Recomendações pontuais
No último texto, falei sobre livros pouco conhecidos no Brasil e que dão uma ideia de questões que ainda movem a cultura da Alemanha hoje, desde livros da década de 1920 a obras deste século e autores vivos. Vou tentar neste texto fazer algumas recomendações pontuais, sem discorrer demais (como é meu hábito) sobre elas. Algumas serão já, com certeza, conhecidas dos que acompanham as artes da Alemanha, mas espero poder surpreender com uma ou outra coisa os especialistas. De qualquer forma, há trabalhos aos quais sempre vale a pena voltar. Neste texto, falarei sobre cinema e música.
No cinema: falei no texto anterior sobre Alemanha no outono (1977) e o documentário Black Box BRD (2001). Quem é o cineasta alemão mais conhecido no Brasil? Eu apostaria que é Wim Wenders, seguido de Rainer Werner Fassbinder. O que vem correndo neste século? Antes de deixar o Brasil, sei que a comédia Adeus, Lênin! (Good bye, Lenin!, 2003), de Wolfgang Becker, havia tido bastante público, e é um filme realmente bom. Tratando de forma muito distinta não da transição entre Alemanha dividida e Alemanha unificada, mas da ditadura comunista antes da Queda do Muro é A Vida dos Outros (Das Leben der Anderen, 2006), de Florian Henckel von Donnersmarck, e conhecido no Brasil por ter sido premiado com o Oscar de melhor filme estrangeiro. Entre os dois, um dos filmes mais discutidos por aqui foi a produção austríaca/alemã com o bizarro título brasileiro Os Edukadores (Die fetten Jahre sind vorbei, 2004), de Hans Weingartner. O filme trata do desengano de uma Alemanha rica mais completamente entregue a uma vida de indolência e apatia política. Um filme importante por tratar de uma questão premente na Alemanha, a imigração de trabalhadores de outros países, é O Albanês (Der Albaner, 2010), de Johannes Naber, que ganhou o prêmio Max Ophüls. Talvez seja, ao lado de A Vida dos Outros, meu filme alemão favorito dos últimos anos. Também lançado no Brasil, tratando da relação entre alemães e turcos, a maior comunidade de imigrantes da Alemanha, é Contra a parede (Gegen die Wand, 2004), de Fatih Akin. Um grande filme. Outras recomendações: Nirgendwo in Afrika (2001), de Caroline Link; Was nützt die Liebe in Gedanken (2004), de Achim von Borries; Requiem (2006), de Hans-Christian Schmid; Jerichow (2008), de Christian Petzold; Schlafkrankheit (2011), de Ulrich Köhler; e ainda Freier Fall (2013), de Stephan Lacant. Eu me concentrei em diretores alemães. Do contrário, recomendaria as fimografias completas dos austríacos Michael Haneke e Ulrich Seidl.
Na música: brasileiros conhecem os grandes grupos alemães dos anos 1970 e 80, como Kraftwerk, Can, Tangerine Dream, Neu!, Faust, Ash Ra Tempel e Amon Düül. Talvez a mais popular e influente, ao menos na Alemanha, tenha sido Ton Steine Scherben, com Rio Reiser à frente, um cantor-compositor comparável em importância na Alemanha a Chico Buarque ou Caetano Veloso no Brasil. Como tal trabalho depende da compreensão das letras, não é difícil perceber por que Rio Reiser jamais se tornou um nome muito conhecido fora da Alemanha. Nos anos 1980, especificamente, o punk e o industrial de bandas como Malaria!, Palais Schaumburg, DAF e Die Tödliche Doris uniram-se ao que vinha ocorrendo na Inglaterra. Da época, o Einstürzende Neubauten segue ativo e influente. Dos anos 90, a banda alemã mais conhecida e que chegou a um público internacional foi Mouse on Mars. Mas outras bandas seguiram o caminho de experimentação das duas décadas anteriores, como Kreidler e outros artistas que começaram no final dos anos 90 e foram se tornando mais conhecidos neste século, como Apparat, T.Raumschmiere e Modeselektor. Não sei quantos destes são conhecidos dos leitores desse texto. NO incício deste século, as bandas mais conhecidas da Alemanha iam de um duo pop como Stereo Total à banda de punkcore Surf Nazis Must Die!, do vocalista Florian Pühs – mas ambas pertencem a nichos bastante específicos. Seguem então alguns nomes e links de bandas e produtores ativos hoje, das mais variadas idades e estilos:
Perera Elsewhere
Lea Porcelain
Moderat (Apparat + Modeselektor)
Pantha du Prince
Tensnake
Ziúr
Sizarr
Crooked Waves
Ausschuss
Alle Farben
mobilegirl
Mechatok
Niclas Hille
Alemães no Brasil, hoje
No Brasil, tende-se a ler os alemães mais noturnos, de uma veia mais mística, como Novalis, Hölderlin e Rilke [“Autores alemães e sua influência no Brasil“, DW Brasil, ‘Contra a Capa’, 10.07.2014]. O grande romancista de língua alemã conhecido no Brasil é Thomas Mann, e talvez A Montanha Mágica (1924) siga sendo para leitores brasileiros o grande romance modernista alemão. Thomas Mann fez parte de um Modernismo Internacional que se entregou a uma escrita alegórica, muito marcada tecnicamente ainda pela prosa do século XIX. Isso desaguaria na escrita do outro autor alemão conhecido no Brasil, Günter Grass – também ele todo alegórico.
Mas existem outros lados e outras alas da escrita alemã. André Vallias fez-nos uma contribuição inestimável ao traduzir Heinrich Heine para o português da forma como o fez. Gosto de pensar em Heine como um dos patronos desta ala da literatura em língua alemã, a mais terrena, com os pés no chão – e menos entregues a alegorias.
Em 2009, a Martins Fontes lançou no Brasil uma nova tradução do outro grande romance modernista alemão: Berlin Alexanderplatz (1929), de Alfred Döblin. Juntos, o romance de Mann e o de Döblin mostram, com técnicas distintas, o desastre que se avizinhava após a Primeira Guerra Mundial. Berlin Alexanderplatz é, para muitos, um romance mais moderno em sua escrita, e, assim como Mann desaguaria em Grass, creio que Döblin desagua em outros autores, desconhecidos no Brasil, como Wolfgang Koeppen e seu Tauben im Gras (Pombas na grama, 1951), que também usa uma técnica de montagem em sua escrita.
Döblin poderia ser chamado do primeiro autor da „literatura dos escombros“, já no entreguerras, antes desta expressão surgir para designar autores do pós-guerra como os prosadores Alfred Andersch e Heinrich Böll ou o poeta Günter Eich. Deste grupo da “literatura dos escombros”, um dos autores mais respeitados na Alemanha hoje é Arno Schmidt, que ainda aguarda uma recepção maior no Brasil.
Mas se há algo que me alegra é o fato de W. G. Sebald já ter sido amplamente traduzido no Brasil e ter encontrado eco entre autores contemporâneos nossos, como Victor Heringer, que escreveu uma série de comentários sobre o romance Austerlitz (2001). Sei que pareço obcecado com Sebald, mas seu caso é exemplar demais em todos os sentidos, e a recepção de sua obra continua me chocando: ainda razoavelmente obscuro em seu próprio país, talvez seja hoje, justamente, o autor alemão mais reconhecido fora da Alemanha. A Companhia das Letras lançou vários volumes, como Os anéis de Saturno, Austerlitz, Os emigrantes, Vertigem e Guerra aérea e Literatura.
Este último livro talvez explique a “obscuridade” de Sebald na Alemanha. Pois é possível que não se trate de desconhecimento de sua obra, mas do incômodo que ela traz a uma Alemanha que gostaria de acreditar já ter exorcizado os demônios do passado. Sebald enfia o dedo na ferida. Como é descrito o ensaio na página da Companhia das Letras, o autor trata de um “recalque do trauma nazista, com os sentimentos de culpa e humilhação durante o período de frenética reconstrução material do país que ficara em ruínas depois da guerra. Completa o volume um estudo sobre o escritor alemão Alfred Andersch, tomado por Sebald como caso exemplar do intelectual que teria se preocupado mais em reescrever o seu passado e retocar a sua imagem moral do que descrever o que de fato ocorreu durante o Terceiro Reich.”
Essas acusações retornam no trabalho, por exemplo, de um jovem poeta como o berlinense Max Czollek, também judeu como Sebald, que escreve hoje a partir de uma caça a demônios que seguem se escondendo sob os tapetes do país.
Quando se pensa no tom distinto das literaturas alemã e austríaca no pós-guerra, é necessário lembrar-se dos destinos diferentes dos dois países após 1945. A Alemanha estava em ruínas, e passava pelo processo de desnazificação, a fórceps, de suas instituições. A Áustria que, segundo autores como Thomas Bernhard, havia confortavelmente se colocado ao lado das “vítimas do nazismo”, apesar de seu passado colaboracionista, atrairia maior ira de seus escritores, como o próprio Bernhard, ou mais jovens, como Peter Handke. Isso tudo é muito importante para compreender um período de convulsões na Alemanha como os anos 1960/1970, com grupos como a Facção do Exército Vermelho em atividade.
Sobre algumas das consequências do que escreve Sebald, recomendo dois documentários excelentes: o filme coletivo Deutschland im Herbst (Alemanha no outono, 1977), com episódios dirigidos por Rainer Werner Fassbinder, Volker Schlöndorff e Alexander Kluge, entre outros, e também o documentário Black Box BRD (2001), de Andres Veiel, que segue o destino de uma das últimas vítmas de um atentado da Facção do Exército Vemelho, o banqueiro Alfred Herrhausen, e o último membro da RAF a ser morto pela polícia, o jovem Wolfgang Grams. O diretor nos apresenta uma radiografia das fraturas na sociedade alemã em plena década de 80, ainda não curadas, e que talvez tenham apenas se agravado após a Reunificação.
Morreu o editor português André Jorge, amigo de poetas
A língua perdeu um amigo fiel e apaixonado. Poetas perderam um aliado corajoso. André Jorge morreu esta manhã em Lisboa, o editor e fundador da Livros Cotovia, que trouxe a lume tantos volumes bonitos. Poetas estrangeiros, como Paul Celan, Cesare Pavese, Jaime Gil de Biedma e Joseph Brodsky, foram disseminados por ali. Cuidadas edições de poetas das lusofonias transatlânticas, como de Bénédicte Houart ou Ruy Duarte de Carvalho. Alguns brasileiros tiveram ali sua casa em Portugal, feito Carlito Azevedo e Dora Ribeiro. Minha primeira visita em forma de texto a terras portuguesas foi pela Cotovia, na antologia A poesia andando: treze poetas no Brasil (Lisboa: Cotovia, 2008), com organização de Valeska de Aguirre e Marília Garcia.
Não vou me esquecer de meu único encontro em carne e osso com o editor em seu escritório em Lisboa, em 2011. Era minha primeira visita a Portugal. Fui recebido por ele como se recebe a um amigo, ainda que jamais tivéssemos nos visto, e até então houvéssemos tido apenas uma pequena troca de mensagens. Em meio aos livros em uma sala iluminada na bonita Rua Nova da Trindade, entre o Chiado e o Bairro Alto, conversamos por uma hora e meia sobre escritores dos dois lados do Atlântico, as relações entre nossos países, as dificuldades em editar livros em nossas terras. Fiquei desconcertado com o candor de André Jorge quando ele passou a falar abertamente das dificuldades de manter as rédeas financeiras da editora e sobre a enfermidade que o acometera e contra a qual lutava. A confiança com que ele se dirigia a mim, um estranho havia ainda uma hora, era desarmante. Uma confiança, talvez, da solidariedade entre os corpos vivos, sobre os quais a mão do tempo se abate, forte.
À saída, em sua generosidade, presenteou-me não apenas com vários exemplares da antologia que trazia textos meus, mas disse que corresse os olhos pela estante da livraria da editora no andar térreo e levasse comigo o que mais me apetecesse. Saí de lá pensando: “Acabei de conhecer um cavalheiro de verdade.”
Fundada em 1988, a Livros Cotovia lançou mais de 600 títulos. Entre ensaio, ficção, poesia e teatro, é inestimável sua contribuição para nossas cabeças, que eram mais pobres antes da generosidade de André Jorge. O Brasil lhe deve ainda gratidão pela amizade e lealdade, demonstrada, além de volumes individuais, na coleção “Curso breve de literatura brasileira”, que mantinha nas livrarias de Portugal obras centrais de nossa literatura, em prosa e poesia, como Memórias Póstumas de Brás Cubas de Machado de Assis, A menina morta de Cornélio Penna, os contos em Laços de família de Clarice Lispector, as coletâneas A educação pela pedra de João Cabral de Melo Neto e Claro enigma de Carlos Drummond de Andrade, O amanuense Belmiro de Cyro dos Anjos, São Bernando de Graciliano Ramos, e Os ratos de Dyonélio Machado, assim como antologias dedicadas ao conto e à poesia modernistas brasileiras. Uma lista exemplar, de conhecedor. R.I.P. André Jorge (1945-2016). Encerro como comecei, já que todos nós encerramos como começamos: a língua perdeu um amigo fiel e apaixonado. Poetas perderam um aliado corajoso.
Introdução ao Brasil para alemães
Hoje, às 20:30 na galeria Image Movement, em Berlim, conduzo uma leitura e noite de introdução ao Brasil, com os escritores Adelaide Ivánova, Rafael Mantovani, Italo Diblasi e Flávio Morgado. Cada um lerá textos próprios com traduções para o alemão ou inglês, e ainda textos de outros escritores brasileiros, também com traduções projetadas em tela, como Machado de Assis, Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade e Hilda Hilst. A ideia é também projetar vídeos de músicos brasileiros tocando e cantando ao vivo, cenas de um par de filmes e documentários importantes, e falar sobre certos pontos da História do país.
Cada um dos escritores vem de uma região diferente do Brasil, portanto podemos falar sobre infâncias que tanto poderiam ser de países distantes, não houvesse a língua que nos une. Adelaide Ivánova nasceu no Recife. Rafael Mantovani é da cidade de São Paulo. Italo Diblasi e Flávio Morgado são do Rio de Janeiro, mas com experiências diversas da cidade. Eu sou do interior de São Paulo. Em seu poema “Descoberta”, Mário de Andrade fala de um homem no norte do país, descobrindo, à sua mesa na Rua Lopes Chaves em São Paulo, que aquele homem era tão brasileiro quanto ele. Estes outros quatro escritores lendo hoje comigo, são brasileiros como eu? Exatamente como eu? Somos brasileiros, mas um como o outro? Estes Estados da chamada “União”, são de certa forma como países em si?
Como se pode apresentar a um estrangeiro um país-continente como o Brasil? Se mostrarmos a eles uma canção do mineiro Milton Nascimento na voz da gaúcha Elis Regina, cobrimos parte do território? Unida a uma canção do pernambucano Luiz Gonzaga na voz da baiana Gal Costa, chega-se a mais terra? Com um samba de Cartola, cantado por ele mesmo, dá-se conta do gênero? Sobre quem falar? Sobre o fim trágico do poeta Cruz e Sousa, morto em 1898 por tuberculose como quase-indigente, e então falar da poeta Orides Fontela, morta em 1998, exatamente um século depois, também com a mesma doença, também quase-indigente? No fim daquele grande poeta negro e daquela grande poeta mulher, num país racista e machista como o nosso, chegamos a algo sobre a nossa quase-indigência?
Há ainda as questões de caráter histórico, de origem. Seguimos a perspectiva do colonizador, que ainda rege nossas aulas de História, como se o Brasil houvesse começado em 1500? Descobrimento ou Invasão? Ignora-se tudo o que houve antes? Por mim, posso dizer como pretendo começar a noite: dedicando-a a uma mulher, a mais antiga mulher conhecida do território, uma espécie de matriarca, Luzia. Aquela que passamos a chamar de Luzia, quando seus restos (o crânio de uma mulher na casa dos 20 anos) foram encontrados nos anos 1970 pela missão arqueológica franco-brasileira da arqueóloga Annette Laming-Emperaire, em escavações na Lapa Vermelha, uma gruta no município de Pedro Leopoldo, nos arredores de Belo Horizonte. Datados em cerca de 12.000 anos, estão entre os restos humanos mais antigos encontrados nas Américas, ainda que até hoje Luzia esteja cercada de controvérsia no debate sobre o início da chegada dos humanos ao continente.
Se um britânico pode hoje reivindicar como história e origem um local como Stonehenge, construída por um povo que falava outra língua, tinha outra cultura e religião, por que não podemos nós brasileiros reivindicar como antepassados também Luzia e as pinturas rupestres de seu povo, assim como os geoglifos amazônicos e as urnas funerárias da Civilização Marajoara, como parte de nossa história e origem, ainda que hoje falemos outra língua, tenhamos outra cultura e religião? Não descendemos tantos de nós também destes?
São algumas das questões que nos guiarão hoje.
A escrita do amor fora das normas do patriarcado brasileiro (segunda parte)
Na primeira parte deste artigo, menciono o trabalho dos homens mais conhecidos nesta discussão: Raul Pompeia, Adolfo Caminha, Mário de Andrade, Lúcio Cardoso e Roberto Piva. Suas obras e biografias são marcadas por uma relação tumultuosa com o patriarcado brasileiro de maneiras diversas. O suicídio de Pompeia, em pleno Natal de 1895, sempre terá um caráter simbólico para mim, ainda que não se possa esquecer que Pompeia comete este ato extremo com o propósito de salvaguardar o que chama de sua honra. Há no ato tanto um símbolo de afirmação como de negação. Mário de Andrade esconde sua sexualidade, camufla-a, e as anedotas dos bastidores do Grupo de 22 atestam a necessidade disso: há relatos de Oswald de Andrade usando a sexualidade do amigo-desafeto contra ele, tal qual Olavo Bilac usaria a de Raul Pompeia em suas rusgas na imprensa. Apenas com Lúcio Cardoso e Roberto Piva veríamos uma celebração quase bélica da exuberância de suas personalidades no meio cultural recatado do Brasil, especialmente se comparada com a discrição de seus predecessores, que têm, no entanto, toda a minha compreensão. Vimos que fim levou o irlandês Oscar Wilde na Grã-Bretanha cristã da Rainha Vitória, e o grego Konstantínos Kaváfis, vivendo na Alexandria islâmica, fora ao mesmo tempo tão honesto quanto tímido em seus arroubos homoeróticos pela poesia, publicando seu trabalho apenas em folhetos distribuídos entre os amigos. Décadas mais tarde, sabemos também que fim teve o italiano Pier Paolo Pasolini na democracia cristã de seu país.
Em meio a isso, como foi o surgimento da poesia e prosa femininas no Brasil, de tradição sáfica ou não? Vale lembrar que, em um país como o Brasil, uma mulher que escreva sobre o amor carnal já se encontra fora das normas, ame ela homens ou mulheres. A mulher que insiste que seu lugar de escolha é a cama, não o fogão. A primeira poeta a ter sucesso no país e chocar a sociedade do seu tempo com seu trabalho foi Francisca Júlia. Um erotismo feminino pelo feminino é claro em sonetos como “Dança de centauras”, “Rainha das águas” e “Ondina”. Pouco ou nada sabe-se de sua vida, além de que ela escolheu o silêncio após o casamento e também escolheu o suicídio, como Pompeia, após a morte do marido. Seriam necessárias três décadas para que outras três escritoras tomassem vulto junto a seus companheiros de geração: a romancista Rachel de Queiroz e as poetas Cecília Meireles e Henriqueta Lisboa, enquanto a poeta e romancista Patrícia Galvão permaneceria soterrada sob a biografia de um homem, Oswald de Andrade, e as anedotas em torno de sua existência como Pagu.
Sobre Cecília Meireles e Henriqueta Lisboa, eu invocaria aqui um texto de outra mulher que não se pode contornar em uma discussão sobre a escrita das cidadãs brasileiras, lésbicas ou não: a poeta e crítica carioca Ana Cristina Cesar. Em seu artigo “Literatura e mulher: essa palavra de luxo” (1979), ela escreve: “A apreciação erudita da poesia destas duas mulheres se aproxima curiosamente do senso comum sobre o poético e o feminino. Ninguém pode ter dúvidas de que se trata de poesia, e de poesia de mulheres. Não quero ficar panfletária, mas não lhe parece que há uma certa identidade entre esse universo de apreensão do literário e o ideário tradicional ligado à mulher? O conjunto de imagens e tons obviamente poéticos, femininos portanto? Arrisco mais: não haveria por trás desta concepção fluídica de poesia um sintomático calar de temas de mulher, ou de uma possível poesia moderna de mulher, violenta, briguenta, cafona onipotente, sei lá?”
Aqui, Ana Cristina Cesar critica as duas pioneiras famosas por seu tom elevado, suas formas classicizantes, os temas nobres, como se fossem uma manobra de esconder o que há de diferenciador na mulher em relação ao homem: o carnal, o corporal, o sexual. Nesse calar, a estratégia, talvez, justamente de apagar qualquer diferença entre a literatura masculina e a feminina, ou simplesmente uma estratégia social, dada a época em que escreviam, para poderem figurar no panteão literário dominado por homens, sem lembrá-los em demasia de que eram mulheres, quiçá apenas de leve. Este artigo de Ana Cristina Cesar é uma das mostras da inteligência fina da carioca, que não se entrega a um ativismo fácil, e seus questionamentos valem tanto para nossa discussão sobre o masculino e o feminino em literatura, quanto para um discussão bem-vinda sobre universalismo e localismo em relação a nossos modernistas. No artigo, mais adiante, ela viria a mencionar Adélia Prado como uma das escritoras a escaparem desta relação conflituosa com os poetas homens da época, fugindo de uma admiração subserviente como a que Ana Cristina Cesar crê identificar em Cecília Meireles e Henriqueta Lisboa em relação a Carlos Drummond de Andrade, por exemplo. O artigo invoca também Clarice Lispector e sua narração como mulher, através de um narrador masculino, em um livro que tem por centro uma mulher, Macabéia: o seu grande A Hora da Estrela (1977), mas Ana Cristina Cesar não se debruça sobre o assunto para além da citação, deixando-o talvez como pista que complique a discussão, pista que despista.
Tudo isso se torna ainda mais complicado, dialético, se pensarmos em uma escritora sobre a qual Ana Cristina Cesar silencia em seu artigo, provavelmente por não conhecer seu trabalho, ainda bastante obscuro à época: Hilda Hilst. Como ver, neste contexto, a clara formação clássica de sua poesia, sem no entanto fugir do carnal, do corporal, do sexual? Vejamos, por exemplo, o primeiro poema da série “Do desejo”:
Porque há desejo em mim, é tudo cintilância.
Antes, o cotidiano era um pensar alturas
Buscando Aquele Outro decantado
Surdo à minha humana ladradura.
Visgo e suor, pois nunca se faziam.
Hoje, de carne e osso, laborioso, lascivo
Tomas-me o corpo. E que descanso me dás
Depois das lidas. Sonhei penhascos
Quando havia o jardim aqui ao lado.
Pensei subidas onde não havia rastros.
Extasiada, fodo contigo
Ao invés de ganir diante do Nada.
Em um poema como este, há ao mesmo tempo uma invocação e uma fuga do sublime. Nobre e chulo, em ascensão e queda, Hilda Hilst era mestra desses fluxos e refluxos, dessas marés. Aqui, universalismo não se torna esconderijo. O próprio trabalho de Ana Cristina Cesar traria estas questões de volta, com suas reescrituras de poemas de Jorge de Lima, por exemplo, ou seus poemas absurdamente carnais. E, no entanto, a sexualidade de Ana Cristina Cesar continua a incomodar e ser silenciada 70 anos depois da morte de Mário de Andrade, aquele que foi assexuado pelo cânone. A carnalidade, sexualidade e até sua obra seriam silenciadas, por exemplo, na abertura da FLIP 2016 que deveria tê-la por homenageada, quando homens no palco passariam a noite falando de si mesmos, algo que não é de se admirar, já que Armando Freitas Filho vem solavancando a própria obra e biografia há décadas com o nome de Ana Cristina Cesar.
Para encerrar no espírito da carioca em seu artigo, o de complicar as coisas, é preciso dizer que em nossas discussões sobre gênero e sexualidade, há uma espécie de ponto cego: a forma como invisibilizamos questões de classe social e, principalmente, questões raciais nesta conversa. Se a relação com o mundo dominado por homens foi complicado para todas estas mulheres que citamos, de Cecília Meireles a Ana Cristina Cesar, é importante lembrar que, como mulheres brancas, sua possibilidade de inserção era menos difícil que a de escritoras negras como Carolina Maria de Jesus ou Stela do Patrocínio. A poeta e crítica norte-americana Audre Lorde, ela mesma abertamente homossexual, seria uma das críticas mais argutas deste silenciamento do racil na discussão do sexual. E é assim, com um poema curto de Stela do Patrocínio, que encerro esta segunda parte.
Nasci louca
Meus pais queriam que eu fosse louca
Os normais tinham inveja de mim
Que era louca
Nota do autor: para maiores informações sobre escritoras brasileiras, leia meu artigo “A textualidade em algumas poetas brasileiras do século XX e XXI” na revista Modo de Usar & Co.:
http://revistamododeusar.blogspot.de/2010/04/poeticas-contemporaneas-textualidade-em.html
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