impedir o evento. Mas era necessário fazer resistência ao discurso do governo, que pretendia lucrar politicamente, e a sua “Copa das Copas”, jargão que está sendo reutilizado atualmente pela imprensa para refletir o entusiasmo com o evento.

Aos poucos percebemos que o legado da Copa não será a expansão da infraestrutura do país para todos os cidadãos, mas sim a expansão de uma estrutura militarizada que vem desde a Ditadura e, se já tornava um inferno a vida da população negra e indígena do país, agora se expande para outras parcelas da população que protestaram e sentiram na pele e na língua o que já era uma realidade para tantos.

É na língua que a batalha começa. A batalha se mostra quando parcela da mídia faz de “vandalismo” o que se sonhava “protesto”. O governo, sempre e ainda militarizado, que agora tenta transformar em “terrorista” o que se quer “dissidente”, e isso dentro de um chamado Estado de direito. Palavras são muito importantes. Tantas que circulam no país, como “democracia racial”, “cidadania plena”, ou “Brasil para todos”, são inócuas, vazias, mero discurso de controle. E a palavra “legado” começa hoje a se tornar algo a ser temido. Com as prisões arbitrárias de ativistas nas últimas semanas, começo a pensar com medo num novo bordão: “Imagina depois da Copa”.

Data

sexta-feira 04.07.2014 | 10:11

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