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Notas em torno dos poemas reunidos de Hilda Hilst

Pela primeira vez reúne-se no Brasil em um único volume toda a obra poética de Hilda Hilst, Da Poesia (São Paulo: Companhia das Letras, 2017). Traz todos os volumes publicados pela escritora paulista, incluindo os três primeiros que ela havia rejeitado quando reuniu pela primeira vez sua produção poética no volume Poesia (1959-1967). O livro de estreia foi Presságio (1950), quando tinha vinte anos e ainda cursava Direito no Largo de São Francisco em São Paulo. Ao concluir o curso em 1952, havia lançado já o segundo livro, Balada de Alzira (1951), seguido então de Balada do festival (1955). Costumo ter a opinião que a vontade do autor deveria ser respeitada nestes casos. Ao mesmo tempo, vale lembrar que os primeiros livros de Hilda Hilst chamaram a atenção de um crítico como Sergio Buarque de Holanda, assim como de poetas mais velhos e já consagrados à época, como Jorge de Lima e Cecília Meireles, autora que também rejeitaria os três primeiros livros ao reunir sua produção poética. O marco oficial, para Hilda Hilst, começaria com o livro Roteiro do silêncio, de 1959. É importante lembrarmo-nos do que ocorria nos debates literários daquele momento. O Brasil passava pelas turbulências dos manifestos e contra-manifestos das neovanguardas, da Poesia Concreta à Poesia-Práxis, do Neoconcretismo ao Poema Processo. Era ainda, no campo político-cultural, o tempo do salto adiante, do desenvolvimentismo de Juscelino Kubitschek, da construção de Brasília e da estética minimalista que vinha sendo consagrada pela Bienal de São Paulo. A música era a Bossa Nova de João Gilberto e Tom Jobim, o mestre da pintura era Alfredo Volpi e os jovens que se faziam famosos estavam voltados a uma estética de caráter construtivista. Neste ambiente, não é de se admirar que poetas de dicção lírica (e vista como classicizante) acabariam à margem, o caso de outros autores do período como o pernambucano Carlos Pena Filho e a capixaba Marly de Oliveira. E quem à época lia Manoel de Barros, mais tarde o autor popular que foi?

Entre o livro de 1959 e a eclosão de seu trabalho em prosa em 1970, Hilda Hilst lançaria ainda as coletâneas de poemas Trovas de muito amor para um amado senhor, Ode Fragmentária, Sete cantos do poeta para o anjo (que recebeu o Prêmio PEN Clube de São Paulo), todos reunidos no volume de 1967. A partir de 1970, começa a alternar obras tão deslumbrantes quanto perturbadoras na prosa e na poesia e no teatro. Os próximos 25 anos seriam os seus mais fecundos, exilada por decisão própria na Casa do Sol em Campinas, e lançando artefatos raros como as novelas contidas em Qadós (1973) e os poemas de Júbilo, memória, noviciado da paixão (1974), reunindo sua obra poética de vinte anos mais uma vez em Poesia (1959/1979), e entrando então na década de 1980 com aquelas pequenas joias que são a coletânea Da Morte. Odes Mínimas (1980) e o romance A obscena senhora D (1982). Este último foi traduzido há poucos anos nos Estados Unidos e angariou um pequeno grupo de cultuadores em torno de seu nome, como já discuti aqui [“A recepção de Hilda Hilst em língua inglesa”, Contra a capa, DW Brasil, 12.09.2014].

No entanto, até meados da década de 1990 sua obra seguia envolta num quase completo silêncio. Apenas com sua guinada pornográfica é que alguma atenção, pouca, foi dedicada a seu trabalho. Só ao fim do século é que chega uma homenagem justa como ter dedicado a sua obra um dos volumes prestigiosos da série Cadernos de Literatura Brasileira do Instituto Moreira Salles. Por estes anos já havia praticamente abandonado a literatura, não sem antes dar-nos os poemas de Cantares do Sem Nome e de Partidas (1995) e encerrar o romance Estar Sendo. Ter Sido (1996) com um dos poemas mais poderosos da década de 1990, “Mula de Deus”.

Tudo isso é conhecido. Foi bonito ver Hilda Hilst receber seu culto devido (dai a Hilda o que é de Hilst) e vê-la poder colaborar, pessoalmente, com a organização da reedição de sua obra pela Editora Globo, a cargo de Alcir Pécora. Sua obra, portanto, não estava fora de catálogo nos últimos tempos. Estava muitíssimo bem editada. O que este volume único nos traz? Algumas coisas. Seus três primeiros livros, assim como inéditos garimpados por Júlia de Souza nos arquivos da escritora deixados para a Universidade de Campinas. São mais de 20 títulos, com fortuna crítica, posfácio de Victor Heringer, carta de Caio Fernando Abreu para a escritora,  declarações de Lygia Fagundes Telles sobre a amiga e ainda uma entrevista de Hilda Hilst concedida a Vilma Arêas e Berta Waldman, publicada no Jornal do Brasil em 1989. A edição ficou a cargo de Alice Sant’Anna. Poderá chegar como um tijolo na consciência dos leitores mais jovens, assim como ficar de corpo poético inteiro nas estantes daqueles que já a admiram, como é meu caso.

São poucos inéditos, mas alguns são muito bonitos e é interessante imaginar o processo de decisão de Hilda Hilst sobre quais poemas entrariam e quais ficariam de fora. Há ainda entre eles uma imitação hilária que Hilda Hilst faz da poética de Adélia Prado: “devo bater / o osso no prato / e não achar um saco?”, talvez um comentário sardônico ao trabalho da colega que havia conquistado a atenção do público e da crítica já com o primeiro livro, Bagagem, à mesma época em que Hilda Hilst publicava, para o silêncio, uma de suas obras-primas, o lindo Júbilo, memória, noviciado da paixão. Seria interessante pensar em Hilda Hilst e Adélia Prado como contemporâneas, ainda que tenham estreado na literatura nacional em países praticamente estranhos um ao outro: o Brasil da década de 1950 e o da década de 1970. Mas tinham quase a mesma idade, Hilst nasceu em 1930, Prado em 1935.  Desposaram misticismos muito diferentes em sua relação com o cristianismo, seus trabalhos são formalmente distintos – com Hilst voltada à tradição latina clássica de poetas como Caio Valério Catulo enquanto Prado ligava-se ao modernismo de poetas como Carlos Drummond de Andrade, e, no entanto, a poesia lírica de ambas tem o mesmo caráter carnal.

A Companhia das Letras vem lançando a obra completa de alguns poetas neste século. Além das reuniões muito discutidas de Paulo Leminski, Ana Cristina Cesar e Waly Salomão nos últimos anos e um único volume com 23 livros de Carlos Drummond de Andrade, seu catálogo já contava com os poemas reunidos de José Paulo Paes e Mário Faustino. É um time bastante variado, este a que Hilda Hilst agora se une. E, antes de encerrar, não poderia deixar aqui de homenagear Massao Ohno (1936-2010), o corajoso editor independente que manteve o trabalho de Hilda Hilst circulando por tanto tempo, em pequenas tiragens, quando grandes editoras como a Companhia das Letras não demonstravam qualquer interesse por sua obra antes da consagração.

Data

quarta-feira 26.04.2017 | 10:41

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