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Enrolados na bandeira

Minha intenção era comentar no próprio domingo os chamados protestos da oposição a Dilma Rousseff. Mas fiquei ali, vendo as fotos que chegavam pelas redes sociais, o claro fracasso numérico da tentativa, as faixas que pareciam vir de outro país – não daquele em que centenas de pessoas continuam desaparecidas desde a última ditadura, e aquela eterna resposta de Clarice Lispector à pergunta de Júlio Lerner ressoando na cabeça: “Qual o papel do escritor brasileiro hoje?” – “O de falar o menos possível”.

Não tenho a menor simpatia por Dilma Rousseff, além da que vêm gerando em mim certos leõezinhos de chácara caminhando sob o sol. Precisamos de um processo legal sem jogos políticos, que investigue os crimes e leve TODOS os condenados à cadeia. Mas vivemos em um Estado de direito. Inocentes até que se prove o contrário. Por que são seletivas as prisões? E como levar a sério os que clamam contra a corrupção, mas festejam os nomes de políticos envolvidos em acusações e delações da operação Lava Jato que, no entanto, ainda estão soltos quando outros ligados ao governo estão presos?

Como levar a sério o pedido de impugnação, sem provas de crimes, de uma presidente eleita em uma avenida como a Paulista, vindo provavelmente de eleitores do governador Geraldo Alckmin, ele próprio envolvido em escândalos de corrupção nas licitações do metrô e de manipulação da crise hídrica em São Paulo, e acusado por várias organizações de direitos humanos de ação inconstitucional e criminosa no Pinheirinho? Eu teria muito interesse em conversar com pessoas que votaram em Dilma Rousseff e hoje pedem sua saída. Quanto aos que simplesmente usam a atual situação por não aceitar os resultados da última eleição, como conversar como adultos? Seus ouvidos estão ensurdecidos pelos próprios gritos.

Como conseguem ver este governo como sendo de esquerda? Comunistas com Joaquim Levy à frente da economia? Defendendo um pacote de medidas como as apresentadas por Renan Calheiros? Como podem crer que o Brasil caminha para tornar-se uma Cuba ou Venezuela quando o Congresso Nacional, nas mãos de um crápula como Eduardo Cunha, leva o país a passos de Speedy González a uma versão ainda mais decrépita de uma Itália democrata-cristã?

ateneu

Ilustração de Raul Pompeia para o romance “O ateneu” depois do incêndio da escola

Cresci em um lar que nutria verdadeiro ódio ao PT. À frente de Lula da Silva, o único político capaz de extrair gritos mais furibundos de meu pai ao aparecer na televisão era Leonel Brizola. Jamais fui petista, ainda que tenha votado em Lula em 2002. Minhas críticas ao governo de Dilma Rousseff sempre foram públicas, mas passam longe do que odeiam estes senhores e senhoras (em grande parte brancos e abastados) que se enrolam na bandeira nacional e gritam nas ruas nos últimos meses. Enrolar-se na bandeira nacional porque tem jogo dos pernas de pau, até entendo. Mas, em protesto? Que tipo tacanho de patriotismo é este? Nunca leram Machado de Assis? Luiz Gama? Raul Pompeia? Euclides da Cunha? Lima Barreto? Autores que, ao contrário do tom celebratório dos modernistas de 1922, sempre nos ensinaram a ver com desconfiança e olhos críticos nossos crimes de nacionalidade.

E não havia lugar nestes protestos para uma defesa de seus concidadãos que sofreram outra chacina na periferia de São Paulo, com resultados de balística apontando novamente para a Polícia Militar? Este fim de semana, decidi passar meu tempo retornando a estes autores que mencionei, do período de transição entre Império e uma República forjada em um golpe militar sem apoio popular, sempre do alto para baixo. Não somos republicanos. Jamais o fomos. Eu, como escritor, sigo meu próprio princípio: oposição, sempre, não importa quem está no poder. Fez bem o trabalho? Pois não fez mais que a obrigação. É pago/paga para isso. São nossos funcionários. Assim podemos, escritores, falar de coisas mais interessantes, o pôr-do-sol no Arpoador e a florzinha crescendo ali na esquina da Cardeal Arcoverde com a Teodoro Sampaio. Chorar os pés na bunda. Fez mal o trabalho? Mentiu? Usou a linguagem, nossa ferramenta e bem comunitário para manipular? Estaremos aí para acusar.

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terça-feira 18.08.2015 | 11:23

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Um Andreazza é um Andreazza, ou a Direita Miojo

Há que se começar dando aos mensageiros aquele tradicional e exemplar tratamento em tempos de cidade sitiada. O jornalista Mateus Campos, de jornal O Globo, intitulou sua peça promocional para a editora Record da seguinte maneira: “Editor de nomes conservadores, Carlos Andreazza se firma como voz dissonante do mercado de livros” [O Globo, 31.07.2015]. Talvez seja apenas o hábito de escritores com alguma dose razoável de responsabilidade, o querer que as palavras realmente signifiquem algo. Uma postura desagradável para muitos nos dias de hoje. A que se deveria o uso do adjetivo dissonante, doado tão generosamente por nosso jornalista ao editor? Segundo as palavras do próprio Carlos Andreazza, “havia e há uma imensa demanda reprimida, culpa dos cerca de 50 anos em que a produção editorial brasileira excluiu os pensamentos liberal e conservador de suas prensas”, desta vez ao jornalista Rodolfo Borges, este mostrando-se mais capaz de exercer algum pensamento crítico sobre o que escreve, em seu artigo “A direita brasileira que saiu do armário não para de vender livros”.

Tenho apreço especial pelo adjetivo dissonante. Ele sempre me faz pensar em Federico García Lorca, o fuzilado pela direita espanhola (“pelos esbirros de Franco”, nas palavras de Theodor Adorno), a partir da ideia da “metáfora dissonante” em seu livro El Poeta en Nueva York (1927), como propôs o Grupo Noigandres. Mas a frase “voz dissonante” traz uma memória ainda mais forte: a de ter assistido, no ano 2000, pouco antes de deixar o Brasil, ao espetáculo Vozes Dissonantes, de Denise Stoklos. Nele, a dramaturga, encenadora e performer paranaense traz para o palco e para seu corpo a escrita de Gregório de Matos, do Euclides da Cunha de Os sertões (1902), de João Cabral de Melo Neto. Vozes dissonantes, naquele momento em que o Brasil era capitaneado pela versão perversa de “democratas sociais” que haviam tomado conta da política no Ocidente. A terceira via. O Consenso de Washington que alguns dos “pensadores” de Andreazza por certo gostariam de opor ao grande mal do Foro de São Paulo. Em um momento do espetáculo, Stoklos reencena e reencarna a morte da guerrilheira Iara Iavelberg (1944-1971), morta em um cerco dos agentes de segurança da Ditadura Militar em Salvador. A versão oficial é a de que Iavelberg se suicidou ao ver-se encurralada, escondida em um banheiro. Stoklos, ao fim decide dar-lhe um pouco mais de tempo, um pouco de mais tempo, antes de ser alvejada pelos agentes da subversão da Constituição, os esbirros do regime que instaurara no Brasil a pena de morte extra-oficial, a mesma que ainda paira sobre tantos cidadãos brasileiros nas mãos deste resquício macabro da Ditadura que é a Polícia Militar.

O leitor deste texto talvez esteja se exasperando, crendo que me perdi em digressões. Peço sua confiança por um parco tempo mais. “Dissonante” significa, sabemos, “adj. Que expressa ou ocasiona dissonância: melodia dissonante. Que não combina; desarmônico”, segundo o Houaiss. O Aurélio nos diz ainda “Que não soa bem. Que não fica bem; que não condiz; que destoa. Díssono, dissonoro”.

Já faz um tempo que a vacuidade da linguagem política nacional começou a extrair de nossas palavras qualquer significado tangente. O uso de um adjetivo como dissonante para descrever o (des)serviço de Carlos Andreazza ao pensamento político no país demonstra a vacuidade da linguagem do artigo que o promove, assim como da linguagem usada em sua entrevista pelo neto de Mário Andreazza, político da Ditadura, ou da linguagem de grande parte de seus autores de “pensamento” de direita. A palavra dissonante sofre aqui do mesmo esvaziamento das palavras “situação” e “oposição”, invólucros vazios. Por criticar o governo, seus autores são tomados como vozes dissonantes. É como se os envolvidos no artigo do O Globo jamais tivessem aberto o mesmo jornal nos últimos dez anos, ou se esquecido do tipo de governo que os estados de São Paulo e Rio de Janeiro, onde editora Record está localizada, tiveram nos últimos vinte. Os ideais que grande parte da população destes estados possuem, sua atitude vingativa contra as camadas da população brasileira que veem como ameaçadoras, o eterno “silêncio sorridente de São Paulo” diante dos crimes de Estado, do Carandiru ao Pinheirinho.

Seria ocioso aqui tentar apontar para o próprio esvaziamento da palavra “pensamento” de direita na boca de Carlos Andreazza. O que o garoto do programa da direita hoje no país promove como “pensamento” está em livros do calibre intelectual de Esquerda caviar, da vacuidade mental que é Rodrigo Constantino, e Não é a mamãe, de Guilherme Fiuza. É a direita miojo. Basta aquecer um pouquinha nas mãozinhass suadas das viúvas da ditadura. Até mesmo Kim Kataguiri, o analfabeto político, já foi elencado para o time dos sonhos do “pensamento” de direita de Carlos Andreazza.

Terá sucesso, como já demonstram seus números de venda. Para os atentos, palavras como “dissonante” e “pensamento”, ligados ao seu trabalho editorial, continuarão causando o estranhamento devido. Ambiciosa empreitada a sua, como a Transamazônica. Prevejo que terá o mesmo sucesso, não sem antes causar estragos.

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sexta-feira 14.08.2015 | 05:07

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Escritores em guerra

Poucos acontecimentos históricos podem impactar uma cultura tanto quanto uma guerra. Quando olhamos para a literatura europeia, vemos o quanto os sucessivos e intermináveis conflitos bélicos deixaram sua marca na produção literária dos países do continente, em prosa e poesia. Nesta série de artigos em que venho discutindo as necessidades de consciência histórica por parte de escritores, talvez não haja exemplo mais cru do que a literatura produzida em meio a declarações de guerra e avanços de tropas, enquanto civis são estraçalhados.

Vemos esses testemunhos de horrores, ora celebrando, ora lamentando, desde os tempos em que poetas acompanhavam seus reis em batalha, quando não eram eles próprios senhores de terra em guerra, como o trovador Bertran de Born (1140-1215), até os tempos em que tantos soldados-poetas tombaram entre tiros e explosões, como August Stramm e Wilfred Owen em trincheiras opostas na Primeira Grande Guerra, ou Keith Douglas, morto na Segunda. Os sobreviventes certamente não têm como ignorar o morticínio, a devastação e a destruição, vendo suas vidas e comunidades transtornadas por completo. Penso, por exemplo, em Salvatore Quasimodo, passando da poesia hermética dos primeiros livros à transformação ética e estética de engajamento em livros como Con il piede straniero sopra il cuore (1947, traduções em português incluídas em Poesias, Ed. Record, 1999), assim como o trabalho de sobreviventes na acepção mais nua da palavra, como Primo Levi em Se questo è un uomo (1947, edição brasileira É isso um homem?, Rocco, 2013), Robert Antelme em L’espèce humaine (1947, edição brasileira A espécie humana, Ed. Record, 2013), e Paul Celan em Die Niemandsrose (1963, traduções em português incluídas em Cristal, Iluminuras, 1999), testemunhas dos maiores crimes de guerra do século passado.

Ainda que o Brasil tenha participado da Segunda Guerra e muitos jovens soldados brasileiros tenham perdido a vida na Itália, a experiência do conflito chegou-nos pelas mãos de poetas impactados com as notícias de longe, como Carlos Drummond de Andrade nos poemas de A rosa do mundo (1945) e Murilo Mendes em Poesia Liberdade (1947). O grande conflito internacional em que o Brasil viu seu território invadido deu-se no século 19 com a Guerra do Paraguai, certamente um dos conflitos mais horrendos e sangrentos do continente desde a invasão dos europeus, marcado por crimes de guerra até hoje abafados e esquecidos, em especial por parte de comandantes brasileiros como o Conde d’Eu, e que só entraria realmente no literatura brasileira mais de um século depois, em um romance como Viva o povo brasileiro (1984), de João Ubaldo Ribeiro. A experiência da guerra na literatura brasileira, no entanto, é o estopim de um dos nossos maiores livros: Os sertões (1902), de Euclides da Cunha. Foi através deste antiépico da nossa maior guerra civil que o horror bélico marcou nossas letras.

Nestes dois anos, em que relembramos os dois grandes conflitos mundiais e várias reportagens nos levaram de volta a seus horrores, com reedições dos poemas de guerra de vários soldados, como é a literatura de guerra e antibélica contemporânea? Se estamos discutindo a consciência histórica de poetas e prosadores, como os conflitos atuais têm entrado na literatura? Gostaria de comentar apenas um exemplo, o de uma autora nascida no país que se lançou em dois conflitos eivados de crimes neste novo século: os Estados Unidos. De que maneira as invasões do Iraque em 2003 e do Afeganistão em 2001 entraram em sua literatura? Poderíamos pensar que apenas o cinema vem tratando da questão, em filmes como Hurt Locker (Kathryn Bigelow, 2008) ou American Sniper (Clint Eastwood, 2014), mas a guerra tem entrado também na literatura norte-americana.

O livro que gostaria de comentar foi lançado em 2005, da escritora Juliana Spahr (nascida em 1966), intitulado This Connection of Everyone with Lungs (algo como “Esta conexão de todos com pulmões”). Spahr começa seu livro com as reações aos ataques às Torres Gêmeas no dia 11 de setembro de 2001, numa seção justamente intitulada “Escritos após 11 de setembro de 2001”. Para um americano que viveu os ataques, o título remete imediatamente à experiência de estar na cidade de Nova York durante e nos dias posteriores à tragédia, nos quais o ar da cidade seria tomado por poeira, fumaça e matéria carbonizada. Mas a americana não se limita a uma elegia por seu país. O livro é muito mais. A partir da segunda parte, com textos escritos entre 30 de novembro de 2002 e 27 de março de 2003, todos com datas por títulos, a escritora se lança a uma reflexão e meditação formadas por seu desejo de que os Estados Unidos não invadissem o Iraque. Vivendo no Havaí, onde grande parte das forças da Marinha americana estão localizadas, a escritora descreve – entre a esperança e o desespero – o fluxo de informações desencontradas entre a imprensa e os movimentos militares que ela mesma podia ver forjando-se nas bases de sua ilha. Entre notícias de celebridades, do ônibus espacial Columbia preparando-se para voltar à Terra e de ameças de uma guerra, Juliana Spahr digire-se a um Outro e Outros que ela chama de “beloveds”, queridos, amados, num jogo entre lírica e épica, tais como podemos compreendê-las nos dias de hoje. Abaixo, um trecho do texto datado “2 de dezembro de 2002”:

“Como ocorre toda noite, queridos, enquanto nos virávamos dormindo inquietos, o mundo continuou sem nós.

Vivemos em nosso próprio fuso-horário e há nesse fuso-horário apenas alguns milhões de nós e o mundo por consequência tende a começar e acabar sem nós.

Enquanto nos virávamos dormindo inquietos pelo menos dez ficaram feridos quando uma bomba explodiu em Bombaim e quatro foram mortos na Palestina.

Enquanto nos virávamos dormindo inquietos um armazém de auxílio alimentar foi destruído, ações em venda crescente explodiram, a Austrália fez ameaças de primeiros ataques, houve troca de tiros na cidade de Man, o embaixador da Bielorrússia no Japão desapareceu, um cruzeiro ardeu em chamas, em outro cruzeiro ainda muitos adoeceram, e o Papa fez um discurso contra o racismo.

Enquanto nos virávamos dormindo inquietos talvez J Lo tenha exigido sexo de Ben quatro vezes por semana em um acordo pré-nupcial.

Enquanto nos virávamos dormindo inquietos Liam Gallagher teve uma briga e fãs iracundos reclamaram que “Popstars: The Rivals” era um jogo de cartas marcadas.

Enquanto nos virávamos dormindo inquietos a Corte Suprema concordou em estudar o caso de quotas para minorias em universidades.

Enquanto nos virávamos dormindo inquietos caçadores capturaram esturjões num Mar Cáspio cheio de juncos, que abriga javalis e lobos, e alguns dos residentes do ônibus espacial planejaram seu retorno aos EUA.

Queridos, nosso mundo é isolado e pequeno.”

— Juliana Spahr, This Connection of Everyone with Lungs (tradução minha).

As notícias sobre o retorno do ônibus espacial, que já sabemos de antemão se espatifará na reentrada na Terra, funciona como uma espécie de sinal terrível de que suas esperanças se frustrarão e o país invadirá o Iraque, como realmente ocorre em março de 2003, quando a escritora encerra o livro. Sua mescla de uma voz lírica em meio à catástrofe histórica, que sabemos estar prestes a ocorrer enquanto ela medita com seus “beloveds”, torna o livro ainda mais pungente. É algo da mescla que vemos, numa clave bastante distinta, é claro, no grande poema lírico e épico de Oswald de Andrade, “Cântico dos cânticos para flauta e violão”, em que suas declarações de amor à mulher mesclam-se ao canto contra a Segunda Guerra que se desenrolava.

Para mim, tem servido como um exemplo de como um escritor pode manter-se ligado a sua comunidade, atento a seus dilemas, sem lançar-se a meros discursos de palanque, e mantendo-se fiel a sua voz, sem gritos de ordem, mas apenas um murmúrio de solidariedade a todos – todos – com quem compartilhamos oxigênio, nesta nossa conexão de todos com pulmões.

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sexta-feira 31.07.2015 | 08:33

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Resta-nos rir

A sátira, tanto entre poetas do Ocidente como do Oriente, sempre foi uma das armas à sua disposição contra os absurdos políticos e sociais de suas épocas. Das peças de Aristófanes aos epigramas de Marco Valério Marcial na Roma do primeiro século de nossa era; de Abū Nuwās, na Bagdá do século 8, aos clérigos europeus beberrões escrevendo em latim no século 12 e conhecidos como Goliardos; de Boccaccio e Rabelais aos poetas do nonsense – como os ingleses Edward Lear e Lewis Carroll, ou o alemão Christian Morgenstern –, assim como aos dadaístas Kurt Schwitters e Hans Arp no século 20 – o riso cáustico seguiu sendo uma arma. Se não se pode derrubar um tirano, pode-se ao menos garantir que ele pareça ridículo pelos séculos vindouros. Tiranos de todo o mundo sabem o perigo que correm nas bocas de poetas. César não estava feliz com as sátiras de Catulo contra ele, e, por um poema satírico contra Stalin, o russo Óssip Mandelshtam morreria no Gulag.

A literatura lusófona brasileira nasce entre as pregações de Antônio Vieira e o riso de Gregório de Matos. Sua poesia satírica é o que há de melhor, funda nossa literatura no tom de escárnio, de forma moderna, misturando o português a palavras indígenas, começando a criar uma linguagem poética brasileira.

Define a Sua Cidade
Gregório de Matos

De dois ff se compõe
esta cidade a meu ver:
um furtar, outro foder.

Recopilou-se o direito,
e quem o recopilou
com dous ff o explicou
por estar feito, e bem feito:
por bem digesto, e colheito
só com dous ff o expõe,
e assim quem os olhos põe
no trato, que aqui se encerra,
há de dizer que esta terra
de dous ff se compõe.

Se de dous ff composta
está a nossa Bahia,
errada a ortografia,
a grande dano está posta:
eu quero fazer aposta
e quero um tostão perder,
que isso a há de perverter,
se o furtar e o foder bem
não são os ff que tem
esta cidade ao meu ver.

Provo a conjetura já,
prontamente como um brinco:
Bahia tem letras cinco
que são B-A-H-I-A:
logo ninguém me dirá
que dous ff chega a ter,
pois nenhum contém sequer,
salvo se em boa verdade
são os ff da cidade
um furtar, outro foder.

A Gregório de Matos, viriam a se juntar outros, como Tomás Antônio Gonzaga – cujas Cartas Chilenas ridicularizavam Luís da Cunha Meneses, o então governador de Minas Gerais – e, mais tarde, alguns dos nossos melhores autores do século 19, como os poetas Sapateiro Silva, Luiz Gama e o Sousândrade de “O Inferno de Wall Street”; o dramaturgo Qorpo-Santo; e os romancistas Machado de Assis e Raul Pompeia, cada um à sua maneira.

No século 20, a sátira brasileira assumiu várias formas: de um romance como Triste Fim de Policarpo Quaresma (1915), de Lima Barreto, ao Oswald de Andrade da peça O Rei da Vela (1937), do romance Memórias Sentimentais de João Miramar (1924) e de tantos poemas. As sandices políticas do país sempre estiveram na mira de nossos autores. No pós-guerra, tivemos lições de sátira com Décio Pignatari e seu “beba coca cola”, com Sebastião Nunes e seu Elogio da punheta, e com Glauco Mattoso e seu Jornal Dobrabil. Podemos chamar esta de a tradição mais antiga da literatura lusófona no Brasil.

Nos últimos anos, após um período em que a sátira não foi tão valorizada – como nos anos 90, quando me pareceu haver uma preocupação demasiada com o sublime –, escritores voltaram a usar seus textos contra os crimes e absurdos do território. Em romances como Glória (Rio de Janeiro: 7Letras, 2012), de Victor Heringer, e Opisanie świata (São Paulo: Cosac Naify, 2013), de Veronica Stigger. Em poemas de Ricardo Aleixo, Pádua Fernandes, Angélica Freitas, Marcus Fabiano Gonçalves, Fabiana Faleiros, Dirceu Villa, William Zeytounlian e vários outros, essa tradição do riso contra o raso e roto que vemos desde Gregório de Matos reafirma-se. Trata-se da tradição de expor nossas contradições (o Brasil é um oxímoro com Marinha, Exército e Aeronáutica), que volta à cena com grande força, e com respaldo das ruas desde as Jornadas de Junho de 2013. E com uma imprensa disposta a turvar as águas do debate político, vivemos um momento em que precisamos desesperadamente dar ouvidos a estes sátiros e seus risos cáusticos.

Conheço vocês pelo cheiro

Ricardo Aleixo

Conheço vocês
pelo cheiro,

pelas roupas,
pelos carros,

pelos aneis e,
é claro,

por seu amor
ao dinheiro.

%

Por seu amor
ao dinheiro

que algum
ancestral remoto

lhes deixou
como herança.

Conheço vocês
pelo cheiro.

%

Conheço vocês
pelo cheiro

e pelos cifrões
que adornam

esses olhos que
mal piscam

por seu amor
ao dinheiro.

%

Por seu amor
ao dinheiro

e a tudo que
nega a vida:

o hospício, a
cela, a fronteira.

Conheço vocês
pelo cheiro.

%

Conheço vocês
pelo cheiro

de peste e horror
que espalham

por onde andam
– conheço-os

por seu amor
ao dinheiro.

%

Por seu amor
ao dinheiro,

deus é um
pai tão sacana

que cobra por
seus milagres.

Conheço vocês
pelo cheiro.

%

Conheço vocês
pelo cheiro

mal disfarçado
de enxofre

que gruda em
tudo que tocam

por seu amor
ao dinheiro.

%

Por seu amor
ao dinheiro,

é com ódio
que replicam

ao riso, ao gozo,
à poesia.

Conheço vocês
pelo cheiro.

%

Conheço vocês
pelo cheiro.

Cheiro um e
cheirei todos

vocês que só
sobrevivem

por seu amor
ao dinheiro.

%

Por seu amor
ao dinheiro,

fazem até das
próprias filhas

moeda forte,
ouro puro.

Conheço vocês
pelo cheiro.

%

Conheço vocês
pelo cheiro

de cadáver
putrefato que,

no entanto,
ainda caminha

por seu amor
ao dinheiro.

Data

quinta-feira 30.07.2015 | 05:28

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Ainda sobre escrita e engajamento

Em meu último texto neste espaço, falei sobre algo bastante pessoal, que chamei de crise de crença nas possibilidades da literatura como campo de intervenção política [“A política e a poesia são demais para um só homem”, DW Brasil, 14/07/2015]. Um par de amigos fez algumas objeções em mensagens privadas, então busco apenas esclarecer alguns pontos a seguir.

Ao trazer o exemplo de George Oppen para esta conversa, com seu abandono da poesia por mais de 20 anos para engajar-se no ativismo político, queria partir justamente de um exemplo extremo de um poeta que se viu impelido à participação mas não parecia acreditar ser possível fazer isso através da escrita, por não querer seguir o caminho que vários poetas mais velhos ou de sua geração trilharam: o da poesia engajada, como vimos em W.B. Yeats, Vladimir Maiakóvski, Bertolt Brecht, Carlos Drummond de Andrade, ou W.H. Auden, para citar alguns dos mais famosos, e que resolveram estas questões das mais diversas maneiras. Sua escolha pelo abandono da escrita é que o torna um fantasma para mim.

Encerrar o texto com a invocação de vários heróis pessoais, poetas e prosadores que trabalharam em meio aos dilemos políticos e sociais de seus tempos – como Carlos Drummond de Andrade escrevendo em pleno Estado Novo e Segunda Guerra; James Baldwin em tempos de segregação racial nos Estados Unidos; ou Pier Paolo Pasolini em sua elegia a Gramsci e, mais tarde, em seus filmes, poemas e artigos em tempos de Brigada Vermelha e Democratas Cristãos na Itália – era minha forma de seguir crendo que o escritor pode e deve manter-se desperto em seu momento histórico. Minha crença nisso segue fincada no fato de que nossa matéria prima são a linguagem e sua encarnação na língua específica de uma comunidade, aquela que é usada pelo escritor. Não se trata de uma obrigação de engajamento partidário, ou de que todo texto a sair do tinteiro de um autor tenha que lidar exclusivamente com as questões políticas de seu tempo. Eu próprio escrevi mais poemas de amor do que provavelmente deveria. Os exemplos eram tão diversos para demonstrar o quanto aqueles autores tinham de liberdade estética, ao mesmo tempo que pareciam conscientes do seu contexto histórico e, a meu ver, mantinham-se atentos a certos ditames éticos.

Uma citação frequente nas discussões sobre a inutilidade da poesia diante dos dilemas políticos de seu tempo é a pergunta do poema de Friedrich Hölderlin: “Para que poetas em tempos indigentes?”, e a resposta sempre me pareceu vir embutida na pergunta: justamente porque são tempos indigentes, ou tempos de penúria, na outra tradução frequente do “Wozu Dichter in dürftiger Zeit”. Não há por que estabelecer uma competição de penúria entre as épocas. Se estamos hoje envoltos no que nos parece um momento de obscurantismo, racismo, violência terrível entre brasileiros, outros poetas lidaram com seus próprios tempos indigentes, suas penúrias que talvez lhes parecessem intransponíveis. Invocar estes homens e mulheres do passado é apenas uma maneira de buscar aprender com eles, ao meditar sobre como lidaram com seus próprios tempos indigentes.

"Trovas burlescas", de Luiz GamaComo Luiz Gama (1830-1882) – filho da grande Luísa Mahin, que esteve envolvida na articulação de revoltas como a dos Malês (1835) e a Sabinada (1837-1838) – seguiu escrevendo seus impiedosos poemas satíricos e artigos, enquanto a seu redor via homens e mulheres como ele e sua mãe sendo tratados como animais nas mãos de uma sociedade escravocrata. Grande figura do Movimento Abolicionista brasileiro, morreu sem ver o fim da escravidão. Tempos indigentes, os seus, os mesmos de seu contemporâneo Cruz e Sousa, um dos maiores poetas do século 19, que tendo vivido para ver a Abolição, seguiu mesmo assim sendo tratado como animal por uma sociedade agora apenas pós-escravocrata, mas ainda inerentemente racista.

São inúmeros os nossos problemas, e tantos deles são centenários. No próximo artigo, tentarei tratar de alguns autores contemporâneos e obras que lidam com nossos tempos indigentes.

Data

sexta-feira 24.07.2015 | 05:45

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