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“A política e a poesia são demais para um só homem”

É o que diz a personagem Sara, interpretada por Glauce Rocha, ao poeta e ativista Paulo Martins, interpretado por Jardel Filho, em Terra em Transe (1968), num dos momentos mais amargos do filme de Glauber Rocha. É pouco provável que o diretor baiano tivesse conhecimento disso, mas este dilema fez parte da vida de outro poeta e ativista, de carne e osso, o norte-americano George Oppen (1908-1984). Um pequeno histórico do autor: em 1931, Oppen teve seus primeiros poemas publicados em um famoso número da revista Poetry , que marcou a história da poesia norte-americana. Editado por Louis Zukofsky, a edição ficaria conhecida como o “número dos Objetivistas”, lançando o grupo com poemas do próprio Zukofsky e de Oppen, além de poetas modernistas da geração anterior, como Basil Bunting e William Carlos Williams, e ainda um texto de Samuel Putnam, que viria a se tornar o primeiro tradutor de Euclides da Cunha para o inglês. Trata-se de uma geração contemporânea à que daria ao Brasil poetas como Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes e Vinicius de Moraes. Trata-se ainda de uma década de intensa atividade política por parte dos poetas jovens daquele tempo, como vemos na Inglaterra no círculo ao redor de W.H. Auden, ou, na Alemanha, com poetas como Bertolt Brecht (ativo desde os tempos dos expressionistas). Em 1934, George Oppen lançou seu primeiro livro, Discrete Series. O primeiro poema do livro termina com os versos “Of the world, weather-swept, with which / one shares the century”, algo como “Do mundo, varrido pelos climas, com o qual / dividimos o século”. Sempre me pareceu uma declaração tanto de estética quanto de ética. Uma atenção a seu tempo e a seu espaço.

E então George Oppen, engajado, com sua mulher, Mary, nas lutas dos trabalhadores norte-americanos em plena Grande Depressão pós-crack da Bolsa em 1929, decide justamente isso: que “a política e a poesia são demais para um só homem”, e abandona a escrita para engajar-se de vez na luta política, filiando-se ao Partido Comunista norte-americano (Communist Party USA) e ajudando a organizar greves de trabalhadores em Nova York, como a chamada Greve do Leite, em Utica. Acusado de agredir um policial quando um dos encontros políticos recebe uma blitz, passa anos defendendo-se na Justiça até ser inocentado. Em 1942, Oppen enlista-se e segue para a Segunda Guerra Mundial, participando de batalhas na Linha Maginot e nas Ardenas, sendo gravemente ferido na chamada Batalha do Bulge (ou Batalha das Ardenas), a grande contra-ofensiva alemã entre dezembro de 1944 e janeiro de 1945. De volta aos Estados Unidos, ainda sem escrever, acaba tendo que deixar o país com sua mulher no período de perseguição a comunistas pelo Senador Joseph McCarthy, conscientes de que seu passado de ativismo político certamente chamaria a atenção do comitê anticomunista do Congresso. O casal passaria anos exilado no México.

Ao retornar aos Estados Unidos em 1958, mais de 20 anos após a publicação de seu primeiro livro, George Oppen retoma a poesia, publicando The Materials (1962), This In Which (1965) e Of Being Numerous (1968), pelo qual recebe o Prêmio Pulitzer em 1969. Este último livro, Of Being Numerous (De Ser Numerosos), é um marco para poetas que buscam uma linguagem que os ligue a uma comunidade, a um tempo e espaço comuns. No poema de número 7, Oppen escreve:

Obsessed, bewildered

By the shipwreck
Of the singular

We have chosen the meaning

Of being numerous.

Ou, “Obcecados, confusos // Pelo naufrágio / Do singular // Nós escolhemos o significado / De ser numerosos”. Eu confesso que George Oppen é um dos meus fantasmas. É um nome que entra no meu crânio, acusando, quando começo a pensar nas responsabilidades do escritor em tempos sombrios. Não apenas em suas responsabilidades, mas em suas possibilidades de intervenção. E nosso momento é certamente um instante na longa História que se mostra bastante difícil para um poeta ou prosador brasileiro, ao menos para aqueles que mantêm um desejo de pertencer a uma comunidade, de estar acordados para seu tempo e seu espaço. As notícias de linchamentos pelas ruas do país, crimes de ódio contra cidadãos homossexuais e negros, o obscurantismo que toma conta do Congresso e da opinião pública, os atentados contra a democracia vindo de várias frentes, da mídia, do Parlamento, de intelectuais conservadores, chegam a me desanimar por completo.

Em sua famosa entrevista a Júlio Lerner, ao ser perguntada sobre o papel do escritor brasileiro naquele momento, Clarice Lispector respondeu: “O de falar o menos possível”. Era 1977, e Ernesto Geisel sentava-se no Palácio do Planalto. Ela acabava de escrever aquele que é visto por muitos como seu livro mais político, A Hora da Estrela. Não quero ser apenas do contra, mas sempre vi seus livros mais políticos como sendo A Maçã no Escuro (1951) e A Paixão segundo GH (1964), com seus questionamentos de nossa noção destrutiva e violenta de civilização, ao mesmo tempo mostrando a crença de uma mudança possível. A Hora da Estrela talvez seja ao mesmo tempo seu livro mais místico e o mais desesperançado. De alguém que parecia ter deixado de crer nas possibilidades de transformação, como parece claro em certos momentos da entrevista daquele ano.

Qual é o ponto deste artigo? Simplesmente confessar uma crise de crença – na literatura, na possibilidade de intervenção pela poesia. O fantasma de George Oppen na sala, sobre a mesa em que escrevo. A personagem de Glauce Rocha dizendo para a personagem de Jardel Filho: “A política e a poesia são demais para um só homem”. Como antídoto, posso fazer uma única coisa: abrir o livro de George Oppen e repetir alguns de seus versos, como um mantra: “Obcecados, confusos // Pelo naufrágio / Do singular // Nós escolhemos o significado / De ser numerosos”.

Buscar na estante outros guias. Chegar ao Carlos Drummond de Andrade de A Rosa do Povo (1945), repetir alguns versos: “Onde te ocultas, precária síntese, / penhor de meu sono, luz / dormindo acesa na varanda?”. Logo ao lado está Bertolt Brecht, e a seu lado James Baldwin, e ao lado deste estão Hilda Hilst e Roberto Piva, com suas fúrias. Há Alaíde Foppa e Audre Lorde, aquela que escreveu:

E quando o sol se ergue temos medo
que talvez não permaneça
quando o sol se põe temos medo
que talvez não se erga de manhã
quando nossos estômagos estão cheios temos medo
da indigestão
quando nossos estômagos estão vazios temos medo
que talvez nunca mais comamos
quando nós amamos temos medo
que o amor desaparecerá
quando estamos sós temos medo
que o amor jamais voltará
e quando falamos temos medo
que nossas palavras não sejam ouvidas
nem benvindas
mas quando estamos em silêncio
ainda assim temos medo

Então é melhor falar
lembrando-nos
de que nunca fomos destinados a sobreviver

(de “A litany for survival”, tradução minha)

Há a fé de Roberto Bolaño, e os alertas de W.G. Sebald, e por fim me vêm as imagens do corpo vivo e do corpo trucidado de Pier Paolo Pasolini, que viveu em um tempo tão sombrio quanto o nosso, que profetizou e nos alertou contra o que estava por vir, e abro seu livro As Cinzas de Gramsci (1957), e repito por último antes de dormir:

 Pobre como os pobres, agarro-me
como eles a esperanças humilhantes,
como eles, para viver me bato

dia a dia. Mas na minha desoladora
condição de deserdado,
possuo a mais exaltante

das posses burguesas, o bem mais absoluto.
Todavia, se possuo a história,
também a história me possui e me ilumina:

mas de que serve a luz?

(Pier Paolo Pasolini, As Cinzas de Gramsci, tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo)

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terça-feira 14.07.2015 | 09:14

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Flip 2015

Começa hoje em Paraty a Flip 2015, com o poeta, prosador, musicólogo e ensaísta Mário de Andrade como homenageado. Há tempos o nome do autor paulistano não aparecia tanto na imprensa, e a homenagem da FLIP certamente teve seu impacto. Até mesmo a tão discutida sexualidade do autor acabou sendo “revelada” com a publicação da famosa carta a Manuel Bandeira. O ensaísta, crítico e músico José Miguel Wisnick discutirá a obra do autor em um evento especial da feira literária. O curador deste ano é Paulo Werneck, que já havia cuidado do evento no ano passado.

Dois dias antes do evento, o italiano Roberto Saviano – um dos nomes mais aguardados do festival – cancelou sua vinda por motivos de segurança. Desde a publicação de seu Gomorra (2006), vive sob proteção policial por ameaças de morte da máfia italiana. Saviano é, de certa forma, o Salman Rushdie de nossa época, e me parece interessante pensar que a ameaça não vem do Oriente, do “outro”, mas de dentro de nossa suposta sociedade ocidental democrática. Um escritor que corre risco de assassinato dentro da própria Europa.

A Flip recebe as mesmas críticas todos os anos, e em sua grande parte são críticas merecidas. Há vários problemas com o formato do festival. O curador parece tentar amenizar vários deles, e algumas de suas escolhas devem ser elogiadas. O convite, por exemplo, para que o poeta Carlito Azevedo apresente-se na feira com alunos de suas importantes oficinas de poesia em locais cariocas como o Complexo do Alemão e a Rocinha, por exemplo, é algo muito benvindo. O projeto de edição das bibliotecas do Rio lançará na festa textos de Deocleciano Moura Faião e Geovani Martins, ambos alunos de Carlito Azevedo.

O próprio convite a Roberto Saviano, com o desejo de discutir a violência ligada ao tráfico de drogas, é algo muito importante para o Brasil, e me parece ir muito além da mera celebridade do autor. E a discussão, que agora terá que ser feita por substitutos ainda não anunciados, é mais que necessária neste momento em nosso país.

Ainda que seja um único autor, devemos sempre celebrar a vinda ao Brasil de um autor africano como Ngugi wa Thiongo. Todos nós, críticos, editores e curadores brasileiros precisamos melhorar nossa compreensão e conhecimento da literatura do continente africano.

No entanto, gostaria de voltar a uma crítica séria que a Flip recebe todos os anos: sua miopia para com as mulheres produzindo grande parte da melhor literatura mundial neste momento. Uma entrevista com o curador, que circulou no mês passado, chamou minha atenção.

Em entrevista ao El País Brasil [“Pichar qualquer festival literário como badalação frívola é elitista”, El País Brasil, 03/06/2015], Paulo Werneck defendeu o evento destas que são as críticas mais merecidas, que recebe anualmente. Sua entrevista causou reações sarcásticas nas redes sociais. Sua escolha de responder à crítica de que a festa seria elitista, chamando de elitistas os que a chamam de elitista, é coisa de praxe em “debates” no Brasil. A questão não é apenas o fato de haver tanta badalação midiática em torno de uma forma de arte que exige reflexão, outro tempo de escuta. É difícil aceitar a tática de defesa, tratando-se de um festival com entradas pagas e caras, em uma cidadezinha bucólica de difícil acesso (exigindo outros custos mais de viagem e hospedagem), festa que por sua vez não paga cachê a seus autores e segue com uma curadoria que ignora a pluralidade de vozes no mundo. A Flip não é para pobres e pronto. Com um pouco mais  de responsabilidade social dos senhores e senhoras que a organizam, talvez alguns dos escritores pudessem se apresentar em locais mais democráticos no Rio de Janeiro e São Paulo, por exemplo, mas imagino que isso entraria em conflito com a necessidade de badalação exclusiva do evento, levando quem pode pagar os custos até a bucólica cidadezinha de difícil acesso.

Mas talvez a declaração que mais tenha gerado estranheza na entrevista de Werneck foi sua afirmação de que, se a presença de escritoras na Flip segue sendo minúscula, a culpa não é dele, pois, se todas as escritoras que ele convidou tivessem aceitado o convite, a quota entre homens e mulheres teria sido equânime, “com 50% ou mais de mulheres”. Ele menciona Mary Beard e Marjane Sartrapi como escritoras que, por um motivo ou outro, não aceitaram o convite.

Vejamos novamente a diferença entre autoras e autores na Flip dos dois anos em que Werneck foi curador: em 2014, foram 47 convidados. Destes, 8 mulheres, o que nos leva a crer que cerca de 18 escritoras convidadas por Paulo Werneck cancelaram ou não aceitaram o convite. Vale lembrar que algumas das convidadas vinham de outras áreas, não da literatura. Este ano, são 42 convidados. Destes, 11 são mulheres. Outras dez autoras parecem ter se recusado a participar da festa. O que ocorre, então? São substituídas por homens? Por que mulheres estão se recusando a participar da Flip, se é este mesmo o caso? Estas não são apenas picuinhas, nem compra de briga com o curador. São questões importantes, que se tornam ainda piores quando contemplamos também a questão racial no evento. Nossas responsabilidades políticas no terreno literário, se formam uma discussão complexa no campo da criação, certamente têm obrigações mais claras e fáceis de definir em nossos papéis de divulgadores de vozes.

A Flip começa hoje. Desejo-lhes uma ótima estadia na bucólica Paraty. Que algumas das importantes discussões que ocorrem no evento possam realmente tomar de assalto a imprensa cultural no país.

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quarta-feira 01.07.2015 | 10:56

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Notícias do front literário: nada de novo?

Olhando deste lado do Atlântico, a vida literária aí no Brasil parece agitar-se. Comento a seguir duas das notícias que me chegaram aqui nos últimos dias.

§ – Augusto de Campos recebe o Prêmio Pablo Neruda, outorgado pelo governo do Chile

Vale começar com uma boa notícia. E uma notícia que surpreende: não é sempre que um prêmio institucional, outorgado por um governo, é dado a um autor considerado experimental, e por vezes difícil. Quando o prêmio honra um poeta como Pablo Neruda, pode-se esperar que ele seja dado a autores desta linhagem da poesia latino-americana, e Augusto de Campos talvez seja hoje o maior representante de uma linhagem bastante diferente em nossas letras, mais concentrada em sua linguagem, de caráter construtivista, distante do poeta chileno, com sua verve épica, autor de um dos mais conhecidos poemas longos do continente, o Canto General (1950). Ao mesmo tempo, ainda que Augusto de Campos seja um nome incontornável no Brasil, faz pouco que sua obra começou a atravessar com mais força a fronteira, com traduções e edições em países da América Latina e na França, por exemplo. Celebrar a presença do poeta paulistano entre nós é importante, e mostra a vitalidade de sobrevivente da poesia em língua portuguesa, que ainda conta com mestres como Augusto de Campos, mesmo que tenha perdido há pouco aquela outra voz da balança poética, Herberto Helder.

§ – Academia Brasileira de Letras não outorgará prêmio de poesia este ano

Quanto a prêmios no Brasil, a última lambança a chegar ao fórum das redes sociais foi a notícia de que os jurados do prêmio de poesia da Academia Brasileira de Letras, os “imortais” Ferreira Gullar, Alberto da Costa e Silva e Cleonice Berardinelli, não haviam encontrado livros de poesia dignos de prêmio entre as publicações do ano passado [“Decisão da ABL de não premiar poesia surpreende o setor”, O Globo, 23/06/2015]. Os três jurados são intelectuais brasileiros importantes e merecem, com níveis variados, nosso respeito. Não estão, certamente, acima do bem e do mal, como declarou Silviano Santiago, citado no artigo já mencionado. Poetas que chegam à casa dos 80 e conseguem manter um contato real com a poesia das gerações mais novas são raros. E talvez não valha a pena voltar à crítica de sempre contra a ABL. Os senhores e senhoras de fardão têm suas prioridades e ideologias. Quiçá o fato de que a ABL não quer premiar qualquer livro de poesia este ano seja o melhor elogio que a poesia contemporânea poderia receber. Ao mesmo tempo, Adriana Calcanhotto escreveu um texto lúcido a respeito [“Decisões radicais”, O Globo, 28/06/15], dizendo que o Brasil precisa de excelência e rigor neste momento. Ainda que haja livros que poderiam ter recebido o prêmio da Academia, haveria livros que não poderiam ter deixado de recebê-lo?, ela pergunta em seu texto. É uma questão séria e importante. Ela acredita que tal atitude, demonstrando rigor, pode ser frutífera para nossa produção, e tem razão, em vários aspectos. Há muita preguiça hoje na poesia brasileira. Se muitos poetas, durante a década de 90 por exemplo, nos entregaram textos rígidos demais, talvez hoje o desejo de espontaneidade (esta desculpa brasileira para preguiça e incompetência) sirva como muleta para os textos frouxos que vêm sendo motivo para cortes de árvore e publicação em papel. Resta saber se é de um autor como Ferreira Gullar que podemos receber tal conselho, já que ele próprio ganhou vários prêmios por um livro fraco e frouxo como Em Alguma Parte Alguma (Rio de Janeiro: José Olympio, 2010).

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quarta-feira 01.07.2015 | 09:29

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Metendo-me na vida de autores

É compreensível que muitos críticos desconfiem de uma ênfase exagerada na biografia dos autores para o estudo de suas obras. Trata-se de uma rua de mão dupla com tráfego perigoso nos dois sentidos. Por um deles, acreditar que a experiência pessoal de um autor possa explicar o que escreveu, e por outro, deduzir de sua escrita uma vivência pessoal que, ainda que muitas vezes esteja lá, acaba transfigurada pela escrita, transformada. No entanto, é comum esperar isso de autores à margem, e menos de autores que pertençam a grupos com poder político e socioeconômico. No Brasil, especialmente quando se trata da sexualidade do autor, passamos a nos mover em terreno minado. Basta ver a maneira como a sexualidade de autores como Mário de Andrade e Ana Cristina Cesar é até hoje tratada de forma velada. Como entre famílias em muitas casas brasileiras: sabemos, mas simplesmente não falamos a respeito.

Aqui, voltamos à questão inicial: isso realmente importa para estudarmos e apreciarmos suas obras? Talvez, não. Pois isso acaba sendo tratado de forma velada, muitas vezes, pelos próprios autores. Porque conhecem a sociedade (e, muitas vezes, a família) com que estão lidando. O que me incomoda é a maneira quase infantilizada com que se tratam tais escritores. Por vezes, ao ler sobre Ana Cristina Cesar, me pergunto quando passarão a tratá-la como adulta. Ou mesmo Mário de Andrade, que por vezes me parece um homem bem menos de carne e osso do que companheiros seus como Manuel Bandeira ou Oswald de Andrade. Para quem acredita que a escrita não é apenas a organização de signos numa superfície, seja ela de papel ou digital, e em vez disso acredita no autor inserido em um contexto histórico e político, parte de uma comunidade, isso conta. Conta para uma compreensão mais clara não apenas do seu significado, mas também de sua significância. De sua relevância total, estética, mas também política.

Posso falar, aqui, num espaço que não me permite grandes voos teóricos, apenas de maneira pessoal. Ainda me lembro da primeira vez que li, em um manual escolar de literatura, que Raul Pompeia seria homossexual. Para um adolescente vivendo no interior de São Paulo, sentindo-se em batalha contra a sociedade que o cercava, aquilo tinha um valor político. Hoje sei que sequer é clara a questão da sexualidade de Pompeia. Mas, quando finalmente li o seu grande romance O Ateneu, perceber ali uma violência distinta da que encontrara em outros escritores tinha um significado estético, sim, mas também político. Da mesma maneira que me foi tão importante um conto como “Frederico Paciência”, de Mário de Andrade, incluído em seus Contos novos.

O brutalismo estético de Pompeia (esse nome tão apropriado) talvez pudesse ser lido na clave do camp, discutido por Susan Sontag em seu famoso ensaio “Notes on camp”, em que fala sobre a influência da sensibilidade homossexual sobre a arte e a crítica do século 20. Seria também anacrônico. Sei que outros críticos o chamaram de “impressionista”, quando comparado à secura e à elegância de Machado de Assis no século 19 ou Graciliano Ramos no século 20. Terá sido algo da vivência de Raul Pompeia e, mais tarde, de Lúcio Cardoso que os levaram a esse brutalismo, esse travestir da linguagem, uma estilização quase ritualística da língua, como vemos em seus romances O Ateneu e Crônica da Casa Assassinada, respectivamente? Uma desconfiança do que é tido por “natural”?

Certamente, quando se trata da violência da poesia de Roberto Piva, não é possível negar esta ligação entre biografia e escrita. Seu desejo de transformação social através da poesia. Sua batalha constante contra a ascese cristã e o elogio da pobreza, em nome de sua visão dionisíaca da existência.

Como podemos esperar que o Brasil se torne um lugar mais tolerante, se mesmo nós parecemos colocar luvas ao tratar de certos assuntos na vida de nossos autores? Assuntos que certamente condicionaram sua experiência de vida e, portanto, sua visão estética.

Como Victor Heringer escreveu em sua “Opinião intempestiva: sobre a carta do Mário” [Automatógrafo, 15.06.15]: “Pelo visto, não é segredo para ninguém que o Mário era gay. Ou seja, vai ser aquela situação, todo mundo vai fingir surpresa, depois na boca miúda vão dizer que o Mário, o Mário nunca os enganou. (Pode ser outra coisa também. Ninguém conhece o conteúdo da carta.) Quando li as notícias fiquei pensando que tanto fazia a orientação sexual do sujeito, achei que o fuzuê era demais. A carta sai da gaveta, o Mário sai oficialmente do armário e vida que segue. Mas aí me lembrei do Machado. De vez em quando, como no caso do comercial da Caixa em que o Machado é representado por um ator branco, a gente precisa relembrar que o maior escritor brasileiro era negro. Porque a tendência é mesmo padronizar: embranquecer, heterossexualizar. Eu sei: às vezes é sem querer. Mas às vezes é bom também relembrar.”

Seremos mais adultos quando formos capazes de tratar nossos autores como tais. Como Mário de Andrade deveria ser tratado como adulto, livre, de carne e osso, com desejo por outra carne e osso.

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quinta-feira 25.06.2015 | 05:53

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Corpos em Berlim: a ação do coletivo Centro para Beleza Política

O coletivo alemão Zentrum für Politische Schönheit (Centro para Beleza Política, literalmente) iniciou esta semana em Berlim uma de suas intervenções mais controversas e espetaculares. Após conseguir autorização de famílias para exumar os corpos de dez imigrantes que morreram tentando chegar à Europa, o coletivo trouxe-os à Alemanha para dar-lhes enterros decentes em cemitérios da capital alemã. Os primeiros corpos, de uma mulher síria e de sua filha de 11 anos, foram enterrados na terça-feira (16/06) no cemitério de Gatow. Caracterizando-os como “vítimas do fechamento das fronteiras europeias”, o coletivo pretende com a ação, em suas próprias palavras, derrubar o Muro da Europa, fazendo referência ao Muro de Berlim. A frase que o coletivo está usando para a ação, “Die Toten kommen” (Os mortos estão a caminho), agita o imaginário de um mundo que passa horas diante das telas de TV assistindo a séries e filmes de mortos-vivos.

A tragédia que vem se desenrolando no Mediterrâneo já custou milhares de vidas. A notícia de que em uma única noite mais de 400 pessoas haviam morrido chegou às capas de vários jornais, sem no entanto levar a qualquer mudança na política de imigração europeia, nada além de minutos de silêncio diante das câmeras e palavras ocas de condolências. Poucos dias depois, uma tragédia ainda maior mataria mais de 900 pessoas.

A ação do coletivo vem conseguindo ampla cobertura na imprensa alemã e internacional. Eles dizem querer forçar o governo alemão a caminhar sobre cadáveres se quiser seguir ignorando a tragédia. Em mim, gerou primeiramente admiração pelo grupo, mas não deixa de ser algo que também exige de nós certa meditação. O dramaturgo alemão Daniel Cremer levantou algumas questões importantes nas redes sociais, dizendo que preferiria ver uma ação que ajudasse os vivos, sem um espetáculo ao redor dos mortos, com o que ele chamou de “repetição da eterna narrativa dos morituros negros”. Cremer lembrou-se das ações políticas de ativistas gays no auge da “praga” (como muitos se referem à tragédia social e política dos primeiros anos da crise da Aids), quando as cinzas das vítimas da doença eram lançadas nos jardins da Casa Branca por grupos como o ACT UP. Alguns questionam o “gosto” de fazer “arte” com os cadáveres de imigrantes sem nome, outros pedem um debate em torno dos limites da “arte política”.

São questões certamente válidas. Concordo que uma ação de solidariedade aos vivos seria muitíssimo mais desejável, mas os mortos aí estão. Ainda que se trate de uma ação espetacularizada, levando muitos a questionar o quanto de “ego” haveria na ação do coletivo, me impactou uma expressão que o próprio Daniel Cremer usou para questionar a validade da ação, chamando-a de “antigônica”, em referência a Antígona, personagem da tragédia de Sófocles que desobedeceu às ordens explícitas do seu tio, o rei Creonte, para dar enterro a seu irmão. Antígona acaba ela própria morta, enterrada viva por ordem do rei. Uma vez iniciada a tragédia, não há volta. Trata-se de uma sucessão de mortes. Quero pensar na morte destes nossos irmãos no Mediterrâneo como algo que trará consequências para todos os envolvidos. Mas, na tragédia de Sófocles, primeiro é necessária a ação da heroína, que desobedece as ordens da autoridade. Talvez as intenções do coletivo não sejam totalmente puras, e Daniel Cremer esteja correto em questionar se pretendem apenas serem retratados pela imprensa como “salvadores brancos”. Mas algo precisa ser feito para deter a catástrofe que se desenrola no mar que já foi piscina da Europa e hoje está cercado, verdadeiramente, por um muro.

Imigrante eu mesmo, sinto-me às vezes sem saber por onde entrar neste debate. Em abril, quando ocorreu a tragédia dos 400 mortos, escrevi este poema abaixo. Com ele encerro, acreditando na validade da ação do coletivo alemão.

 

Mare Nostrum

“men lower nets, unconscious of the fact that they are desecrating a grave,
and row quickly away”
– Marianne Moore, “A grave”

Estive hoje no banco,
e com hinos,
sacrifícios e libações,
apaziguei os deuses
das finanças.
Estão pagos os impostos,
Angela. Preferiria tê-los
enviado aos gregos,
para lá do Mare Nostrum,
digo, vostrum.
Vossa antiga rua
de mão única
e agora vala
comum que sequer
requer pá, enxada.
Angela, diga-me,
ainda brilham
os diamantes
de Lüderitz?
Esse mundo,
eu sei, é todo
vala comum.
Que o digam
as areias do Namibe
onde jazem hereros
e namaquas.
Quanto a Cameron,
que lhe parecem hoje
os Cameroons?
Seguem retas as réguas
que traçaram, europeias,
eficientes, tão simétricas
linhas por onde passaram
em África e Oriente?
De Bruxelas a Berlim,
tapam-se com mãozinhas
enrugadas os olhinhos
assustados,
já que desde
tataravô e tataravó,
ninguém
mais da família
pôs os pés
naquele continente.
Algum tio-avô, talvez,
engenheiro em Suez.
Nada sabemos do Congo,
mas como são belas
as estátuas de Leopoldo.
Mandatos e protetorados,
Síria, Palestina,
Iêmen, et alia.
Agora, que se virem
na Itália
– se lá chegarem –
como se reviram as coisas
e corpos nas correntes
submarinas,
“neither with volition nor
consciousness”.
Esse mar, que já carregou cruzes,
hoje não suporta lápides,
e limpa-se, como um gato as patas,
sempre pronto para os turistas.

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quarta-feira 17.06.2015 | 12:28

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