Search Results for Tag: literatura
A literatura febril de João Gilberto Noll
Meu primeiro contato com o trabalho de João Gilberto Noll se deu em 1998. Ainda me lembro bem da situação. Era meu primeiro ano na Universidade de São Paulo e vivia pelas livrarias, sem dinheiro, lendo em pé diante das prateleiras. Esses primeiros anos na capital paulista foram tempos de descobertas constantes de escritores do pós-guerra que ainda não haviam sido canonizados e que circulavam menos pela grande imprensa.
A posição de Noll já era mais estabelecida. Sua estreia com o livro de contos O cego e a dançarina havia, afinal, recebido os prêmios Jabuti, da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) e do Instituto Nacional do Livro. Enquanto outros escritores recebem prêmios sem chegar a um público mais amplo, como eram os casos já naquela época de Hilda Hilst ou Orides Fontela, Noll começava naquele fim de século a ser reconhecido como um dos grandes escritores em atividade na República.
Leitores mais jovens como eu podiam chegar a ele de forma completa no volume dos romances e contos do gaúcho reunidos numa edição imponente de capa dura que a Companhia das Letras havia lançado em 1997. Foi justamente este volume que abri no início de seu primeiro romance, A fúria do corpo, publicado originalmente em 1981. O título havia me atraído. Queria corpo e queria fúria.
“O meu nome não. Vivo nas ruas de um tempo onde dar o nome é fornecer suspeita. A quem? Não me queira ingênuo: nome de ninguém não. Me chame como quiser, fui consagrado a João Evangelista, não que o meu nome seja João, absolutamente, não sei de quando nasci, nada, mas se quiser o meu nome busque na lembrança o que de mais instável lhe ocorrer. O meu nome de hoje poderá não me reconhecer amanhã. Não soldo portanto à minha cara um nome preciso.”
— João Gilberto Noll, início de A fúria do corpo (1981).
O que me prendeu imediatamente àquela escrita foi seu fluxo febril, aquele narrador possesso, a obsessão pelo corpo e suas escuridões. Era fluxo de fala e exatamente o que eu buscava na literatura brasileira naqueles anos, após ter lido os escritores principais e mais celebrados entre nós, famosos justamente por sua elegância, sua secura, sua precisão. Eu queria febre e fome, o que já havia feito de Hilda Hilst uma descoberta desnorteante para mim naquela mesma época. Nos cantos escuros da literatura brasileira, eram textos que não negavam nossas experiências corporais que eu buscava e ia encontrando em trabalhos como A obscena senhora D, de Hilda Hilst; Abra os olhos e diga Ah!, de Roberto Piva; O animal dos motéis, de Márcia Denser; Me segura que eu vou dar um troço, de Waly Salomão; e naquela fúria do corpo do narrador de Noll.
Essa obsessão pelo corpo se dava em personagens e histórias que circulavam pelas noites escuras e às margens do país oficial, mas não era inicialmente um interesse pelo submundo e pelos inferninhos o que me havia atraído. Talvez hoje possamos dizer, na verdade, que a recusa a abstrair o corpo e suas escuridões é o que lança essas personagens às margens. Sabemos o que faz o Brasil cristão-carnavalesco com aqueles que se despem nas horas não estipuladas pelo calendário de feriados. Ou que se despem com desejo perante corpos que algum livro sagrado tenha pregado não serem naturais para corpos pelados juntos. Vivemos num país que busca controlar nossos orifícios e secreções. Era também por essas épocas que começava a perceber como essa escrita do corpo parecia ser mais frequente em escritores homossexuais, em mulheres, em negros. Mas o porquê de o corpo parecer por vezes menos abstrato nesses escritores seria assunto para um longo ensaio.
Do livro de estreia de Noll, o conto Alguma coisa urgentemente entraria na antologia de melhores contos brasileiros do século organizada por Italo Moriconi, após ter sido adaptado para o cinema por Murillo Salles ainda na década de 80, no filme Nunca fomos tão felizes (1984). Harmada seria filmado por Maurice Capovilla em 2003, e Hotel Atlântico, por Suzana Amaral em 2009. Nestes últimos anos, Noll era um escritor consagrado, ainda que a sexualidade escancarada de alguns de seus trabalhos ainda causasse desconforto para a crítica. Isso seria assunto para outra longa discussão: a abstração da sexualidade em autores como Mário de Andrade por parte de certa crítica, e como a explicitação política dessa sexualidade em um autor como Lúcio Cardoso condiciona a recepção de sua obra. Na literatura do pós-guerra, isso se torna mais complexo ao pensarmos na recepção de autores como Noll e seu conterrâneo e contemporâneo Caio Fernando Abreu, além de vários outros.
Noll nasceu no dia 15 de abril de 1946, na cidade de Porto Alegre, onde morreu esta madrugada. Publicou, além dos livros aqui mencionados, Bandoleiros (1985), Rastros de Verão (1986), O Quieto Animal da Esquina (1991 – traduzido nos Estados Unidos por Adam Morris como Quiet creature on a corner), Harmada (1993), A Céu Aberto (1996), Canoas e Marolas (1999), Mínimos Múltiplos Comuns (2003), Lorde (2004), Acenos e Afagos (2008), Anjo das Ondas (2010) e Solidão Continental (2012), entre outros. A literatura brasileira se tornou hoje um pouco menos febril com a morte do gaúcho. Ficou um pouco mais limpinha, mais sequinha, como querem alguns que seja o tempo todo. Restam-nos as febres do passado e a espera por novas febres futuras.
Uma pequena homenagem a Derek Walcott
No último dia 17 de março, o mundo perdeu Derek Walcott, poeta e dramaturgo santa-lucense, caribenho e das Américas, que se tornou mundialmente conhecido ao receber o Prêmio Nobel de Literatura em 1992. Meu primeiro contato com seu trabalho se deu ainda na década de 1990, quando a TV Cultura exibiu um documentário inglês sobre o autor, filmado na própria ilha de Santa Lúcia. Com 539 quilômetros quadrados e 162 mil habitantes, o pequeno ponto no mapa se tornou independente apenas no fim da década de 1970 e também deu ao mundo Sir Arthur Lewis, Prêmio Nobel de Economia em 1979.
No documentário, ouvíamos Walcott, dono de um estilo claro e ao mesmo tempo exuberante, lendo alguns dos poemas que já o haviam tornado conhecido no mundo anglófono. Ou talvez a exuberância viesse também daquilo que cantava: a própria beleza tropical de sua ilha natal. À época do documentário, Walcott trabalhava em seu trabalho mais conhecido e citado hoje, o longo poema narrativo e épico Omeros (1990), editado no Brasil em 1994 pela Companhia das Letras com tradução de Paulo Vizioli. Ao publicar Omeros, Walcott já havia porém lançado livros admiráveis como Sea Grapes (1976) e Midsummer (1984), sempre dedicado à paisagem viva das espécies que tinham Santa Lúcia por lar, entre humanos, pássaros e plantas.
Mas também suas experiências como poeta pós-colonial no mundo da língua inglesa, que se encontrava em seus últimos anos de poder imperial e colonial pelo planeta. Como inserir-se nessa língua, que se dizia dos colonizadores? Esta tem sido uma pergunta constante nas poesias das Américas, seja em inglês, português, espanhol ou francês. E foi na vida de pescadores simples que Walcott encontrou seu material épico, conectando sua existência nas águas do Caribe à existência dos homens históricos e míticos nas águas do Mediterrâneo.
A um brasileiro, essa sua lealdade ao mar e aseu povo soa por vezes extremamente familiar pelas canções de Dorival Caymmi e pelos romances de Jorge Amado. E mesmo para leitores brasileiros que já experimentaram essa busca por uma independência poética com os modernistas de 1922, é muito bonito ouvir Walcott defender no documentário a beleza virginal das mangueiras tropicais, tão pouco descritas na poesia, contra a beleza já cantada dos carvalhos europeus. Dos papagaios e não dos rouxinóis. E a força do pescador caribenho Achilles, personagem de sua terra, em relação à força do guerreiro grego Aquiles, personagem de outra terra.
No entanto, como escritor pós-colonial, Walcott cantava a beleza de Santa Lúcia e a força de seu povo sabendo que a grande maioria negra da ilha (85%) havia ali chegado como força de trabalho escrava, sequestrada das margens da África, e era ainda mantida em grande pobreza por uma elite herdeira dos privilégios de um mundo colonial. Foi em meio a essas contradições que Walcott construiu sua obra, sabendo-se poeta santa-lucense e caribenho, em casa na língua inglesa, mas jamais deixando de comunicar-se com as origens históricas, como atesta seu poema A Far Cry From Africa. Poetas importantes do pensamento negro no Brasil vêm lidando com essas questões, como Adão Ventura e Paulo Colina, ainda que suas obras continuem soterradas sob o silêncio da mídia ignorante.
Walcott nasceu em 1930 na capital de Santa Lúcia, a cidade de Castries. Enriqueceu a língua inglesa com os acentos também da língua crioula santa-lucense. Foi um dos gigantes da geração de poetas do pós-guerra, que vamos perdendo aos poucos nesses últimos anos. Restam-nos contemporâneos seus, como o nigeriano Wole Soyinka, o americano John Ashbery, a austríaca Friederike Mayröcker ou o brasileiro Augusto de Campos. Que suas obras sigam nos guiando nestes tempos escuros de recolonização.
Os rostos do poeta Ricardo Aleixo
Reunindo textos escritos entre 2010 e 2015, Impossível como nunca ter tido um rosto é a publicação mais recente do belorizontino Ricardo Aleixo, um dos mais importantes artistas da palavra na República. Eu tento não usar esses superlativos, mas com Aleixo sinto-me mais do que justificado. Pois, se o objetivo deste texto é comentar seu último livro, é impossível (como nunca ter tido um rosto) não pensar em todas as suas atividades neste período que a obra abarca.
Poeta, músico, performer, compositor, produtor cultural, artista plástico, editor, agitador – eu poderia ter resumido tudo com a primeira das palavras: poeta. Mas ainda vivemos dias em que isso não seria compreendido em sua acepção completa, esta que Ricardo Aleixo vem incorporando e encorpando desde os anos 1990. Sua presença tem sido sempre esta, a de pluralizar o ofício único, unificar o ofício plural. Meu xará, prefiro sempre me referir a ele como Mestre Aleixo.
Ler esses textos de meia década reunidos é deparar-se com sua voz e seu gesto, agora no papel. Mas quem quer que o tenha visto em ação não consegue deixar de ouvir sua entonação saltando da página, as quebras de linha surgindo como pausa na garganta. Nossas línguas são, afinal, todas fonográficas. O símbolo visual leva ao som. E Aleixo sabe usar isso para fazer da página palco. Alguns deles são de uma beleza tão direta, tão nua. Mas, dirigidos a quem? Veja, por exemplo, esta pequena cantiga entre a intimidade e o escárnio:
Queridos dias difíceis,
acho que já deu – embora
eu considere prematuro
um definitivo adeus.
Querendo, voltem. Minha
casa é de vocês. Agora,
pensem bem se será mesmo
saudável nos testarmos em
novos convívios tão longos
(também não sou fácil) como
foi desta vez. Menos mal se
vierem em grupos – tantos,
em tais e tais períodos do mês.
Topam correr o risco? Vão resistir
até o fim? Podem vir, eu insisto.
Mas contem primeiro até três.
Aqui, como em certa poesia lírica brasileira, a do minimalismo de cantos e quinas, textos que são objetos pontiagudos, em que a fala controlada é de mansidão enganosa, é um murmúrio com os dentes cerrados, vê-se um lamento, mas lamento sem a autopiedade de certa poesia nossa, de quem se mantém em pé, de pé, não se dobra, e se pode ser lido na clave do canto pessoal, é também um chamamento à resistência. Como nos poemas mínimos de Oswald de Andrade ou de Bertolt Brecht. E sendo um texto de Ricardo Aleixo, vê-se que seu acabamento não é o que ignora as transformações entre registro oral e escrito: o texto é dizível.
Eu comecei a ler o livro nos subterrâneos de Berlim, cruzando a cidade de Leste a Oeste. Sentado entre pessoas que não entendem a língua de Aleixo, a minha, a sua, era uma sensação estranha perceber a voz do poeta controlando minha respiração com o ritmo dos poemas. Dá até febre nos pulmões. E os músculos ficam tesos quando ele nos lança em meio a nossa guerra civil de fricção, há séculos, como neste que é um dos melhores poemas satíricos dos últimos anos (o melhor satírico sempre político), que já postei aqui e o faço mais uma vez com um excerto:
Conheço vocês
pelo cheiro,
pelas roupas,
pelos carros,
pelos anéis e,
é claro,
por seu amor
ao dinheiro.
%
Por seu amor
ao dinheiro
que algum
ancestral remoto
lhes deixou
como herança.
Conheço vocês
pelo cheiro.
Outros textos com esta potência aparecem no livro, como Na noite calunga do bairro Cabula. No bairro de Salvador ocorreu a Chacina do Cabula, em que, durante uma operação da Polícia Militar realizada em 5 de fevereiro de 2015, 12jovens negros foram mortos. Repetindo o escândalo das pseudoinvestigações conduzidas pela polícia e a Justiça, os policiais envolvidos foram “inocentados”, alegando “legítima defesa”. Aleixo escreve: “Morri quantas vezes // na noite calunga? Na noite trevosa, // noite que não finda, / a noite oceano, pleno // vão de sangue, / morri quantas vezes // na noite terrível, / na noite calunga // do bairro Cabula?”
Encerro com uma pequena história: tive o prazer de convidá-lo para minha curadoria de literatura do Festival Artes Vertentes, em Tiradentes, Minas Gerais, em 2014 e 2015. Foi nesta última edição que, apresentando-se na Igreja do Rosário dos Pretos – construída por escravos – pude ouvir seu corpo e ver sua voz invocar o orixá da comunicação, Exú, entre as pedras erguidas no tempo em que o horror existia em meio ao silêncio. Cada sílaba de sua voz parecia destruir e reerguer aquele templo, mas em uma comunidade real, entre poeta e ouvintes. É difícil explicar a força daquilo. Esta é a beleza também da performance: há que se estar presente.
Cansado das mesmices do trato com editoras, sempre em busca da literatura-Omo, Ricardo Aleixo, um dos maiores artistas da República, lançou o livro em edição própria. Que seus concidadãos todos tenham em mãos e garganta, o quanto antes, este álbum de sua presença desperta entre nós.
Oswald de Andrade traduzido: o antropófago que morde em alemão
“A massa ainda comerá o biscoito fino que fabrico”, dizia Oswald de Andrade nos últimos anos de sua vida, naquele conturbado início da década de 1950. Getúlio Vargas equilibrava-se na eterna corda bamba da política nacional, sobre um abismo do qual o separava a linha tesa de sua eleição em 1951. Já sabemos que ele não chegaria ao outro lado. Era sua chegada democrática ao poder após o primeiro governo de 15 anos que lançara na cadeia um homem como Graciliano Ramos e uma mulher como Patrícia Galvão, justamente no momento em que esteve casada com Oswald de Andrade. Esta primeira prisão de Pagu aconteceria no ano em que Oswald publica sua segunda obra de modernização da prosa nacional, Serafim Ponte Grande, em 1931. Mas naquele pós-guerra, eram outros os tempos. O Movimento Modernista havia triunfado e o país embarcava, no entanto, na reação conservadora do Grupo de 45. A posição de Oswald de Andrade naquele momento talvez fosse análoga à do Tom Zé esquecido das décadas de 80 e 90, quando o Tropicalismo que justamente reabilitaria a obra de Oswald parecia ter também triunfado, e a massa passara a comer o biscoito fino que ele fabricou. Ou, ao menos, na receita que homens como Haroldo de Campos, Caetano Veloso e José Celso Martinez Corrêa haviam preparado. Mas isso é assunto para outra hora. Meu pensamento está aqui em 1954. Getúlio Vargas já se matou há dois meses no Rio de Janeiro. Seu corpo foi já enterrado no jazigo da família em São Borja. É o famoso agosto do livro de Rubem Fonseca. Em outubro, o antropófago Oswald de Andrade morre esquecido em São Paulo.
Mas há outra proposta e desafio do autor do Manifesto da Poesia Pau-brasil e do Manifesto Antropófago que nos interessam aqui, esta: “A nunca exportação de poesia. A poesia anda oculta nos cipós maliciosos da sabedoria. Nas lianas das saudades universitárias” – pois foi lançado há pouco na Alemanha e na Áustria pela editora Turia + Kant a tradução para estes dois influentes manifestos num único volume, Oswald de Andrade: Manifeste, que traz ainda dois estudos clássicos de Benedito Nunes e Haroldo de Campos, assim como um minucioso novo ensaio do próprio tradutor, Oliver Precht. O volume sai na coleção “Neue Subjektile”, que publicou textos de Philippe Lacoue-Labarthe, Paul Virilio e Jean-Luc Nancy, e promete para breve o lançamento também de Crise da Filosofia Messiânica, de Oswald pelo mesmo tradutor. Companhia de biscoitos finos internacionais para o brasileiro, aqui finalmente em exportação entre as raras traduções de seu trabalho.
São consideráveis os desafios de uma tradução como esta. Como verter as proposições poéticas de Oswald de Andrade, tão fincadas no contexto brasileiro, para leitores de língua alemã, de um contexto histórico e poético tão diferente do nosso? Oliver Precht chegou a excelentes soluções e também preparou notas consistentes para elucidar ao leitor estrangeiro as passagens imediatamente claras a nós, mas obscuras a quem nasceu longe do nosso inferno paradisíaco particular. São importantes ainda os ensaios de Benedito Nunes e Haroldo de Campos nesse sentido, pontuando a importância de Oswald tanto nacional quanto internacionalmente no campo das vanguardas históricas. Completa esse serviço o longo ensaio de Oliver Precht, Aprender a dar-se de comida aos outros, no qual discute as ideias do brasileiro em relação a autores como Montaigne e Lévi-Strauss. Também tradutor para o alemão do volume de ensaios de Eduardo Viveiros de Castro, A inconstância da alma selvagem (lançado pela Turia + Kant como Die Unbeständigkeit der wilden Seele), Oliver Precht está preparado para esta discussão, e demonstra nessas traduções um interesse pelas culturas dos Brasis que o coloca numa posição bastante particular na lista de excelentes tradutores trabalhando hoje com autores brasileiros.
Pessoalmente, como um brasileiro que vive na Alemanha, foi muito forte retornar a Oswald de Andrade por meio de Oliver Precht neste ano. Gerou em mim perguntas ligadas ao Brasil e outras à Alemanha. O ano de 2016 causou estragos de ciclone. Em toda minha vida não presenciei como cidadão outro ano como este. Comparações entre 2016 e 1964 foram frequentes. A publicação do livro de José Luiz Passos, O marechal de costas (baseado na vida de Floriano Peixoto), levou a uma conversa sobre paralelos entre nossos tempos de Michel Temer e os daquele outro vice. Venho pensando em outro paralelo, que tem aparecido menos na conversa, mas o faço aqui sem analogias simplistas, tentando apenas entender onde começam nossas agruras que não acabam: entre 2016 e aquele 1954 do início deste texto, quando morrem duas figuras incontornáveis da modernização do país: Getúlio Vargas e Oswald de Andrade. Como se tecem esses nódulos todos das nossas modernizações de mutirão e elite a cada solavanco desta República que sempre parece capenga?
Quanto às perguntas ligadas à Alemanha, o que pode a Antropofagia do brasileiro fazer em um ambiente de xenofobia e fechamento das fronteiras como vemos hoje irradiando de Berlim, de Leipizig, de Dresden? Como podem ser compreendidas as perguntas de Oswald em relação à cultura autóctone e colonial de uma terra, num ambiente como o alemão, onde “terra” e “povo” são parte do vocabulário de uma direita que teme e odeia o outro, estando bem longe de o respeitar a ponto de querer assimilar ritualmente suas forças? São perguntas para as quais ainda não tenho resposta.
Nós, lusófonos mimados
“Vocês já imaginaram a desgraça que é escrever em português? Sometimes, I wonder. Quem é que sabe português nesse planeta, fora Brasil, Angola, Moçambique, Cabo Verde, Macau?” – é de Paulo Leminski essa citação, de seu texto Arte in-útil, arte livre?, no qual também escreveu que “a gente já nasce numa língua periférica, escrever uma coisa em português e ficar calado mundialmente é mais ou menos a mesma coisa”.
Muitos escritores brasileiros recorrem a essa citação de Leminski. Eu mesmo já o fiz. Ao participar de qualquer leitura ao lado de escritores de língua inglesa, francesa ou alemã, vem à mente esta fala do poeta de Curitiba. No mesmo texto, ele reconhece que a marginalidade da língua portuguesa no mundo não é a mesma de línguas como o basco ou o catalão, e que esta periferia está ligada a condições históricas e econômicas. Uma língua tem a força do império que a fala. A primazia da língua inglesa no mundo literário advém da força imperial e imperialista do Reino Unido, primeiro, e dos Estados Unidos a partir da Segunda Guerra. Mas vocês já pararam para pensar nesta marginalidade das línguas basca e catalã, por exemplo, e da posição do português?
Recentemente, estive na Eslovênia para uma leitura, e foi interessante ler ao lado de Stanka Hrastelj, uma poeta eslovena, em seu país de 2 milhões de habitantes. É o número de habitantes de uma cidade de médio porte no Brasil. E a língua eslovena é falada apenas ali, na Eslovênia. Isso é solidão.
Estima-se que 250 milhões de pessoas falem português como língua materna no mundo. São cerca de 280 milhões com os que a falam como segunda língua. O português é a língua mais falada no hemisfério sul da Terra. É a quinta língua mais falada no mundo como um todo e a terceira mais falada no hemisfério ocidental. Como o próprio Leminski lembrou-se, somos também vários países de expressão lusófona. E, no entanto, mal nos lemos uns aos outros. Um poeta como Manuel António Pina, português, ganhador do Prêmio Camões em 2011, mal foi editado no Brasil. Quem conhece a moçambicana Noémia de Sousa?
O prestígio da língua inglesa é perpetuado por nós mesmos. Na semana passada, deparei-me com uma lista dos lançamentos de livros traduzidos previstos para 2017. Era praticamente um festival de autores europeus e americanos. Havia alguns poucos autores do Extremo Oriente, mas não pude identificar muitos autores de fora do âmbito cultural do Noroeste. Era um exemplo singular de eurocentrismo galopante. Basta que o New York Times noticie o espirro de um escritor em Nova York para que o espirro seja traduzido no Brasil, com tanta gente espirrando igualzinho entre o Oiapoque e o Chuí, ou na Baixa em Lisboa, ou no bairro de Ingombota em Luanda. Nós próprios nos isolamos dessa forma. É claro que o desejo de inserção no mundo literário global é legítimo. Mas a verdade é que não se quer realmente ser lido no mundo: quer-se ser lido em Manhattan. Nem Camden satisfaria. Sim, é uma alegria verdadeira ver a paixão recente dos norte-americanos por Clarice Lispector, por exemplo. Que alguns melhor informados estejam lendo Hilda Hilst por lá. Que Lúcio Cardoso tenha acabado de ser traduzido.
Mas aqui torna-se necessário pensar também no caráter imperialista da língua portuguesa, expressão de uma força colonial repressora. Afinal, assim como o inglês e o árabe, a língua portuguesa foi responsável pela morte de centenas de línguas, e mesmo as que resistem em nosso território continuam a morrer ignoradas.
Feedback
Comments deactivated