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Os autores esquecidos do arquipélago Brasil

Capa de “Poesia Completa”, de Gilka Machado

Há poucos dias, conversava com um amigo americano sobre o fato de que se traduz pouco nos Estados Unidos. Ambos lamentávamos que não houvesse mais interesse por literatura estrangeira no norte, ainda que algumas editoras independentes como a Action Books e a Burning Deck Press, entre outras, se esforcem bastante neste sentido, assim como a excelente revista Asymptote Journal. No entanto, eu disse a ele que essa insularidade dos EUA tinha ao menos um efeito positivo para eles. Pois, como há a demanda constante de escritores e quer-se que estes escritores sejam americanos, há uma pesquisa maior entre eles sobre os autores que possam ter sido ignorados enquanto vivos, ou que ainda produzam em obscuridade.

Editoras comerciais e universitárias publicam com uma frequência maior as obras de autores do passado, completamente desconhecidos ou esquecidos. O cânone americano parece ter um caráter de processo interminável muito mais do que entre nós, onde a inflação bibliográfica – sempre sobre os mesmos autores – torna a lista de escritores estudados uma procissão de santos imutável. Já foi discutido como isso está claro na própria palavra “cânone”: santo não cai do altar.

Há esforços importantes no Brasil que precisam receber maior atenção. Para mencionar dois recentes, a editora da Universidade Federal do Pará começou a relançar a obra completa do poeta paraense Max Martins, e o Selo Demônio Negro, capitaneado por Vanderley Mendonça, acaba de lançar a poesia completa da carioca Gilka Machado. Outros acontecimentos importantíssimos são a reedição dos romances do mineiro Campos de Carvalho (Editora Autêntica) e a reedição das peças do dramaturgo paulista Plínio Marcos (Funarte). Fico feliz que esss iniciativas tenham encontrado eco na grande imprensa, com artigos em jornais de São Paulo e do Rio de Janeiro. Um dos problemas dos grandes jornais paulistanos e cariocas é comportarem-se como imprensa local em questões de cultura, ainda que tirem todas as vantagens possíveis de seu alcance nacional quando isso é conveniente.

Precisamos conhecer o que teve valor histórico, mas isso jamais deve se sobrepor ao valor artístico e político que as obras podem ter para nosso tempo, mesmo que os seus contemporâneos as tenham ignorado. Há os casos de autores que receberam atenção quando vivos, mas caíram em obscuridade após sua morte, como a poeta mineira Henriqueta Lisboa e o romancista carioca Marques Rebelo. Há os autores que têm ainda suas obras defendidas por leitores apaixonados e por escritores que os elencam entre suas influências maiores, autores cultuados por um pequeno grupo, mas que precisam encontrar reedições de alcance nacional, como o prosador catarinense Manoel Carlos Karam e o poeta mineiro Adão Ventura.

Muitas vezes, a obra de um escritor permanece num limbo de silêncio e poeira de sebos ou escondidos nas bibliotecas particulares de outros escritores, até que suas obras explodem ou reexplodem quando recebem a devida atenção. Basta pensar na obra do poeta mais popular do Brasil nas três últimas décadas, a de Manoel de Barros, que pôde alcançar a leitura apaixonada dos brasileiros quando começou a circular pela editora Record. O primeiro livro do autor, Poemas concebidos sem pecado, é de 1937. O poeta era três anos mais novo que Vinícius de Moraes e quatro anos mais velho que João Cabral de Melo Neto. Sua linguagem de louvor do terreno já vinha sendo formada desde a década de 1960, com a publicação de Compêndio para uso dos pássaros (1960) e Gramática expositiva do chão (1966), mas permaneceu escondida até a década de 1990. E o que dizer dos casos excepcionais de Hilda Hilst e Roberto Piva, cultuados por poucos por tanto tempo, e hoje figuras incontornáveis da literatura brasileira do pós-guerra?

Muitas vezes basta o esforço profissional de uma pequena editora competente. Um dos acontecimentos literários do ano passado, em minha opinião, foi a atenção dada a Leonardo Fróes, que muitos consideram um dos maiores poetas vivos do Brasil, quando a editora Azougue lançou uma antologia de seus poemas, Trilha, e o poeta passou com sucesso pela FLIP. Dono de uma obra extensa, consolidada, como autor e tradutor, está mais do que na hora de que seu trabalho alcance um grande número de leitores. Mas quanto é necessário que um autor escreva para isso?

Nós temos um fetiche compreensível pelos autores de obras vastas, aquelas que cabem mais tarde em tijolos de papel-bíblia pela editora Nova Aguilar. O que fazer dos autores que desaparecem, deixando-nos apenas algumas poucas jóias? Raduan Nassar, autor de um romance, uma novela e alguns contos, não ganhou no ano passado o maior reconhecimento a um escritor da língua, o Prêmio Camões? Uma das leituras inesquecíveis que fiz nos últimos anos foi Uns contos, de Ettore Bottini, seu único livro, com apenas 120 páginas. O livro é todo ele uma pequena joia.

Aos que mantêm os olhos e ouvidos abertos, vêm as descobertas. Ontem, o poeta e professor Marcus Fabiano Gonçalves comentou sobre o trabalho de Waldemar das Chagas, autor do livro Malungo (1954). Após ler os poucos poemas encontrados, ficou apenas o desejo de ver também este autor circulando em escala nacional. Outros autores que recomendo descobrir e espero que encontrem edições, reedições e leituras críticas são Paulo Colina, Stela do Patrocínio, Maria Ângela Alvim, Rosário Fusco, Marly de Oliveira, Arnaldo Xavier, Orlando Parolini, entre tantos outros. Vamos trabalhar, editores.

Data

quarta-feira 01.03.2017 | 08:26

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Sobre “Uns contos”, de Ettore Bottini

Com sua morte prematura em dezembro de 2013, durante uma cirurgia cardiovascular, sabíamos que, com Ettore Bottini, o país perdia um de seus melhores artistas gráficos, um profissional competente e apaixonado dos bastidores da literatura. Visível, mas invisível, como tantos profissionais excelentes de bastidores na labuta de fazer os grandes textos chegarem a seus leitores.

unscontosLuiz Schwarcz, editor da Companhia das Letras, lamentou a morte do colega em texto que o chamava de um dos grandes e primeiros responsáveis pelo aspecto visual dos livros da editora. Bottini projetou para a Companhia das Letras, entre dezenas de outras editoras, capas de volumes dos brasileiros Alfredo Bosi, José Paulo Paes e Decio de Almeida Prado, assim como dos estrangeiros Jean Starobinski, Edmund Wilson, Roger Bastide e Gérard Lebrun, entre inúmeros outros. Seus projetos de capa para as redescobertas de grandes livros, como Lavoura Arcaica e Um Copo de Cólera, de Raduan Nassar, são emblemáticas de seu estilo limpo, legível, elegante. Sem firulas ou fuzuê, alguém diria lá pelas bandas onde nasci, ainda que o meu próprio uso dessas palavras possa parecer firula e fuzuê. Mas, se faço uso dessas palavras, é por motivo que elaboro adiante.

A publicação póstuma de Uns contos (São Paulo: Cosac Naify, 2014), volume com 11 narrativas curtas de Bottini, seguidas de sete “aparas”, ou começos de contos, mostra-nos que perdêramos em 2013 não apenas um excelente artista gráfico, mas também um impecável artista textual, um escritor de verdade escondido em meio aos celebrados incapazes. E que nos deixou alguns dos melhores contos da literatura brasileira deste novo século. O escritor cuiabense Joca Reiners Terron o diz de maneira clara e direta no título de sua resenha: Livro Uns Contos, de Ettore Bottini, já nasce clássico [Folha de S. Paulo, 22.03.14]. Não poderia estar mais de acordo. Terron fala ainda da “linguagem de talhe clássico, da minúcia vocabular com predileção por expressões incomuns (’embarafustou para a rua’, lê-se em Todos os Medos) e o jargão de ambientes que ressurgem no entremear das histórias, como o do turfe, da marinha e da pesca fluvial, e em muito bem-vindas paisagens rurais que destoam da onipresença urbana no conto brasileiro contemporâneo”.

Bottini nasceu em Blumenau, Santa Catarina, em 1948. Estudou na Marinha de Guerra e chegou a iniciar a faculdade de Arquitetura antes de dedicar-se à arte gráfica, trabalhando para várias editoras e projetando centenas de livros. Sua passagem pela Marinha nos demonstra a origem de seu uso seguro do vocabulário e certa rotina do mar para um conto como Irmãos de Armas, sobre marujos brasileiros em um navio atracado em Montevidéu, onde perambulam pela cidade. O mar retorna em Material para a um Conto, que nos leva ao policiamento britânico dos mares após o Aberdeen Act de 1845 – entre a Rainha Vitória, da Inglaterra, e Pedro 2º, do Brasil –, num texto que ressuscita de forma convincente, em plena literatura brasileira, a narrativa sobre piratas.

Nas palavras de Terron, as paisagens “rurais” de Bottini, talvez resultem de uma vida iniciada neste espaço cultural algo indefinido, que atravessa diversas fronteiras estaduais. Um espaço geográfico a que geralmente damos o nome de “interior” e que perpassa torrões de terra de Goiás e Minas Gerais a Paraná e Santa Catarina, longe dos litorais e capitais, passando por cidadezinhas de São Paulo e Mato Grosso. Mudam-se as comidas e os sotaques, mas permanece uma certa modorra de verões gastos em pescarias à beira de rios e lagos, onde decisões familiares importantes são tomadas em churrascos em meio a perrengues sob a sombra de mangueiras.

Senti um reconhecimento desse ambiente cultural interiorano, tendo nascido nas terras caipiras de São Paulo, em contos como As Provisões do Tempo, sobre um dono envelhecido da mercearia de uma cidadezinha que se recusou a crescer; e Hey, Joe, sobre o neto matador de aluguel de uma família próspera de fazenda. Há ainda O Mesmo Rio, sobre a reunião dos membros de uma família na terra natal antes do retorno à capital.

Em sua escrita, está presente a mesma elegância e legibilidade de suas capas. Sim, há contos de “talhe clássico”, nos quais Bottini recusa epifanias construídas. Não há revelações repentinas, não há catástrofes surpreendentes. Não há estrela cadente, sem aviso: há a descoberta de que o cometa Halley passará em 14 anos. Tudo à espera, até o maravilhoso e extraordinário tem anúncio. Nada fora dos eixos, ainda que os eixos sejam tortos. A espera do próprio destino, igual ao do amigo velho, enquanto se observa o desenrolar das decepções da velhice. Há o luto lento em um conto tão bonito como Mundo Natural, no qual um homem, após viajar milhares de quilômetros da capital ao interior, onde enterrou o pai, e então de volta à sua casa, chega à descoberta do que é a dor da perda de forma gradual, como anestesia que perde o efeito lentamente, observando uma mariposa presa em sua cozinha.

Ainda que algumas de suas expressões possam parecer incomuns, seu vocabulário sempre parece adequado ao ambiente em que surgem para definir, nomear, e, num tom baixo, sem gritaria, louvar. A um leitor da cidade grande, talvez pareça estranho ler “coaxar” se há anos não vê um sapo. Se lê “brim”, dentro de seus jeans, sem jamais ter visto um daqueles velhos senhores em suas calças de brim. Para certos leitores, um lambari será sem dúvida coisa raríssima, e capim é só algo que se vê bordeando rodovias. Por que haveria de aparecer com frequência na literatura? Estamos preocupados com coisas maiores. Não, não vejo firulas nem fuzuê, tudo o que vejo é precisão.

Bottini parece-me um grande observador da alma humana, mas não cai jamais na tentação de criar situações inusitadas e fora do comum para desentranhar verdades escondidas sob as ilusões de si mesmos, que talvez pudessem enovelar suas personagens. Sua tática parece ser simplesmente a de olhar com calma, dar-lhes tempo para que se revelem. Encarar essas pessoas como se escondido atrás de uma cortina puída, deixando-as em seus ambientes naturais, para que no minuto em que mais se sintam protegidas dos olhos de todos, suas naturezas saltem à pele e a pipoquem, façam-se visíveis. E tudo isso no espaço exíguo do conto.

Sim, seus contos, tão poucos, fazem muito. Há os que possuem realmente o talhe clássico de que falou Terron. Teriam sido grandes textos entre os nossos modernistas e são grandes textos entre nós, hoje. Perenes. Mas que dizem muito de um mundo que persiste por trás das grandes notícias das grandes cidades, ainda que desapareçam cada vez mais, inundados por barragens para gerar eletricidade para as grandes notícias destas mesmas capitais. Histórias pequenas, mas grandes, de gente pequena, mas grande, perdidas na pequenez crônica do interior. Unem-se a contos que ficarão para sempre como clássicos em minha cabeça, como alguns de Mário de Andrade e Otto Lara Resende, para citar dois com os quais vejo afinidades estilísticas em Bottini.

Por fim vale dizer que, sob sua sutileza, há no livro contos que apontam sim caminhos novos e possíveis para a produção contemporânea, como aqueles exemplares Um Turno de Serviço, que retoma o episódio do Gólgota sob perspectivas bastante singulares, ou Material para um Conto, entremeando história e ficção. O Brasil tem certa obsessão por celebrar apenas os grandes autores de grandes obras, as que possam ocupar mil páginas ou cinco volumes em capa dura e papel-bíblia. Com isso, muitas vezes perde o prazer intenso de escritores discretos como Ettore Bottini, autor de um dos clássicos do século 21 neste Uns Contos. Tento contribuir aqui para que seus contos alcancem capitais e interiores.

Data

quinta-feira 07.04.2016 | 14:26

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