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No cemitério com Sebald
Não muito longe de onde moro em Berlim, no bairro de Prenzlauer Berg, na antiga Berlim Oriental, há um cemitério pequenininho, o Friedhofspark Pappelallee, ou, literalmente, Cemitério-Parque da Pappelallee. A palavra parque é um dos motivos pelos quais eu, por muito tempo, não percebi que se tratava de um cemitério, apesar de ter vivido naquela rua por alguns anos. O cemitério, que já não recebe novos moradores definitivos, é hoje em dia usado como um parque. No verão, vive cheio de mães e crianças, todas muito vivas. Quando finalmente percebi que era um cemitério, aquilo me causou muita estranheza.
No Brasil, quando minha mãe nos levava ao cemitério de Bebedouro para lavar o jazigo da família, naquele ritual de Dia dos Finados que já parece ter caído em desuso em São Paulo (toda tradição e todo ritual morrem primeiro em São Paulo), ao chegar em casa ela nos despia por completo, e lavava tudo, inclusive os sapatos. Nunca me esqueci da primeira vez que perguntei por quê: “não se traz morte para casa”, ela disse. É claro que havia um motivo, digamos, empírico para a coisa. Acreditando que o lugar estava cheio de micróbios, ela achava melhor lavar as crianças. Mas em mim calou fundo o sentido místico da coisa: não se traz morte para casa. Entre a ciência dos micróbios e a superstição do mórbido, antes estar seguro. Cemitérios, por toda a minha vida, ficaram marcados como lugares que, se possível, alguém deve evitar.
Há uma diferença grande entre os cemitérios brasileiros e alemães, é claro. Todos de concreto, nos quais a vida se esgueira como erva-daninha entre rachaduras, os cemitérios brasileiros são mesmo lugares lúgubres. Na Alemanha, são os lugares mais verdes e agradáveis que alguém pode encontrar, às vezes, num raio de quilômetros. Em 2012, após dizer a amigos mais uma vez que era óbvio que não, eu não queria dar uma volta no cemitério, e após terem rido de mim pela óbvia besteira supersticiosa minha, resolvi que me curaria dela na marra: estava prestes a começar a ler um livro novo e decidi que só o leria, nas próximas semanas, no cemitério. Era verão. Eu estava passando alguns meses em Kreuzberg, próximo ao complexo dos quatro cemitérios da Bergmannstrasse. O livro em questão era Os Anéis de Saturno (1995), do alemão W.G. Sebald (1944–2001). Não sei se estava preparado para o quão apropriada era a escolha do acaso destineiro.
O cemitério que passei a visitar para ler o livro era o Friedrichswerderscher Friedhof, próximo à Marheinekeplatz. É um lugar bastante calmo e bonito. Eu nem me embrenhava muito nele. A alguns metros da entrada há um banco, onde me sentava. Havia túmulos às minhas costas e à minha frente. Ali comecei a descida em espiral que é o livro de Sebald, talvez o mais celebrado autor alemão (fora da Alemanha) dos últimos 20 anos. Na Alemanha, a fortuna crítica de Sebald é estranha, como a de Celan (mas isto é assunto para outro texto).
O livro tem como subtítulo Uma peregrinação inglesa. O narrador, sem nome, que se confunde com o autor, narra sua caminhada pelo leste do país, em East Anglia (é deste povo antigo que deriva o nome Inglaterra), em Norfolk e Suffolk. O narrador descreve o que vê em sua caminhada, pausando para o que parecem digressões históricas sobre vários assuntos aparentemente desconexos: do mais famoso tradutor do alemão para o inglês, Michael Hamburger, ao naturalista inglês Thomas Browne (1605 – 1682); da introdução de bichos-da-seda à Europa e fabricação do tecido ao disco dourado que seguiu na Voyager 2 em sua viagem ao Espaço; de uma visita à Chestnut Tree Farm, onde um certo Thomas Abrams vem dedicando anos de sua vida a construir uma réplica em miniatura do Templo de Salomão, aos horrores da colonização belga no Congo.
Se no começo o leitor parece perder-se, esperando quais as ligações entre um naturalista inglês e uma espaçonave, entre bichos-da-seda e uma réplica em miniatura do Templo de Salomão, ele não tarda a ser tomado pela mão por Sebald, que vai fechando os círculos narrativos, demonstrando a ligação entre todas estas coisas, mas não de forma definitiva, para que sigamos em nossa queda em espiral pelos escombros da História. É uma lenta narrativa da decadência. Como se, enquanto o Anjo de Klee olha para trás, descrito por Walter Benjamin como encarando a tempestade da História que vem às costas, Sebald nos levasse por uma peregrinação não apenas pelo leste da Inglaterra, mas pelos escombros que se amontoam aos pés daquele anjo com torcicolo.
Curei-me do horror a cemitérios. Mas fiquei alguns dias mal, sem conseguir sair do cemitério que é a História. Um livro que se quer despretensioso, um misto de diário de caminhada e meditação, Os Anéis de Saturno é um dos livros mais fascinantes que já li. Talvez tenha sido a última vez que senti febre ao ler um livro. Mas, num cemitério ou num parque, sente febre apenas quem está vivo. E os vivos criam fronteiras entre terras e suas histórias para esquecer que os mortos do mundo estão todos de mãos dadas, à nossa espera.
Autores alemães e sua influência no Brasil
Quando se pensa na literatura brasileira e em sua relação com as literaturas de outras nações, percebe-se que ela trilhou caminhos parecidos aos de outros países do continente americano. A literatura latino-americana sempre teve uma tendência francófila. Foi em Paris que César Vallejo sonhou sua morte con aguacero, e foi na mesma cidade que Paulo Prado afirma que Oswald de Andrade descobriu o Brasil. Escritores brasileiros importantes dedicaram-se à tradução de franceses, como Marcel Proust, vertido ao português por Mario Quintana e Carlos Drummond de Andrade, e a poesia francesa teve um papel importante até meados da década de 1950, quando pensamos na posição central que o Grupo Noigandres dedica a Stéphane Mallarmé. O idioma francês, lingua franca de cortes e cenas literárias por muito tempo, estendeu sua influência ao simbolismo russo de Alexander Blok, do brasileiro Cruz e Sousa, e o surrealismo deixou sua marca em literaturas do mundo todo, especialmente na latino-americana, ainda que tenha tido menores adeptos no Brasil.
A partir da década de 1950, especialmente com os Beats norte-americanos e a ascendência política dos Estados Unidos no pós-guerra, este papel começou a ser tomado pela língua inglesa. Já se escreveu muito na crítica de arte sobre a transferência da Capital Cultural do mundo no pós-guerra, de Paris para Nova York. Na literatura, a mudança foi a mesma. Muitos escritores contemporâneos brasileiros, especialmente poetas, mantêm uma relação importante com a literatura francesa, como vemos no trabalho que Carlito Azevedo, que divulgou no Brasil autores do século 21, como Christophe Tarkos e Natalie Quintane. Marília Garcia, por sua vez, mantem um trabalho de pesquisa pioneiro sobre a poesia de Emmanuel Hocquard. A literatura norte-americana, no entanto, parece comandar a atenção da maior parte dos autores brasileiros contemporâneos.
Agora qual o papel da literatura alemã no diálogo de autores brasileiros com estrangeiros? Os alemães tiveram seu primeiro momento de grande influência literária com seu Romantismo, certamente. Goethe e Heinrich Heine tiveram seus admiradores no país. Machado de Assis e Fagundes Varela traduziram Heine, e Castro Alves se basearia no poema “Das Sklavenschiff” (1853) para a composição de seu poema mais famoso, “O Navio Negreiro” (1869). Manuel Bandeira traduziria ainda, além de Goethe e Heine, peças como Maria Stuart, de Schiller. Também o expressionismo germânico encontrou seus divulgadores no Brasil, com Georg Trakl traduzido por André Vallias, por exemplo, que há poucos anos deu à língua portuguesa também seu Heinrich Heine definitivo, em traduções verdadeiramente geniais para poemas do alemão em português. Augusto de Campos traduziu com admiração August Stramm, outro expressionista até então pouco discutido no Brasil, e dedicou-se a traduções novas de poemas de Rainer Maria Rilke e de autores especialmente difíceis, como Arno Holz e Quirinus Kuhlman.
Do modernismo alemão, certamente o autor mais influente no Brasil foi Bertolt Brecht, em especial no teatro. Dentre os romancistas, Thomas Mann foi traduzido e muito lido, como em todo o mundo, mas não se pode dizer que tenha deixado marcas. O maior romance do Modernismo alemão e talvez uma das obras mais experimentais da língua alemã, Berlin Alexanderplatz (1929), de Alfred Döblin, jamais parece ter encontrado a mesma acolhida de culto das obras do austríaco Robert Musil, por exemplo.
Os poetas concretos estabeleceram pela primeira vez um diálogo mais forte e direto com a literatura alemã a partir da fundação do movimento da Poesia Concreta. Na Alemanha, fala-se sobre a dupla nacionalidade da poesia concreta com mais frequência que no Brasil. Os diálogos de Eugen Gomringer e Max Bense com Haroldo de Campos e Décio Pignatari são momentos altos da relação entre as literaturas das duas línguas, e o livro Inteligência Brasileira, de Bense, é um belo momento de encontro entre duas culturas. Mas além da relação do Grupo de 45 com a ala mais órfica da poesia germânica, com seu culto a Rilke, e a relação do Grupo Noigandres com sua ala mais construtivista, muitos autores interessantes e amplamente conhecidos, amados e lidos na Alemanha permanecem completamente desconhecidos no Brasil.
Talvez um dos exemplos mais gritantes seja o poeta Rolf Dieter Brinkmann (1940–1975). Brinkmann é um dos poetas mais populares da Alemanha. Tradutor de Frank O´Hara e introdutor na poesia alemã de certas técnicas que vinham dos Beats, sua poesia está entre aquelas que são apreciadas até mesmo (e talvez especialmente) pelos leitores menos contumazes de poesia. Sua vida e morte prematuras adicionam, é claro, pitadas de mito à sua popularidade. Morto em um atropelamento na cidade de Londres, quando voltava bêbado para casa após uma leitura, talvez ele exerça sobre os leitores alemães o mesmo charme que Paulo Leminski parece ter sobre alguns brasileiros, guardadas as devidas diferenças estilísticas entre suas obras. Mas mesmo Brinkmann flertou com a canção popular em seus poemas, ainda que em seu caso a prática o unisse à linhagem de Heine, quando a de Leminski estava na canção popular. No entanto, as traduções de André Vallias para Heine, usando a tradição do samba para ligar os versos de Heine à mente brasileira, mostram que a literatura brasileira e a alemã não precisam ser tão estrangeiras assim uma à outra.
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