O amor e os homens avulsos no segundo romance de Victor Heringer
Algumas diferenças chamaram minha atenção entre o romance de estreia de Victor Heringer, o premiado Glória (Rio de Janeiro: 7Letras, 2012), e seu segundo, O amor dos homens avulsos (São Paulo: Companhia das Letras, 2016), um dos mais discutidos na imprensa no ano passado.
Talvez a mais óbvia seja uma questão entre realidade e ficção geográficas. Se em Glória o autor lançava mão de seu interesse e conhecimento da história de minúcias das ruas do centro do Rio de Janeiro, levando-nos a um espaço urbano conhecido, com o bairro da Glória como epicentro e título do romance, em seu segundo trabalho a ação é transportada para um bairro fictício, o Queím.
Mas há outra diferença que talvez tenha chamado mais minha atenção, ao começar o romance. A transformação na linguagem do autor. Acompanhando seu trabalho desde a estreia, e leitor frequente de suas crônicas para a revista Pessoa em textos que sempre me levam a admirar a elegância de sua prosa, não pude deixar de notar em seu segundo trabalho o que me pareceu um maior despojamento de sua escrita em comparação com trabalhos anteriores. Não apenas no início do romance, quando o autor se debruça sobre as memórias infantis da personagem principal, levando também sua linguagem para o vocabulário desse nosso tempo de vida.
Glória é um romance de estreia ambicioso, com uma linguagem trabalhada e que, em vários momentos, usa o rebuscamento com ironia. Com diferentes níveis de leitura, usando a ficção histórica e a metaficção, o romance e seu romance dentro do romance balançavam-se entre o realismo daqueles leões da sátira impiedosa da sociedade carioca entre o Império e a República, com Machado de Assis e Lima Barreto à frente, e certos experimentos dos modernistas.
Não que estas questões tenham desaparecido em O amor dos homens avulsos. Mas parecem internalizadas, subreptícias. Subterrâneas e sutis. O tom direto de sua linguagem distancia-se da crítica irônica, e segue para uma descrição melancólica e bastante próxima de perdas e destruições dos que vivem longe dos holofotes dos centros de poder.
Talvez a ternura que o autor declarou ter guiado a escrita deste livro tenha começado justamente por sua relação com suas personagens, desaguando necessariamente sobre os leitores do romance.
Creio que a trama do livro já tenha sido relatada um par de vezes, mas repasso-a em linhas gerais para aqueles que ainda não a conhecem: a personagem principal, um homem de meia-idade, relembra seu primeiro amor por um menino que seu pai adotara durante sua adolescência, até chegar ao relato do assassinato brutal do garoto, jamais realmente esclarecido, e a maneira perdida com que a personagem passa o resto de sua vida à procura daqueles sentimentos e de um desfecho para a história, que o liberte. O tempo histórico deste romance de meninos é o período da Ditadura Militar (1964–1985), e o papel algo misterioso do pai da personagem principal naqueles anos terríveis de tortura e desaparecimento de corpos.
Muito tem sido discutido sobre a questão da sexualidade das personagens centrais. Eu teria vários motivos para abraçar esta leitura, mas eu creio que ela tem obscurecido a complexa trama de violências que o autor propõe no romance. Pois o que mais surpreende no trabalho, em minha opinião, vai além da incrível delicadeza e sensibilidade com que Victor Heringer tratou da sexualidade homoerótica nascente entre dois adolescentes e, mais tarde, a orientação mais claramente homossexual do narrador. Não é simplesmente um romance sobre a homofobia patente da sociedade brasileira de então e de hoje.
Parece-me que o autor carioca insinua ou propõe, na verdade, uma teia inextricável de violências em que os aspectos sexuais, raciais, religiosos e de classe social não podem ser facilmente desenovelados. Da relação entre a família rica branca e as pessoas negras que trabalham na casa; entre meninos ricos e pobres, brancos e negros, heterossexuais e homossexuais; e ainda entre o cristianismo e as religiões de matriz africana, o narrador, e seu autor, parecem estar em busca dos nódulos, dos nós dessa teia de subjugações e destruições. É sintomático, por exemplo, que uma das cenas mais delicadas de despertar sexual entre os garotos do bairro fictício se dê no antigo terreno de uma senzala, logo seguida por um ato de violência entre humanos e um animal. E é no mato alto da ex-senzala que o corpo do menino, o amor do narrador, seria encontrado, violentado e esfaqueado dezenas de vezes.
A escolha do período é importante, creio. Pois quando poderíamos ter imaginado o país avançando na cicatrização de tantas feridas de violência, o país foi lançado em outra ditadura sangrenta, na qual o estupro, a destruição de corpos, e o abismo social entre brancos, negros e índios, ricos e pobres, monoteístas e politeístas, homens e mulheres, foi novamente escavado e ampliado para a manutenção dos privilégios de uma elite que não se cansa de violentar, matar e fazer desaparecer.
A busca do narrador por seu passado, pela tentativa de resolução daquele crime – que foi sexual, racial e de classe – talvez espelhe a invocação por uma busca nossa, por nosso próprio passado sangrento. Não se contrói sociedade justa sobre o apagamento de nossas feridas históricas. Não se apaga o sangue que embebeu a terra. A violência retorna, como numa fantasia sinistra que envolve o narrador e o filho do assassino. O alerta bíblico de que a iniquidade dos pais é visitada nos filhos é insinuada aqui como inevitável consequência histórica, que não se repete como tragédia e mais tarde como farsa, mas como tragédias continuadas e subsequentes cada vez maiores.
Precisamos entender os nós dessa trama de violências. Não apenas para desenovelá-los, mas talvez para ver neles a possibilidade também de união, em nossa inocência e nossa culpa, e por fim na compreensão mútua de opressões interligadas, que possa nos levar a novas alianças políticas entre os diversos grupos que lutam hoje por igualdade no país. Tavez deixemos então de ser homens avulsos e possamos nos tornar finalmente concidadãos.