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Aniversário do suicídio de Torquato Neto em meio ao mar de lama

1. Eu queria poder escrever sobre coisas mais felizes nesta página, ao menos com mais frequência. Resenhar livros sem parar. Mas até os bons livros são tristes. A cultura é uma pulsão de morte. Talvez já desde quando nossos antepassados pintaram suas mãos nas cavernas, como a de Gargas ou a de Lescaux. As mãos negativas da cultura Magdaleniana, celebradas por Marguerite Duras em seu curta-metragem.

“São chamadas de ‘mãos negativas’ as pinturas de mãos encontradas nas cavernas magdalenianas no sul da Europa atlântica. O contorno dessas mãos totalmente abertas sobre a pedra era preenchido com cor. Na maioria das vezes de azul; de preto. Às vezes, de vermelho. Nunca descobriram uma explicação para essa prática. De frente para o oceano, sob a falésia, sobre a parede de granito, essas mãos abertas, azuis e pretas: o azul da água, o preto da noite. O homem veio sozinho até a caverna, de frente para o oceano. Todas as mãos têm o mesmo tamanho: ele estava sozinho. O homem, sozinho na caverna, olhou em meio ao barulho – ao barulho do mar – a imensidão das coisas. E gritou. Você, que tem um nome, você, que tem uma identidade, Eu te amo.” – fala inicial de As mãos negativas (1979), de Marguerite Duras, em tradução de William Zeytounlian.

2. Eram usados ocre para tornar vermelhas as mãos, óxido de manganês e carvão mineral para as pretas, esteatite para as brancas. Caçávamos minerais e deixávamos nossas marcas em nossas casas, as cavernas. Hoje, as marcas de nossas buscas por minerais cobrem por completo, com lama tóxica, as casas do vilarejo de Bento Rodrigues, ao lado de Mariana. Ambientalistas anunciam a morte irreversível do Rio Doce. Outros, anunciam que estas águas sujas causarão desastre à fauna marinha na costa capixaba. Arqueólogos talvez um dia encontrem Bento Rodrigues e a chamem de nossa Pompeia, numa versão infinitamente mais perversa.

3. Hoje, 10 de novembro de 2015, é aniversário do suicídio de Torquato Neto. Ontem, ele teria completado 71 anos. Tinha apenas 28 quando se matou, ligando o gás no banheiro de seu apartamento no Rio de Janeiro. Gás, outra coisa que extraímos da terra, do fundo dos oceanos. Chico Buarque também não cantou que um dia os escafandristas virão, quando o Rio de Janeiro for uma cidade submersa? Quando ouvi esta canção pela primeira vez, gostei do tom de ficção científica que o compositor dera a um poema de amor tão bonito. Já não é ficção científica. É alerta do que irremediavelmente virá.

“Eu, brasileiro, confessotorquato
Minha culpa, meu pecado
Meu sonho desesperado
Meu bem guardado segredo
Minha aflição

Eu, brasileiro, confesso
Minha culpa, meu degredo
Pão seco de cada dia
Tropical melancolia
Negra solidão

Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo”

É o que Torquato Neto cantou em “Marginália II”.

4. Enquanto isso, chegam as notícias de que uma citação de Simone de Beauvoir gerou repúdios públicos de câmaras de vereadores de cidades com universidades em seu meio. Que o Ministro da Educação foi convidado a explicar-se frente a uma comissão do Congresso, dominado como está por fanáticos religiosos perigosos (enquanto brasileiros gritam contra o Islã do outro lado do mundo). Mas serão combatidos com Simone de Beauvoir. Amém. Vamos adicionar Simone Weil. E Hannah Arendt. Vamos adicionar Hilda Hilst. E Muriel Rukeyser. Vamos adicionar Stela do Patrocínio. E Shulamith Firestone. Vamos adicionar Antonieta de Barros. E Emmeline Pankhurst. Devíamos dar a eles mais razões para ter medo. Seus privilégios vão chegar ao fim. E quem não reconhece a guerra vira bucha de canhão.

“Agora não se fala mais
toda palavra guarda uma cilada
e qualquer gesto é o fim
do seu início”

— Torquato Neto

5. Penso na arqueologia dentro do próprio território brasileiro. Penso em Luzia, nome que foi dado aos restos mortais mais antigos encontrados no Brasil. Aquela mulher. Uma mulher. Nossa matriarca. Luzia. Brasil. Como gostamos de nomes luminosos nesta terra! Enquanto isso, “mar de lama” deixou de ser, para todo o sempre, metáfora no Brasil. E vamos vivendo nossos últimos dias de paupéria, como no título daquele volume que um dia reuniu a poesia de Torquato Neto.

Data

quarta-feira 11.11.2015 | 11:16

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