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Oswald de Andrade traduzido: o antropófago que morde em alemão
“A massa ainda comerá o biscoito fino que fabrico”, dizia Oswald de Andrade nos últimos anos de sua vida, naquele conturbado início da década de 1950. Getúlio Vargas equilibrava-se na eterna corda bamba da política nacional, sobre um abismo do qual o separava a linha tesa de sua eleição em 1951. Já sabemos que ele não chegaria ao outro lado. Era sua chegada democrática ao poder após o primeiro governo de 15 anos que lançara na cadeia um homem como Graciliano Ramos e uma mulher como Patrícia Galvão, justamente no momento em que esteve casada com Oswald de Andrade. Esta primeira prisão de Pagu aconteceria no ano em que Oswald publica sua segunda obra de modernização da prosa nacional, Serafim Ponte Grande, em 1931. Mas naquele pós-guerra, eram outros os tempos. O Movimento Modernista havia triunfado e o país embarcava, no entanto, na reação conservadora do Grupo de 45. A posição de Oswald de Andrade naquele momento talvez fosse análoga à do Tom Zé esquecido das décadas de 80 e 90, quando o Tropicalismo que justamente reabilitaria a obra de Oswald parecia ter também triunfado, e a massa passara a comer o biscoito fino que ele fabricou. Ou, ao menos, na receita que homens como Haroldo de Campos, Caetano Veloso e José Celso Martinez Corrêa haviam preparado. Mas isso é assunto para outra hora. Meu pensamento está aqui em 1954. Getúlio Vargas já se matou há dois meses no Rio de Janeiro. Seu corpo foi já enterrado no jazigo da família em São Borja. É o famoso agosto do livro de Rubem Fonseca. Em outubro, o antropófago Oswald de Andrade morre esquecido em São Paulo.
Mas há outra proposta e desafio do autor do Manifesto da Poesia Pau-brasil e do Manifesto Antropófago que nos interessam aqui, esta: “A nunca exportação de poesia. A poesia anda oculta nos cipós maliciosos da sabedoria. Nas lianas das saudades universitárias” – pois foi lançado há pouco na Alemanha e na Áustria pela editora Turia + Kant a tradução para estes dois influentes manifestos num único volume, Oswald de Andrade: Manifeste, que traz ainda dois estudos clássicos de Benedito Nunes e Haroldo de Campos, assim como um minucioso novo ensaio do próprio tradutor, Oliver Precht. O volume sai na coleção “Neue Subjektile”, que publicou textos de Philippe Lacoue-Labarthe, Paul Virilio e Jean-Luc Nancy, e promete para breve o lançamento também de Crise da Filosofia Messiânica, de Oswald pelo mesmo tradutor. Companhia de biscoitos finos internacionais para o brasileiro, aqui finalmente em exportação entre as raras traduções de seu trabalho.
São consideráveis os desafios de uma tradução como esta. Como verter as proposições poéticas de Oswald de Andrade, tão fincadas no contexto brasileiro, para leitores de língua alemã, de um contexto histórico e poético tão diferente do nosso? Oliver Precht chegou a excelentes soluções e também preparou notas consistentes para elucidar ao leitor estrangeiro as passagens imediatamente claras a nós, mas obscuras a quem nasceu longe do nosso inferno paradisíaco particular. São importantes ainda os ensaios de Benedito Nunes e Haroldo de Campos nesse sentido, pontuando a importância de Oswald tanto nacional quanto internacionalmente no campo das vanguardas históricas. Completa esse serviço o longo ensaio de Oliver Precht, Aprender a dar-se de comida aos outros, no qual discute as ideias do brasileiro em relação a autores como Montaigne e Lévi-Strauss. Também tradutor para o alemão do volume de ensaios de Eduardo Viveiros de Castro, A inconstância da alma selvagem (lançado pela Turia + Kant como Die Unbeständigkeit der wilden Seele), Oliver Precht está preparado para esta discussão, e demonstra nessas traduções um interesse pelas culturas dos Brasis que o coloca numa posição bastante particular na lista de excelentes tradutores trabalhando hoje com autores brasileiros.
Pessoalmente, como um brasileiro que vive na Alemanha, foi muito forte retornar a Oswald de Andrade por meio de Oliver Precht neste ano. Gerou em mim perguntas ligadas ao Brasil e outras à Alemanha. O ano de 2016 causou estragos de ciclone. Em toda minha vida não presenciei como cidadão outro ano como este. Comparações entre 2016 e 1964 foram frequentes. A publicação do livro de José Luiz Passos, O marechal de costas (baseado na vida de Floriano Peixoto), levou a uma conversa sobre paralelos entre nossos tempos de Michel Temer e os daquele outro vice. Venho pensando em outro paralelo, que tem aparecido menos na conversa, mas o faço aqui sem analogias simplistas, tentando apenas entender onde começam nossas agruras que não acabam: entre 2016 e aquele 1954 do início deste texto, quando morrem duas figuras incontornáveis da modernização do país: Getúlio Vargas e Oswald de Andrade. Como se tecem esses nódulos todos das nossas modernizações de mutirão e elite a cada solavanco desta República que sempre parece capenga?
Quanto às perguntas ligadas à Alemanha, o que pode a Antropofagia do brasileiro fazer em um ambiente de xenofobia e fechamento das fronteiras como vemos hoje irradiando de Berlim, de Leipizig, de Dresden? Como podem ser compreendidas as perguntas de Oswald em relação à cultura autóctone e colonial de uma terra, num ambiente como o alemão, onde “terra” e “povo” são parte do vocabulário de uma direita que teme e odeia o outro, estando bem longe de o respeitar a ponto de querer assimilar ritualmente suas forças? São perguntas para as quais ainda não tenho resposta.
O desacordo ortográfico
Sobre língua não se legisla. Quando isso ocorre, é sempre um ato de cima para baixo, ordens do topo da pirâmide para o povo na areia escaldante, e ocorre com frequência num contexto de dominação e incompreensão das diferenças que enriquecem nossa fala.
Um dos primeiros atos dessa natureza no Brasil foi o do Marquês de Pombal, que baniu em 1758 a língua geral paulista, derivada do tupi e que se falava em São Paulo, por exemplo, tornando a língua portuguesa obrigatória na colônia. O nheengatu é a única das línguas crioulas que sobreviveu, sendo falada ainda hoje no norte do país.
Não, este não é um texto de um Policarpo Quaresma, que gostaria de ver o tupi como língua oficial do país. Eu certamente teria gostado muito de ter crescido bilíngue, falando o português e o tupi ou uma das línguas crioulas derivadas deste, como a língua geral paulista ou o nheengatu. Como teria sido nossa relação com a terra e com os povos nativos que nos formaram se isso tivesse ocorrido? Talvez a pergunta de Oswald de Andrade siga válida: “Tupy or not tupy, that is the question.”
Estou certo de que muitos gostam de pensar que não há outros escritores que amem a língua portuguesa tanto quanto ele ou ela. Eu tenho um prazer imenso em falá-la. Quando faço leituras públicas dos meus textos, algumas pessoas já disseram que elas estranham a forma como leio, por articular demais as sílabas. Eu articulo mesmo. Gosto de cada som, de ir do alto ao baixo na língua – tanto neste conjunto de signos como com o órgão que escondo entre os dentes.
Na linda canção Língua, Caetano Veloso o diz bem: “Gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões / Gosto de ser e de estar / E quero me dedicar a criar confusões de prosódia / E uma profusão de paródias / Que encurtem dores / E furtem cores como camaleões / Gosto do Pessoa na pessoa / Da rosa no Rosa / E sei que a poesia está para a prosa / Assim como o amor está para a amizade / E quem há de negar que esta lhe é superior? / E deixe os Portugais morrerem à míngua /’Minha pátria é minha língua’ / Fala, Mangueira! Fala!”
A relação do brasileiro com a língua portuguesa me parece bastante única dentro do contexto pós-colonial. Não sei como é isso em países como Angola e Moçambique, onde as guerras de independência ainda estão frescas na memória. Queria ouvir todos. Sim. Fala, Mangueira. Fala, Mooca. Mas falem conosco também, Alfama e Baixa. Falem conosco, Kikolo e Panguila. Precisamos de todos.
Meu primeiro contato com acordos ortográficos foi em volumes antigos de poetas como Carlos Drummond de Andrade e Cecília Meireles – aquelas primeiras edições da Nova Aguilar de suas obras completas, em capa dura e papel-bíblia. Aquelas “flôres” e “fôrmas”, “seqüências” e “ungüentos”, assim mesmo, com tils e tremas. Lembro-me de, ainda criança, ter perguntado a um adulto, já não me lembro quem, por que não tínhamos K, Y e W na língua portuguesa. A explicação me pareceu bastante plausível: porque o C, o I e o V já cumpriam as mesmas funções fonográficas e não tínhamos um som específico para aquelas.
Precisamos realmente de outro acordo ortográfico, e os motivos para esse novo acordo são plausíveis? Algum leitor brasileiro algum dia teve problemas ao ler edições portuguesas de poetas como Fernando Pessoa e Mário Cesariny? E o que fazer com os poemas de Mário de Andrade, por exemplo? Pessoalmente, não acho que o acordo seja uma tragédia. Mas temo os problemas maiores neste campo mesmo da escrita, onde ainda há tanto racismo, ignorância e mentalidade colonialista. Parece-me simplesmente um desperdício de energia e recursos, uma demonstração de incompreensão da língua justamente por aqueles que querem legislar sobre ela.
Uma ortografia unificada não vai mudar nossas diferenças sintáticas e nossos vocabulários cheios de marcadores históricos – lembretes de quanto sangue e quanto sofrimento esta língua linda custou às colônias. E ainda assim a amamos. E quanto. Cheguei a ler que acreditam que este acordo unificando as línguas trará mais prestígio internacional a ela. Quanta baboseira, vendo a maneira como tratam a literatura em nossos países. Prestígio à língua portuguesa traz a reputação internacional de Fernando Pessoa. A febre que os livros de Clarice Lispector estão causando no mundo anglófono – mundo que, por sinal, não tem um acordo ortográfico unificando-o.
A briga sobre o mais recente acordo ortográfico vai continuar e, infelizmente, em muitos casos pelos piores motivos. Li textos a respeito que apenas pingavam de racismo velado e aquela velharia da mentalidade colonialista. Não precisamos de puristas, e vejo purismo por vezes tanto nos que defendem e atacam o novo acordo. Portugueses vão continuar não lendo brasileiros, brasileiros vão continuar não lendo moçambicanos, e assim por diante. Acreditar que um acordo ortográfico vá mudar isso ou que seja realmente um primeiro passo necessário mostra que continuamos sendo regidos por bacharéis.
Porque acordo ortográfico nenhum vai ajudar um leitor brasileiro a entender o que um poeta angolano quer dizer com “mulemba” ou um leitor português a entender o que um poeta brasileiro quer dizer com “macambira”, assim como eu próprio levei tempo para descobrir o que eram “osgas” nos poemas de Adília Lopes, e, ao descobrir, enriqueci minha lusofonia. Entretanto, é necessário ter acesso à língua comum, mas diferente.
Estes dias peguei-me perguntando o que Elomar Figueira Mello quer dizer com “futuca a tuia” em uma de suas canções. E que tristeza é abrir uma edição recente de Mensagem, de Fernando Pessoa, e ver que corrigiram sua ortografia propositalmente antiga! Enlouqueceram, bacharéis? Que baixaria. Vão querer me corrigir ao pedir “a bença” para a minha vó morta? Precisamos deixar de ignorãça, meu povo. Cadê, quedê ou onde é o encontro anual entre escritores lusófonos? Um ano em Lisboa, outro em Luanda, depois em Maputo, e no Rio de Janeiro, passando por Bissau e aquela capital de lindo nome, Praia.
Os esforços não seriam muito mais válidos para nos unir? Por que a tal comunidade não começa a publicar e distribuir gratuitamente volumes de poetas de cada país lusófono em cada um dos países lusófonos? Ou é tudo apenas para ajudar editoras a vender seus xaropes? Ora, sem saber o que exatamente quero dizer, mas confiando no poeta, conclamo os falantes da língua portuguesa: “futuca a tuia, pega o catadô, vâmu plantá feijão no pó.”
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