Morreu o editor português André Jorge, amigo de poetas
A língua perdeu um amigo fiel e apaixonado. Poetas perderam um aliado corajoso. André Jorge morreu esta manhã em Lisboa, o editor e fundador da Livros Cotovia, que trouxe a lume tantos volumes bonitos. Poetas estrangeiros, como Paul Celan, Cesare Pavese, Jaime Gil de Biedma e Joseph Brodsky, foram disseminados por ali. Cuidadas edições de poetas das lusofonias transatlânticas, como de Bénédicte Houart ou Ruy Duarte de Carvalho. Alguns brasileiros tiveram ali sua casa em Portugal, feito Carlito Azevedo e Dora Ribeiro. Minha primeira visita em forma de texto a terras portuguesas foi pela Cotovia, na antologia A poesia andando: treze poetas no Brasil (Lisboa: Cotovia, 2008), com organização de Valeska de Aguirre e Marília Garcia.
Não vou me esquecer de meu único encontro em carne e osso com o editor em seu escritório em Lisboa, em 2011. Era minha primeira visita a Portugal. Fui recebido por ele como se recebe a um amigo, ainda que jamais tivéssemos nos visto, e até então houvéssemos tido apenas uma pequena troca de mensagens. Em meio aos livros em uma sala iluminada na bonita Rua Nova da Trindade, entre o Chiado e o Bairro Alto, conversamos por uma hora e meia sobre escritores dos dois lados do Atlântico, as relações entre nossos países, as dificuldades em editar livros em nossas terras. Fiquei desconcertado com o candor de André Jorge quando ele passou a falar abertamente das dificuldades de manter as rédeas financeiras da editora e sobre a enfermidade que o acometera e contra a qual lutava. A confiança com que ele se dirigia a mim, um estranho havia ainda uma hora, era desarmante. Uma confiança, talvez, da solidariedade entre os corpos vivos, sobre os quais a mão do tempo se abate, forte.
À saída, em sua generosidade, presenteou-me não apenas com vários exemplares da antologia que trazia textos meus, mas disse que corresse os olhos pela estante da livraria da editora no andar térreo e levasse comigo o que mais me apetecesse. Saí de lá pensando: “Acabei de conhecer um cavalheiro de verdade.”
Fundada em 1988, a Livros Cotovia lançou mais de 600 títulos. Entre ensaio, ficção, poesia e teatro, é inestimável sua contribuição para nossas cabeças, que eram mais pobres antes da generosidade de André Jorge. O Brasil lhe deve ainda gratidão pela amizade e lealdade, demonstrada, além de volumes individuais, na coleção “Curso breve de literatura brasileira”, que mantinha nas livrarias de Portugal obras centrais de nossa literatura, em prosa e poesia, como Memórias Póstumas de Brás Cubas de Machado de Assis, A menina morta de Cornélio Penna, os contos em Laços de família de Clarice Lispector, as coletâneas A educação pela pedra de João Cabral de Melo Neto e Claro enigma de Carlos Drummond de Andrade, O amanuense Belmiro de Cyro dos Anjos, São Bernando de Graciliano Ramos, e Os ratos de Dyonélio Machado, assim como antologias dedicadas ao conto e à poesia modernistas brasileiras. Uma lista exemplar, de conhecedor. R.I.P. André Jorge (1945-2016). Encerro como comecei, já que todos nós encerramos como começamos: a língua perdeu um amigo fiel e apaixonado. Poetas perderam um aliado corajoso.