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Um amante de domingo e a vontade de matar um cabrão: nota sobre o romance de Alexandra Lucas Coelho

Uma das personagens mais famosas da literatura em língua portuguesa é uma mulher da qual não ouvimos qualquer palavra de sua própria boca, Capitu. De quem sabemos apenas o que seu marido tinha a dizer. Suas palavras, editadas e relatadas por ele. A que ficou conhecida pelo epíteto nada elegante que ele lhe deu, a “cigana de olhos oblíquos e dissimulados”. Se querem minha opinião, com um marido daqueles, faço votos de que Capitu tenha gozado belas horas ao lado de Escobar, que acordava às seis da manhã para nadar no mar e devia ser um Adônis.

Apenas no fim do século 19 e início do 20, algumas mulheres começam a se fazer ouvir com força, com as poetas Francisca Júlia, Florbela Espanca e Cecília Meireles, até a benvinda chegada de Agustina Bessa-Luís, Clarice Lispector, Maria Velho da Costa, Hilda Hilst, Maria Gabriela Llansol. É ímpossvel pensar a literatura lusófona hoje sem a presença marcante de mulheres, ainda que editoras e feiras literárias se esforcem muito para fazer justamente isso. Pena que até hoje alguns insistem em ignorar nossas devassas e nossas monjas. Monjas como a portuguesa Sóror Maria do Céu, que escreveu o excelente “Cidra, ciúme”:

Cidra, ciúme
Sóror Maria do Céu

É ciúmes a Cidra,
E indo a dizer ciúmes disse Hidra,
Que o ciúme é serpente,
Que espedaça a seu louco padecente,
Dá-lhe um cento de amor o apelido,
Que o ciúme é amor, mas mal sofrido,
Vê-se cheia de espinhos e amarela,
Que piques e desvelos vão por ela,
Já do forno no lume,
Cidra que foi zelo, se não foi ciúme,
Troquem, pois, os amantes e haja poucos,
Pelo zelo de Deus, ciúmes loucos.

Este poema me veio à mente na semana passada, enquanto andava por Berlim com o romance de Alexandra Lucas Coelho no bornal, O Meu Amante de Domingo (Lisboa: Tinta-da-China, 2014). Conhecida por sua coluna “Atlântico-Sul” no jornal português O Público e autora de várias coletâneas de textos de viagem, como Viva México, Caderno Afegão e Vai, Brasil!, a lisboeta, nascida em 1967, já tinha publicado o romance E a noite roda (Lisboa:  Tinta-da-China, 2012).

O Meu Amante de Domingo é marcado por suas experiências entre Brasil e Portugal, e tem por “personagem” Nelson Rodrigues, com quem a narradora dialoga ao longo de seus planos de vingança contra um “cabrão” que a usou durante um mês em busca de “material literário”. O plano da narradora é, muito compreensivelmente, matá-lo. Aquele que jamais teve fantasias homicidas contra um macho, um cabrão, ou canalha para usar expressão frequente em Nelson Rodrigues, que atire a primeira pedra. Eu próprio jamais havia considerado usar a pata de um elefante, e minhas fantasias foram inúmeras e várias num determinado ano de minha vida. Agradeço à autora por esta adição a meu repertório.

“Porque os caubóis têm um menu. Modo trocista, modo culto, modo porno, modo tão filho da puta que só mesmo a morte por esmagamento de pata de elefante, ainda que, claro, na actual crise portuguesa não seja tão fácil arranjar elefantes como, digamos, em 1497, quando as naus saíam ali do Terreiro do Paço para meses de escorbuto e carne podre à procura da Índia” [Alexandra Lucas Coelho, in O Meu Amante de Domingo].

No meio tempo, narra suas invejáveis tardes com um mecânico que adora reticências em mensagens de texto, e as nada invejáveis com um poeta cinquentão que parece conhecer melhor a poesia suméria do que o trato com seres humanos com os quais compartilha o oxigênio de seu século. Há ainda o Apolo das piscinas, novo rico que esbanja euros e ereções. O mundo lusófono tem certa abundância de tais personagens.

“Deu certo: ninguém a não ser nós dois, Apolo activo na mariposa, eu já na fase chill out ao cabo de mil metros costas, contraindo e expandindo os músculos mais próximos do sudeste asiático, essa região onde delicadas fêmeas expelem bolas de pingue-pongue da sua buceta de Pandora. Buceta é um óptimo nome para cona. Aliás, portugueses e brasileiros podiam resolver assim as suas diferenças, caso a literatura não funcione. Português, conheça a buceta. Brasileiro, conheça a cona. Pronto, ide como irmãos, e que a paz vos acompanhe” [Alexandra Lucas Coelho, in O Meu Amante de Domingo].

Num texto que flui que é uma delícia, Alexandra Lucas Coelho vai do jogo com a língua usada entre as duas margens do Atlântico à intertextualidade no diálogo com Nelson Rodrigues, Machado de Assis, Balzac e Joyce, entre outros. Há os momentos ainda de vingança histórica, como ao resgatar Ana da Cunha / Ana de Assis, que se viu em meio à tormenta dos tablóides brasileiros da época após os machos Euclides da Cunha e Dilermando de Assis trocarem tiros por sua causa, e um dos usos mais eficientes e discretos da metaficção que passaram por meus olhos nos últimos tempos, ao trazer a escrita do romance O Meu Amante de Domingo para dentro da escrita do romance O Meu Amante de Domingo. Enquanto isso tudo ocorre, dei gargalhadas terapêuticas com o humor fino da autora e sua narradora.

O livro me levou também a pensar na transformação pela qual passa a escrita de mulheres em nossa língua. Não há espaço para essa discussão neste pequeno texto, que se quer apenas uma nota sobre um romance que recomendo a todos e, especialmente, todas. Mas pensei numa possível leitura comparada entre o romance de Alexandra Lucas Coelho e o mais famoso de Chris Kraus, I Love Dick (1997). Os jogos de revelação e confissão que levam a uma escrita libertária do corpo feminino. A mulher por sua própria voz. Mas o que saberia eu destas coisas, sendo homem? Trabalhos para o futuro. No prefácio de Eileen Myles para o romance de Chris Kraus, ela fala sobre female abjection e cita Carl Dreyer, na estratégia de usar “artifice to strip artifice of artifice”. Isso me pareceria apto para discutir também o romance de Alexandra Lucas Coelho, que ainda pode gerar discussões importantes em nosso contexto lusófono machista. E, em meio a isso tudo, o prazer do texto. Tenham uma boa tarde de domingo com um cabrão e então leiam este livro na cama, com um cigarro.

Data

quarta-feira 08.04.2015 | 08:30

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