A tradição alemã dos Hörspiele
De passagem por Bamberg, na Baviera, na semana passada, onde me apresentei ao lado da autora alemã Nora Gomringer e do trio PLOT (Sebastian Wehle, Robert Lucaciu e Philipp Scholz) no festival literário “Bamberg liest” (Bamberg lê), conversava com ela sobre a peça radiofônica em que vem trabalhando. Foi quando me ocorreu que esta forte tradição alemã do século 20 não deixou uma tradição no Brasil, apesar de alguns exemplos de radionovelas na década de 1940. Nora vem trabalhando na peça por encomenda da Bund der Kriegsblinden Deutschlands, ou União dos Cegos da Guerra da Alemanha. A guerra, como discutirei a seguir, está intimamente ligada a este gênero literário-sonoro no país.
As primeiras peças radiofônicas foram ao ar em Nova York (O lobo, de Eugen Walter, em 3 de agosto de 1922) e em Londres (Perigo, de Richard Hughes, em janeiro de 1924). Na Alemanha, a primeira foi Magia na rádio (Zauberei auf dem Sender), de Hans Flesch, que foi ao ar no dia 24 de outubro de 1924 em uma rádio de Frankfurt do Meno. No ano seguinte, mais de 40 peças radiofônicas viriam a ser produzidas. Ainda que várias peças escritas para o teatro tenham ganhado produções radiofônicas, diversos autores essenciais do século 20, em língua alemã, viriam a escrever peças especialmente para rádio, como Bertolt Brecht e Ingeborg Bachmann. Um volume editado em 1962 pela editora alemã Piper, Dreizehn europäische Hörspiele (Treze peças radiofônicas europeias), traz textos de Richard Hughes, Dylan Thomas, Samuel Beckett, Jacques Constant, Eugene Ionesco, Bertolt Brecht, Günter Eich, Ilse Aichinger, Ingeborg Bachmann, Friedrich Dürrenmatt, Max Frisch, Alberto Perrini e Vasco Pratolini/Gian D. Giagni.
Para os homens que retornaram cegos da Primeira Guerra Mundial – e não foram poucos – devido à introdução de armas químicas como o gás mostarda, as peças radiofônicas seriam uma fonte de entretenimento e consolo. Peças radiofônicas para os ex-soldados mutilados do país que inventara as modernas armas químicas, a partir do trabalho do químico Fritz Haber (Prêmio Nobel em 1918), que seria declarado criminoso de guerra ao fim do conflito. Haber fora colega de Einstein, que ficaria horrorizado com tal uso da ciência, sendo um dos poucos a assinar o manifesto que organizou contra tais práticas.
No Brasil, houve as radionovelas. A primeira foi Em busca da felicidade, transmitida através da Rádio Nacional do Rio de Janeiro, com início em 12 de julho de 1941. Obra mexicana de Leandro Blanco (a relação entre novelas mexicanas e o público brasileiro é antiga), ela teve adaptação de Gilberto Martins. Logo em seguida, veio a cubana O direito de nascer, que faria história no país. No entanto, nenhum dos grandes poetas ou dramaturgos brasileiros deixou obras especialmente escritas para o gênero, ainda que muitos textos de Nelson Rodrigues, por exemplo, viessem a ser adapatados para a rádio.
Com sua divisão, hoje, entre peças de caráter dramatúrgico e peças de arte acústica, não seria má ideia se poetas brasileiros contemporâneos se dedicassem a aventuras similares no país, seja para a rádio ou para podcasts na internet. Entre os autores germânicos contemporâneos que se dedicaram ao gênero, podemos mencionar Gerhard Rühm, Christoph Schlingensief e ninguém menos que Elfriede Jelinek, Prêmio Nobel de Literatura de 2004.
Algumas mulheres portuguesas
Neste momento em que as mulheres do território estão uma vez mais sob ataque, desta vez realmente concentrado e destrutivo por parte dos homens que compõem o Congresso Nacional, o primeiro que nós podemos fazer como seres pensantes é voltarmo-nos justamente a elas, as mulheres, a fim de buscar formas de resistência. O obscurantismo determinado de homens como Marco Feliciano, Jair Bolsonaro e Eduardo Cunha (entre outros) voltou-se contra a grande Simone de Beauvoir. Vamos invocar ainda mais mulheres para o pensamento de todos no território. Clarice Lispector. Hilda Hilst. Stela do Patrocínio. Nise da Silveira. Antonieta de Barros. Lygia Clark. Mariajosé de Carvalho. Rose Marie Muraro. A grande viva Marcia Denser. Em nome da matriarca primeira da terra, Luzia. Da matriarca guerreira, Aqualtune, nossa Hécuba.
Mas toda ajuda é bem-vinda e necessária. Há irmãs do outro lado do Atlântico, e gostaria especificamente de recomendar algumas autoras portuguesas neste texto. Nos últimos 15 anos, duas autoras portuguesas foram lidas por nós com atenção especial: Adília Lopes, desde a publicação de sua Antologia (SP/RJ: Cosac Naify/7Letras, 2002), e Matilde Campilho, agora, com seu Jóquei (São Paulo: Editora 34, 2015).
“Que morra Marta
mas que como Maria
morra farta”
— Adília Lopes, Antologia (SP/RJ: Cosac Naify/7Letras, 2002)
Mas Portugal tem em sua terra mais autoras que precisamos começar a ler com mais atenção. Neste contexto, neste momento, não posso deixar de pensar em Maria Velho da Costa. Leiam este trecho de seu texto “Mulheres e revolução”:
“Elas fizeram greves de braços caídos. Elas brigaram em casa para ir ao sindicato e à junta. Elas gritaram à vizinha que era fascista. Elas souberam dizer salário igual e creches e cantinas. Elas vieram para a rua de encarnado. Elas foram pedir para ali uma estrada de alcatrão e canos de água. Elas gritaram muito. Elas encheram as ruas de cravos. Elas disseram à mãe e à sogra que isso era dantes. Elas trouxeram alento e sopa aos quartéis e à rua. Elas foram para as portas de armas com os filhos ao colo. Elas ouviram falar de uma grande mudança que ia entrar pelas casas. Elas choraram no cais agarradas aos filhos que vinham da guerra. Elas choraram de ver o pai a guerrear com o filho. Elas tiveram medo e foram e não foram. Elas aprenderam a mexer nos livros de contas e nas alfaias das herdades abandonadas. Elas dobraram em quatro um papel que levava dentro uma cruzinha laboriosa. Elas sentaram-se a falar à roda de uma mesa a ver como podia ser sem os patrões. Elas levantaram o braço nas grandes assembleias. Elas costuraram bandeiras e bordaram a fio amarelo pequenas foices e martelos. Elas disseram à mãe, segure-me aqui os cachopos, senhora, que a gente vai de camioneta a Lisboa dizer-lhes como é. Elas vieram dos arrebaldes com o fogão à cabeça ocupar uma parte de casa fechada. Elas estenderam roupa a cantar, com as armas que temos na mão. Elas diziam tu às pessoas com estudos e aos outros homens. Elas iam e não sabiam para onde, mas que iam. Elas acendem o lume. Elas cortam o pão e aquecem o café esfriado. São elas que acordam pela manhã as bestas, os homens e as crianças adormecidas.”
— excerto de “Mulheres e revolução”, de Maria Velho da Costa, de seu livro Cravo (1976).
Penso também em Alexandra Lucas Coelho e seu romance O Meu Amante de Domingo (Lisboa: Tinta da China, 2014), sobre o qual já escrevi aqui [“Um amante de domingo e a vontade de matar um cabrão: nota sobre o romance de Alexandra Lucas Coelho”, DW Brasil, 08.04.15]. O livro me parece, além de uma leitura ótima, um ato de empoderamento político-literário. Uma vingança, de certa forma, como o romance epistolar de Chris Kraus, I Love Dick (1997). Um tomar as rédeas da narrativa.
Penso no humor sardônico de Golgona Anghel, como em seu excelente Vim Porque Me Pagavam (Lisboa: Mariposa Azual, 2011), uma poeta que, tenho certeza, precisa apenas chegar aos olhos e ouvidos dos brasileiros para gerar neles o mesmo espanto e lealdade que Adília Lopes e Matilde Campilho vêm gerando.
“Aos Sábados repousava:
instalava-me no lugar mais cómodo
da minha cultura ocidental,
de cachimbo num quadro de época,
e levantava com o olhar
as rolas passeabundas da marquise.”
—Golgona Anghel, Vim Porque Me Pagavam (Lisboa: Mariposa Azul, 2011).
Outra autora que eu creio precisa ser descoberta por brasileiros é Raquel Nobre Guerra. Formada em Filosofia pela Universidade Católica Portuguesa de Lisboa e com mestrado em Estética e Filosofia da Arte pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, Raquel Nobre Guerra publicou Groto Sato (Mariposa Azul, 2012), que recebeu em Portugal o Prêmio PEN para obras de estreia. É outra portuguesa que acompanho com atenção.
“aqui morro muitos anos convosco
estremecendo à sabedoria dos tolos
aqui certo clima de nojo e uma galeria viva
de absurdos para a visão integral da coisa
solene
peçam-se óculos para ver melhor, peçam-se janelas
para ver o mar”
— Raquel Nobre Guerra, Groto Sato (Mariposa Azul, 2012).
Encerro esta pequena lista de recomendações de leitura, que poderia se estender, e se estenderá no futuro, com a sugestão de pesquisa do trabalho da discreta e excelente poeta e tradutora Margarida Vale de Gato. Conhecida em Portugal por seu excelente trabalho como tradutora, verteu para o português autores como Lewis Carroll, Christina Rossetti, Oscar Wilde, W. B. Yeats, Herman Melville, Henry James, George Sand, René Char, Henri Michaux e Nathalie Sarraute. Seu trabalho, porém, como poeta, na série de livros chamado Mulher ao mar e Mulher ao mar retorna, merece muito mais de nossa atenção. Encerro com um poema seu na íntegra.
A imagem romântica
Margarida Vale de Gato
Há outras coisas, Horácio,
e a tua filosofia é barata,
na verdade não custa fixar
as coisas ideais à distância:
terás vista panorâmica
mas sempre a visão é polémica.
Gostava que alguém me mostrasse,
mas não terei nunca garantia
de que envelhecer faça sentido.
As pessoas prostram-se, queremos que nos digam
porquê não haver luz nos seus rostos. Crestam
os cravos, antes rubros. Não há modo
de saber se as monarcas
têm memórias arenosas de lagarta.
Tudo sucede dentro de estanques
casulos, a seda é densa,
não se faz ideia
se isto acaba. Estrelas foscas
correm, pessoas morrem, a vida
é breve, impávido o
real se esquiva a designar.
Comparar é colidir: o verbo
talvez nos leve
a mais nenhum sinal.
O torcicolo do Anjo da História
Em suas “Teses sobre a História”, Walter Benjamin escreve sobre um quadro de Paul Klee: “Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso”.
§
O mundo não tem trégua. Não, o planeta não tem trégua e o mundo não dá trégua. O mundo, como geralmente usamos esta expressão, parece ser um casamento entre tempo e espaço, o planeta mais a História, que é invariavelmente humana a nossos olhos. Fomos ensinados desde cedo que o planeta foi criado para nós. Nos pertence. Podemos fazer dele o que quisermos. Sempre a imagem do Anjo de Walter Benjamin como a mais apta: o rosto voltado para trás, de onde sopra o que pode ser apenas um tufão, a História, e os escombros e ruínas acumulando-se sob nossos pés. Será isso que quis dizer Carlos Drummond de Andrade quando escreveu que “o Mundo não vale o mundo, meu bem”.
§
A lama que matou seres vivos: humanos, peixes, cavalos, cágados – nem havia se assentado, chegado a seu destino, o oceano, onde seguirá matando. Na sexta-feira (13/11), eu havia organizado com Andrea Mueller um evento em Berlim, chamado Symposium, que em grego significa “beber juntos”, como no famoso simpósio descrito por Platão, com a presença de Sócrates. Naquela noite, homens e mulheres, brancos e negros, alemães e estrangeiros sentaram-se ao redor de uma mesa e conversaram sobre o conceito de “comunidade”. Luke Troynar, da banda Bad Tropes, cantou duas canções. Ouvimos Hannah Arendt, em sua entrevista a Günter Gaus em 1964, falar sobre alianças e comunidade e interesses comuns. Nossos celulares estavam desligados. Não sabíamos que, enquanto estávamos ali, compartilhando nossos experiências, nossas diferenças, o que nos une e separa, um banho de sangue acontecia em Paris. Ocupado com a organização, não sabia sequer que um banho de sangue já havia ocorrido em Beirute. Ao fim da noite, veio a notícia. Pessoas correm para seus telefones, vários têm amigos e família em Paris. Alguns são amigos dos membros da banda que tocava no Bataclan, a Eagles of Death Metal. O número de mortos vai crescendo, as informações são desencontradas.
Na manhã seguinte, acordei com os sentimentos mais contraditórios possíveis. Todos querem uma narrativa, uma explicação, e a imprensa começa a inundar-se delas como o Rio Doce inundou-se da lama da Samarco e da Companhia Vale do Rio Doce. Há artigos excelentes, há artigos ruins, há a enxurrada de solidariedade. Em Callais, um campo de refugiados ardeu. Todos têm medo do que a direita fará com isso. Judith Butler escreve sobre o estado de emergência, que dá mais poderes ao governo. A discussão liberdade versus segurança nas televisões. Alguns franceses pedem a militarização da polícia. Para um brasileiro, onde o número de mortos de Paris é diário, corre o frio na espinha. Solidarizar-se. Mas solidarizar-se com quem? Há sangue em Beirute, há sangue em Paris, e, em Mariana, não se vê o sangue porque ele está coberto de lama tóxica. Há carcaças de peixes e cágados às margens. Fotos de um potro sendo salvo. Da Presidente da República, há silêncio. As relações públicas da Samarco e da Vale do Rio Doce apressam-se. O que minha mãe costumava dizer, “abençoado Brasil sem terremotos e maremotos”, é mudado. Ah! Um terremoto causou tudo. Não a má engenharia, a falta de segurança, as técnicas de mineração obsoletas. Enquanto todos choram por Paris, a Presidente da República começa a ajudar as relações públicas das empresas, com um decreto que diz “considera-se também como natural o desastre decorrente do rompimento ou colapso de barragens que ocasione movimento de massa, com danos a unidades residenciais.” (Decreto N° 8.572, de 13 de novembro de 2015). Antes de qualquer investigação séria. Aquela foi verdadeiramente uma sexta-feira 13.
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RIO DOCE
RIO DA SAMARCO
RIO DOÇAMARGO
RIO AMARGO
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Uma narrativa. Precisamos de uma narrativa. Mas, como? Começo, meio e fim? Não há fim. Estamos no meio de uma besta-fera, ou, nas palavras de Efrim Menuck do coletivo Godspeed You! Black Emperor, “in the belly of this horrible machine, and the machine is bleeding to death”. Somos como Jonas no ventre da baleia, mas sem um deus que ouça nossas súplicas e nos faça ser vomitados na margem. Fôssemos, morreríamos na lama. A terceira margem do rio é doravante a lama. Sem fim, no meio. E o começo? Na manhã do sábado, fui reler informações sobre o Golpe de Estado no Irã em 1953, orquestrado pelos Estados Unidos e Grã-Bretanha, que depôs o primeiro-ministro Mohammad Mosadegh, eleito democraticamente, para fazer voltar o xá assassino e ditador, Reza Pahlavi, que defendia os interesses do “Ocidente”. Como os Estados Unidos ainda chamam de aliados os reis sauditas, acusados de financiar o Daesh (não o chamo de Estado Islâmico porque não o considero nem Estado nem Islâmico, ele não fala por todos).
Marcus Fabiano Gonçalves escreveu sobre o massacre de civis argelinos por tropas francesas em 1945. Artigos mencionam a oposição e o enfraquecimento de Nasser por governos do Ocidente durante a crise do Canal de Suez. Outros, as divisões aleatórias e concessões a ditadores aliados por parte de França e Grã-Bretanha durante o processo de independência de seus protetorados no Oriende Médio. Em meio a isso, leio a declaração do Daesh, assumindo responsabilidade pelos atentados em Paris, chamando a cidade de “capital de abominações, e aquela que carrega o Estandarte da Cruz na Europa”. Ou seja, uma referência às Cruzadas, de um milênio atrás, como as Cruzadas já haviam aparecido nos discursos de líderes do Ocidente em suas guerras contra países do Oriente. É um ciclo de revanches infindável.
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Alguns de nós bombardeiam os hospitais deles.
Alguns deles bombardeiam nossos estádios.
Hollande declara que não terá misericórdia contra pessoas que cometem crimes hediondos em nome de um deus que chamam de “misericordioso”. Não é assim também chamado o deus do Ocidente? Nós, eles. Mas, quem são “eles”? E “nós” quem, cara pálida? Até hoje sinto abstrata a oposição “Ocidente/Oriente”. Como brasileiro, cresci ouvindo a oposição “Norte/Sul”. Às vezes, quando dizem “Oeste” perto de mim, tenho o impulso de dizer: “Você deve querer dizer Noroeste, não? Não nos meta na sua bagunça”.
§
Imagens do sangue de inocentes serão usadas para derramar mais sangue de inocentes. Nisso, somos parecidos. Porque há tantos inocentes morrendo de cada lado, enquanto líderes sanguinários fazem seus jogos geopolíticos. A guerra está em toda parte, e nas palavras. Cada lado brigando por sua versão do que é “abominável”. O que eu queria é ver os líderes do Daesh presos por seus crimes, assim como ver presos George W. Bush e Dick Cheney por seus crimes de guerra.
Naquela noite do simpósio, eu havia levado dois livros comigo. Um deles era a tradução de Edward FitzGerald para o Rubaiyat de Omar Khayyam. Posto aqui um deles, em tradução de Alfredo Braga:
Acorda… e olha como o sol em seu regresso
vai apagando as estrelas do campo da noite;
do mesmo modo ele vai desvanecer
as grandes luzes da soberba torre do Sultão.
O outro livro trazia a tradução inglesa dos poemas reunidos do polonês Zbigniew Herbert. Em “Crônica de uma cidade sitiada”, ele escreve (aqui em tradução de José Miguel Silva):
evito comentários mantenho sob controle as emoções descrevo fatos
parece que só os fatos têm valor nos mercados estrangeiros
com uma espécie de orgulho quero dizer ao mundo
que graças à guerra criamos uma nova raça de crianças
as nossas crianças não gostam de contos de fadas brincam aos tiros
dia e noite sonham com sopa pão ossos
tal como os cães e os gatos
Encerro com os últimos versos neste artigo, que são os últimos versos em tradução minha de um poema de Warsan Shire, poeta somali que vive na Inglaterra, aonde seus pais emigraram como refugiados:
mais tarde naquela noite
eu pus um atlas no colo
passei os dedos ao longo do mundo
e perguntei
onde dói?
ele respondeu
por toda parte
por toda parte
por toda parte
Aniversário do suicídio de Torquato Neto em meio ao mar de lama
1. Eu queria poder escrever sobre coisas mais felizes nesta página, ao menos com mais frequência. Resenhar livros sem parar. Mas até os bons livros são tristes. A cultura é uma pulsão de morte. Talvez já desde quando nossos antepassados pintaram suas mãos nas cavernas, como a de Gargas ou a de Lescaux. As mãos negativas da cultura Magdaleniana, celebradas por Marguerite Duras em seu curta-metragem.
“São chamadas de ‘mãos negativas’ as pinturas de mãos encontradas nas cavernas magdalenianas no sul da Europa atlântica. O contorno dessas mãos totalmente abertas sobre a pedra era preenchido com cor. Na maioria das vezes de azul; de preto. Às vezes, de vermelho. Nunca descobriram uma explicação para essa prática. De frente para o oceano, sob a falésia, sobre a parede de granito, essas mãos abertas, azuis e pretas: o azul da água, o preto da noite. O homem veio sozinho até a caverna, de frente para o oceano. Todas as mãos têm o mesmo tamanho: ele estava sozinho. O homem, sozinho na caverna, olhou em meio ao barulho – ao barulho do mar – a imensidão das coisas. E gritou. Você, que tem um nome, você, que tem uma identidade, Eu te amo.” – fala inicial de As mãos negativas (1979), de Marguerite Duras, em tradução de William Zeytounlian.
2. Eram usados ocre para tornar vermelhas as mãos, óxido de manganês e carvão mineral para as pretas, esteatite para as brancas. Caçávamos minerais e deixávamos nossas marcas em nossas casas, as cavernas. Hoje, as marcas de nossas buscas por minerais cobrem por completo, com lama tóxica, as casas do vilarejo de Bento Rodrigues, ao lado de Mariana. Ambientalistas anunciam a morte irreversível do Rio Doce. Outros, anunciam que estas águas sujas causarão desastre à fauna marinha na costa capixaba. Arqueólogos talvez um dia encontrem Bento Rodrigues e a chamem de nossa Pompeia, numa versão infinitamente mais perversa.
3. Hoje, 10 de novembro de 2015, é aniversário do suicídio de Torquato Neto. Ontem, ele teria completado 71 anos. Tinha apenas 28 quando se matou, ligando o gás no banheiro de seu apartamento no Rio de Janeiro. Gás, outra coisa que extraímos da terra, do fundo dos oceanos. Chico Buarque também não cantou que um dia os escafandristas virão, quando o Rio de Janeiro for uma cidade submersa? Quando ouvi esta canção pela primeira vez, gostei do tom de ficção científica que o compositor dera a um poema de amor tão bonito. Já não é ficção científica. É alerta do que irremediavelmente virá.
“Eu, brasileiro, confesso
Minha culpa, meu pecado
Meu sonho desesperado
Meu bem guardado segredo
Minha aflição
Eu, brasileiro, confesso
Minha culpa, meu degredo
Pão seco de cada dia
Tropical melancolia
Negra solidão
Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo
Aqui é o fim do mundo”
É o que Torquato Neto cantou em “Marginália II”.
4. Enquanto isso, chegam as notícias de que uma citação de Simone de Beauvoir gerou repúdios públicos de câmaras de vereadores de cidades com universidades em seu meio. Que o Ministro da Educação foi convidado a explicar-se frente a uma comissão do Congresso, dominado como está por fanáticos religiosos perigosos (enquanto brasileiros gritam contra o Islã do outro lado do mundo). Mas serão combatidos com Simone de Beauvoir. Amém. Vamos adicionar Simone Weil. E Hannah Arendt. Vamos adicionar Hilda Hilst. E Muriel Rukeyser. Vamos adicionar Stela do Patrocínio. E Shulamith Firestone. Vamos adicionar Antonieta de Barros. E Emmeline Pankhurst. Devíamos dar a eles mais razões para ter medo. Seus privilégios vão chegar ao fim. E quem não reconhece a guerra vira bucha de canhão.
“Agora não se fala mais
toda palavra guarda uma cilada
e qualquer gesto é o fim
do seu início”
— Torquato Neto
5. Penso na arqueologia dentro do próprio território brasileiro. Penso em Luzia, nome que foi dado aos restos mortais mais antigos encontrados no Brasil. Aquela mulher. Uma mulher. Nossa matriarca. Luzia. Brasil. Como gostamos de nomes luminosos nesta terra! Enquanto isso, “mar de lama” deixou de ser, para todo o sempre, metáfora no Brasil. E vamos vivendo nossos últimos dias de paupéria, como no título daquele volume que um dia reuniu a poesia de Torquato Neto.
Nota sobre “Sala de chuto”, de Rui Caeiro
Em Lisboa, há duas semanas, em uma leitura organizada pelo poeta Miguel Martins como o faz todas as quintas-feiras no excelente Teatro A Barraca, vi Alexandra Lucas Coelho conversando com um senhor que me parecia familiar e perguntei ao lendário Changuito, com quem tagarelava àquela altura: “quem é aquele senhor conversando com Alexandra?”
“Ora, é o Rui Caeiro.” Soube então que o reconheci por uma das raras fotos do autor, fornecida pelo próprio Changuito a mim em 2013, quando preparamos uma pequena amostra dos textos de Rui Caeiro para a revista que edito, Modo de Usar & Co. Caeiro é um destes excelentes escritores da língua portuguesa que evitam as ninharias do mundo literário. Nossa língua flui na escrita destes homens e mulheres, mas nossos centros de comunicação, tão frequentemente surdos e capengas, os escondem mais amiúde do que seria aconselhável para nossa saúde. Conversei com o autor por um tempo, o que foi uma honra e um prazer, dado ser ele o cavalheiro que é. Bom comprovar, a cada vez nova, como a mesquinharia é algo que vai de mão em mão com os medíocres. Os grandes que tive a honra de conhecer, até hoje, foram invariavelmente generosos. Ao fim da conversa, Rui Caeiro apertou em minhas mãos seu último livro, Sala de chuto (Lisboa: Edição do autor, 2015), com desenhos de Mariana Gomes.
Na manhã seguinte, após um café com o poeta brasileiro radicado em Lisboa Ederval Fernandes, pus-me a ler o livro próximo à Torre de Belém. Com apenas 32 págins, lê-se-o de um jato, mas um jato de raio lúcido, tal a clareza de olhos abertos com que Rui Caeiro encara a experiência que gerou livro, sua passagem por sessões de quimioterapia para o tratamento de um câncer (ou cancro, no português-lusitano do livro). O primeiro estranhamento vem com o título, que só pude pesquisar mais tarde, ao começar este texto. “Salas de chuto” são locais para o consumo assistido ou salas de injeção assistida de drogas, que visam diminuir os riscos de doenças de contágio intravenoso, que começam a ser instaladas em alguns países da Europa, entre eles Portugal. “Chuto” é uma palavra pejorativa para o consumo ou vício em drogas injetáveis. Governos europeus, sabiamente tentando diminuir os riscos de contágio entre dependentes químicos, que sempre vêm a ser um peso para o sistema público de saúde, mas compreendendo que cidadãos fazem de seus corpos o que queiram, chegaram a esta possível solução. Imaginem, agora, o Congresso brasileiro (um dos piores de nossa História em direitos humanos) ouvindo sobre tal ideia.
Ao descobrir o que eram salas de chuto, sorri com o sarcasmo de Rui Caeiro, ao descrever assim a sala onde recebia seu tratamento quimioterápico. Alguns dos nossos melhores escritores são mestres neste humor autodepreciativo, como Machado de Assis já no título de Dom Casmurro (1899) e Fernando Assis Pacheco em tantos de seus poemas, como em Variações em Sousa (1987). À página 7, Rui Caeiro escreve:
“Antes de entrar na sala convém, como é da praxe das boas maneiras, preparar a forma de saudação. Talvez a dos antigos gladiadores, antes da actuação na arena:
— Avé César, avé todo poderoso, ou
Avé ó czar de todas as Rússias, ou
Avé diretores, responsáveis superiores, enfermeiras, técnicos subalternos,
Aquele que vai morrer saúda-vos!”
(Rui Caeiro, Sala de chuto, p. 7)
O pequeno grande livro tem todo este tom, esta clareza, esta lucidez que sempre é um ato de coragem. Há a passagem em que o autor vê/pensa ver um rato, o momento em que contempla os rostos dos seus colegas-gladiadores, doentes como ele, suas expressões de tristeza, onde “acende-se quiçá uma lembrança, um trejeito, um sorriso de dor.” Mas, o que não há no livro é pena, dó. O tom é o de uma depuração completa à pobreza de nossos corpos, nós, organismos.
“Querias um humanismo para o nosso tempo, não era? Well, you came to the right place. Um humanismo para o nosso tempo. Quem não queria? O humanismo da burocratice, do caga e tosse, do faz de conta. O da indiferença e o da impiedade. Sobretudo este. Here you are. Vieste ao sítio certo.”
(Rui Caeiro, Sala de chuto, p. 27)
Rui Caeiro nasceu em Vila Viçosa, no dia 27 de junho de 1943. Vive em Oeiras. Estreou com o volume Deus, sobre o magno problema da existência de Deus (1988), e ainda publicou, entre outros, Sobre a nossa morte bem muito obrigado (1989), Livro de Afectos (1992) e O Quarto Azul e outros poemas (2011). Traduziu obras de Rainer Maria Rilke, Robert Desnos, Nâzim Hikmet, Ramón Gómez de la Serna e Roger Martin du Gard. Nas palavras de Changuito, Caeiro “usa o silêncio como generosa estratégia. Estudou direito. Tem filhos, netos, amigos. Gosta de ler e de comer. Dorme cedo. Leu tudo. É um sábio.”
Como leitor e admirador de Rui Caeiro, espero que sua luta lúcida na sala de chuto tenha sido completamente vitoriosa, e que tenhamos sempre mais palavras saídas de sua cabeça clara.
“Pois morre-se de muita coisa, de muita coisa
se morre, morre-se por tudo e por nada
morre-se sempre muito
Por exemplo, de frio e desalento
um pouco todos os dias
mas de calor também se morre
e de esperança outro tanto
e é assim: como a esperança nunca morre
morre a gente de ter que esperar
Morre-se enfim de tudo um pouco
De olhar as nuvens no céu a passar
ou os pássaros a voar, não há mais remédio
ó amigos, tem que se morrer
Até de respirar se morre e tanto
tão mais ainda que de cancro
De amar bem e amar mal
de amar e não amar, morre-se
De abrir e fechar, a janela ou os olhos
tão simples afinal, morre-se
Também de concluir o poema
este ou qualquer outro, tanto faz
ou de o deixar em meio, o resultado
é o mesmo: morre-se
Data-se e assina-se – ou nem isso
Sobrevive-se – ou nem tanto
Morre-se – sempre
Muito”
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