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Literatura e Segunda Guerra

Esta semana foi o aniversário de 75 anos da invasão da Polônia pela Alemanha, em 1° de setembro de 1939, dando início à Segunda Guerra Mundial, ou, como querem alguns historiadores, a segunda prestação da Grande Guerra. O conflito mais definidor do último século, ainda vivemos em muitos aspectos sob suas consequências. O mundo que emergiu da Primeira não era o mesmo, e certamente não era este o que por sua vez emergiu da Segunda. Suas marcas estão também na Literatura, tanto a que foi produzida no período, como a que se seguiu.

Não haveria espaço aqui para tratar da miríade de obras que estão, direta ou indiretamente, ligadas à Segunda Guerra Mundial. O que apresento aqui são notas muito pessoais sobre algumas obras, oriundas dela, que mais me causaram impacto, e que gostaria de recomendar, caso haja alguma surpresa no que se segue.

A escrita dos campos

amérySeria necessário um ensaio denso apenas para falar sobre a escrita dos sobreviventes dos campos, ou o que se convencionou chamar de Literatura do Holocausto. Já se falou muito sobre a invectiva de Theodor W. Adorno, a de que, após Auschwitz, escrever poesia seria um ato de barbárie. Talvez a resposta mais célebre seja a obra do poeta romeno de língua alemã Paul Celan, seu gesto constante de dar voz aos mortos. É importante lembrar, no entanto, que o próprio Celan fala em um de seus poucos textos em prosa sobre o horror que lhe causava ler escritores que seguiram produzindo textos como se nada estivesse acontecendo (ou houvesse acontecido), retomando sua escrita ciosa da Grande Beleza, sem debruçar-se sobre o abismo da Catástrofe. Daí, a fratura da santíssima sintaxe alemã que vemos na obra de Celan. Em seu poema mais famoso, Celan escreve (a tradução é minha):

Leite negro da madrugada nós te bebemos à noite

nós te bebemos de manhã e ao meio-dia nós te bebemos à tardinha

nós bebemos e bebemos

Certo homem habita a casa e brinca com víboras que escreve

que escreve quando escurece à Alemanha teu cabelo doirado Margarete

Teu cabelo cinzento Sulamita nós cavamos nos ares uma cova onde espreguiçar-nos

Ele grita pás mais fundo no miolo da terra vós e vós cantai e tocai

ele alcança o ferro na cintura agita-o nos ares seus olhos são azuis

mais fundo com as pás mais alto com os violinos chacoalhemos os esqueletos

(Paul Celan, “Fuga da morte”, excerto.Tradução de Ricardo Domeneck)

Na prosa, um dos grandes nomes dentre os escritores sobreviventes daquele horror é o de Primo Levi, que sobreviveu a Auschwitz. Seu livro de memórias É isso um homem? (Se questo è un uomo, 1947) foi um dos primeiros textos sobre as trevas dos campos, no mesmo ano de publicação de A espécie humana (L’espèce humaine), de Robert Antelme, que sobrevivera a Buchenwald. Muitos outros viriam, como Além da culpa e expiação  (Jenseits von Schuld und Sühne, 1964), de Jean Améry, que passara também por Auschwitz e Buchenwald, sendo libertado em 1945 em Bergen-Belsen. Améry tem uma das citações mais marcantes (e, de certa forma, condenadora de toda a nossa noção de civilização) sobre a experiência dos campos:

“Uma leve pressão na mão que segura os instrumentos da tortura basta para transformar o outro, juntamente com sua cabeça, na qual estejam talvez armazenados Kant e Hegel, e todas as nove sinfonias, e O Mundo Como Vontade e Representação– em um histérico leitão guinchante no abatedouro. O próprio torturador pode então, quando tenha executado tudo, extinguindo o que restava de espírito na vítima, fumar um cigarro ou tomar o café da manhã, ou, se tiver vontade, ensimesmar-se com a leitura de O Mundo Como Vontade e Representação.” — Jean Améry.

De Primo Levi, eu recomendo especialmente o excelente Se não agora, quando? (Se non ora, quando?, 1982), que conta a história pouco conhecida dos judeus que pegaram em armas e se uniram aos partisans na resistência antinazista.

Um autor que era pouco conhecido no Brasil, mas que passa agora a ser traduzido, é o franco-egípcio Edmond Jabès. A Lumme Editor lançou no ano passado um volume traduzido por Eclair Antonio Almeida Filho e Amanda Mendes Casal, e promete lançar toda a obra de Jabès no Brasil até 2017.

Jabès é um escritor fascinante, e é muito interessante pensá-lo ao lado de Celan. Suas obras são muito distintas, mas é como ver duas pontes paralelas sobre o abismo. Cultuado na França e nos Estados Unidos, tem um dos projetos literários mais belos da língua francesa, e também mais estranhos e difíceis, desde Francis Ponge. Ainda que tenha publicado também volumes de poemas, seus livros mais misteriosos são de difícil classificação, séries de diálogos entre rabinos imaginários que buscam a recuperação da autoridade do Livro. É uma leitura essencial, não apenas para poetas ou pessoas interessadas na história da Segunda Guerra e da Shoah, mas por seu comovente trabalho de salvação da e através da linguagem.

Por fim, sinto-me impelido a falar de um dos meus poetas favoritos, que não sobreviveu aos campos: o húngaro Miklós Radnóti (1909 – 1944). Autor de poemas luminosos antes da Guerra, tradutor de poetas franceses como Rimbaud, Mallarmé e Apollinaire, seus últimos poemas são documentos literais do massacre. Forçado a unir-se ao regimento judeu do exército húngaro, mas desarmado (por ser judeu), acabou na minas de Bor. Com o avanço do exército de Tito, foi forçado a uma das infames marchas da morte. Escrevia seus últimos poemas numa caderneta, lutando ao mesmo tempo pela sobrevivência na marcha. Segundo testemunhas, foi executado por um miliciano bêbado, no início de novembro de 1944, por “ficar escrevinhando.” Seu corpo foi mais tarde reconhecido, ao ser exumado em uma vala comum, por encontrarem no bolso do seu casaco a caderneta com seus últimos poemas.

Prosa e poesia de guerra

keith douglasO número de trabalhos em prosa baseados na Guerra é muito grande. Vou me referir a dois autores, especificamente: o norte-americano Joseph Heller e o russo Vasily Grossman. O primeiro, Heller, deu-nos uma das obras mais estranhas e singulares do pós-guerra: o romance Catch-22 (1961), no qual expõe, de forma satírica e inteligentíssima, os próprios absurdos da mentalidade militarista, da máquina de guerra. O segundo, Grossman, foi correspondente de guerra para jornais soviéticos e deixou-nos alguns dos relatos mais marcantes sobre o dia a dia das batalhas. Tem excelentes contos, mas o romance que fincou seu nome no imaginário mundial é Vida e destino, escrito na década de 50 mas só publicado na década de 80. Grossman morreu acreditando que o livro havia sido destruído pelos censores do Kremlin, e o livro sobreviveu por ter sido levado para fora do país em microfilmes pelo poeta Semyon Lipkin.

Quanto à poesia, no aniversário do início da Primeira Guerra, escrevi para a Deutsche Welle Brasil um artigo em que discutia a literatura produzida durante o conflito de 1914 – 1918, intitulado “A literatura na Primeira Guerra Mundial”, publicado no caderno de cultura da Deutsche Welle Brasil no dia 2 de maio deste ano. Ali discuto como a relação de poetas com a guerra muda a partir dos massacres da Primeira. Muitos escreveram com fervor patriótico ainda naquele momento, talvez ainda tomados pela tradição épica da poesia europeia. Com a Segunda Guerra, a mudança já havia sido completada. Poetas entregam-se ao lamento sobre os despojos e a sátira contra seus Governos. Um exemplo é o britânico Keith Douglas (1920 – 1944), morto durante uma batalha, mas não sem antes deixar poemas extremamente sardônicos e impactantes sobre a vida nas trincheiras.

Segunda Guerra Mundial e o Brasil

murilo mendesO Brasil de Getúlio Vargas, relutantemente, entrou na Segunda Guerra em 1942, quando submarinos alemães afundaram navios brasileiros no Atlântico, acredita-se que em represália à adesão do Brasil aos compromissos da “Carta do Atlântico”, o que encerrava a suposta neutralidade brasileira no conflito. Um contingente de 25.000 soldados brasileiros foram enviados para os campos de batalha na Itália.

A guerra não deixou marcas na prosa brasileira, mas afetou intensamente o espírito e a produção de três grandes poetas modernistas: Oswald de Andrade, Murilo Mendes e Carlos Drummond de Andrade.

O belíssimo “Cântico dos cânticos para flauta e violão” (1945), de Oswald, traz para o seu foro íntimo a tragédia mundial. Em um ensaio, Haroldo de Campos chega a traçar paralelos entre esta lírica engajada de Oswald de Andrade e a de outros poetas internacionais, como o alemão Bertolt Brecht e o russo Vladimir Maiakóvski. Em seu A Rosa do Povo, também de 1945, Carlos Drummond de Andrade publicou poemas como “Com o russo em Berlim”, “Carta a Stalingrado”, “Visão 1944” e “Telegrama de Moscou”.

Já Murilo Mendes, com sua dicção característica, publicou em 1947 um de seus livros mais importantes, Poesia Liberdade, que se encerra com um dos melhores poemas da modernidade brasileira, “Janela do caos”, com sua linguagem fragmentária e assustadora, sobre a tragédia que se abatia no mundo.

Cai das sombras das pirâmides
Este desejo de obscuridade.
Enigma, inocência bárbara,
Pássaros galopando elementos.
Do fundo céu
Irrompem nuvens eqüestres.
Onde estão os braços comunicantes
E os pára-quedistas da justiça?
Vultos encouraçados presidem
À sabotagem das harpas.

(Murilo Mendes, “Janela do caos”, excerto)

O pós-guerra, sempre anteguerra

Se disse no início deste texto que a sombra da Segunda Guerra ainda paira sobre nós, com consequências que se acumulam, se entrelaçam, talvez o mais eloquente escritor desta sombra seja o alemão W.G. Sebald. Ainda não me recuperei da leitura, feita há dois anos, de seu livro Os Anéis de Saturno (Die Ringe des Saturn, 1995). Em minha opinião o maior prosador dos últimos 25 anos, ao lado de Roberto Bolaño, o alemão começou a  publicar tarde, e seus poucos livros antes de sua morte prematura são o testemunho de nossa vida sob a sombra da guerra, escondendo-nos do sol escaldante da verdade de nossa conivência cotidiana com os muitos massacres que nasceram com ela.

Data

quinta-feira 04.09.2014 | 14:45

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Escrever em outra língua

beckettFiz esta semana uma leitura em Berlim, numa série dedicada aos escritores de língua estrangeira da cidade, mas basicamente formada pela cena literária anglófona. Como a maior parte do público não fala nem português nem alemão, fui convidado a ler em inglês. Não havendo muitas traduções de meus poemas para a língua, decidi ler basicamente os textos que eu havia escrito originalmente em inglês. A experiência me levou a pensar em várias coisas que poderia comentar aqui neste espaço.

Em primeiro lugar, a cena literária internacional em Berlim: sabemos que a cidade atraiu muitos escritores à época da República de Weimar. Paris não monopolizou a atenção literária europeia no entreguerras, mesmo que o tenha feito antes da Grande Guerra. Na década de 20, poetas e prosadores como os ingleses W.H. Auden e Christopher Isherwood passaram por aqui, assim como muitos exilados russos após a vitória bolchevique na Guerra Civil. Um deles, o grande crítico Viktor Chklovsky, escreveu em Berlim um de meus livros favoritos, Zoo, ou Cartas Não de Amor (1922), no qual fala muito sobre a cena de émigrés russos na cidade. Na década de 20, havia dezenas de editoras dedicadas à literatura em língua russa na cidade. Além de Chklovsky, autores como Vladimir Nabokov, Andrey Bely, Marina Tsvetáieva, Vladislav Khodasevich e Nina Berberova viveram em Berlim.

A cena literária internacional hoje, em Berlim, é dominada pela língua inglesa. Mas há pequenas comunidades de autores hispano-americanos, brasileiros e russos, entre muitos outros. No momento, estou organizando uma antologia dedicada a esta cena internacional com textos de autores de diversos países, como Cia Rinne, Hanne Lippard, Travis Jeppesen, John Holten, Christian Hawkey, Pontus Ahlkvist, Luke Troynar, Stine Omar, Pär Thörn, Shane Anderson, Maya Kuperman, Érica Zíngano e vários outros. São poetas de diversos países e línguas. As cenas não se encontram, não há tantas conexões como deveria haver. Alemães não frequentam tanto os americanos, que por sua vez não frequentam os hispânicos, e assim por diante. Ao contrário da cena das artes visuais, que prescinde mais facilmente da língua, os escritores ainda se organizam tribalmente por idioma. O que talvez seja normal, ainda que não necessário.

Mas a segunda coisa que gostaria de comentar, e que dá título a este texto, é o fato de também compor textos em inglês, além do português. Paulo Leminski dizia (e às vezes menciono isso em leituras aqui em Berlim) que “em termos planetários, escrever em português e ficar calado é mais ou menos a mesma coisa.” Quando primeiro cheguei a Berlim, escrever em inglês foi uma necessidade, primeiramente por ter sido convidado por artistas visuais alemães para colaborações, como o fotógrafo Heinz Peter Knes, com quem colaborei algumas vezes, ou o jovem artista visual Philip Zach e, hoje em dia, o músico Markus Nikolaus. Eles precisavam entender o texto, portanto em vez de recorrer a traduções, decidi escrever diretamente em inglês. É claro que estes textos acabam por ser muito diferentes do meu trabalho em português, no qual tenho tanta experiência emocional, mas toda língua é uma caixa de ferramentas diferente, e posso em inglês fazer certos jogos de linguagem que são distintos em português. De certa forma, esta experiência não é muito distinta daquela que tiveram os poetas viajantes da Idade Média, os trovadores, que por viajarem de corte em corte para ganhar seu pão, compunham suas canções (alguns deles) em várias línguas. Isso tudo se deu antes da ascendência da noção de tradição nacional, que se tornou hegemônica especialmente após os românticos. Os poucos textos que compus em espanhol, por exemplo, foram feitos especialmente para performances na Argentina e na Espanha.

No “trovadorismo contemporâneo”, com os poetas-cantores de hoje, é normal que estrangeiros componham em inglês para alcançar um público maior. Ninguém se espanta que Björk ou Karin Dreijer Andersson (The Knife/Fever Ray) escrevam suas letras em inglês, e não islandês ou sueco, respectivamente. Na literatura, apesar da história da literatura do século 20, com autores que trocaram de língua, como Nabokov, ou escreveram seus textos em duas línguas, como Beckett, ainda causa certo estranhamento para algumas pessoas que um escritor trabalhe em mais de uma língua. Mas isso vem se tornando cada vez mais frequente. Pode-se lamentar que a língua do Império, o inglês, se torne ainda mais hegemônica por conta disso, mas um poeta hoje viaja, como há tantos séculos, para ganhar seu pão em cortes distintas, com línguas e públicos distintos. Talvez haja também ganho nisso.

Data

segunda-feira 01.09.2014 | 08:33

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