Do Vai-Quem-Quer à Quarta-feira de Cinzas
Ainda me lembro da primeira vez em que vi os meninos da rua passando em frente da minha casa, vestidos de mulher. O que era aquilo? Minha mãe disse: é o vai-quem-quer. Naquela minha infância na década de 80, era como começava o Carnaval na sexta-feira. Os homens (só os homens) vestiam-se de mulher e caíam na gandaia. Vocês usam a palavra “gandaia”? Não sei se era uma tradição local, que apenas acontece em Bebedouro. Ainda existe? Acabei de encontrar no jornal da cidade, a internacionalmente conhecida Gazeta de Bebedouro, um artigo sobre o bloco: “‘Vai quem quer’ comemora 38 anos” [Gazeta de Bebedouro, 12/02/15]. Ou seja, existe desde 1977! O ano em que eu nasci! Isso explica muita coisa. Estranho como pesquisas na adultez destróem mitos da infância. Eu sempre acreditei que fosse uma tradição popular brasileira. Se ocorria em Bebedouro, ocorria no mundo! Bebedouro era o mundo. Perdoem, sou poeta municipal. Então nada mais era que um bloco de carnaval local.
Mas Bebedouro tinha outra tradição carnavalesca: o desfile dos “carros críticos”, caminhões sobre os quais eram reencenados, de forma satírica, acontecimentos políticos ou policiais da cidade. Ainda me lembro de um, deve ter sido por volta de 1983, em que um grupo de jovens satirizou os roubos que vinham acontecendo no cemitério local, onde ladrões andavam abrindo túmulos para roubar dentes de ouro dos falecidos de antanho. A vida era tão pitoresca. Ai, que saudades da Viúva Porcina.
Como era fascinante imaginar o que acontecia na tal Terça-feira Gorda. Eu imaginava orgias, bebedeiras em plena Bebedouro, bacantes regando o planeta com vinho tinto Sangue de Boi. Só podia imaginar, porque minha mãe não permitia que fôssemos. Coisa do demo. Desculpem, não do demo, mas do Inimigo. Não se diz o nome do dito-cujo lá em casa. É apenas “o Inimigo” ou “aquele que não mencionamos”, feito o Voldemort em Harry Potter. Mas ainda me lembro da primeira vez em que me foi permitido ir. Era no Clube de Campo. Serpentina, confete. Que alegria!
Era como naquele poema maravilhoso de Manuel Bandeira:
Sempre tristíssimas estas cantigas de carnaval
Paixão
Ciúme
Dor daquilo que não se pode dizer
Felizmente existe o álcool na vida
e nos três dias de carnaval éter de lança-perfume
Quem me dera ser como o rapaz desvairado!
O ano passado ele parava diante das mulheres bonitas
e gritava pedindo o esguicho de cloretilo:
– Na boca! Na boca!
Umas davam-lhe as costas com repugnância
outras porém faziam-lhe a vontade.
Ainda existem mulheres bastante puras para fazer vontade aos viciados
Dorinha meu amor…
Se ela fosse bastante pura eu iria agora gritar-lhe como o outro: – Na boca! Na boca!
É, Bandeirão poetinha-poetão, felizmente existe o álcool na vida. Que vontade de gritar “na boca, na boca!” E quem disse que nunca gritei isso aqui em Berlim, em determinadas circunstâncias? Mas hoje é Quarta-feira de Cinzas. É o primeiro dia da Quaresma. Teria novena entre as senhoras da rua, hoje. Ainda tem? Ainda estão vivas as senhoras que rezavam o terço? Ai, a ladainha. Até da ladainha dá saudades de vez em quando. Beata era elogio naquela época.
Beato era também Eliot, com quem encerro esse texto, os últimos versos de seu longo poema chamado “Ash Wednesday” (Quarta-feira de Cinzas), e passo a fazer meu jejum de poeta pobre. Poeta vive em eterna quaresma.
“And pray to God to have mercy upon us
And pray that I may forget
These matters that with myself I too much discuss
Too much explain
Because I do not hope to turn again
Let these words answer
For what is done, not to be done again
May the judgement not be too heavy upon us
Because these wings are no longer wings to fly
But merely vans to beat the air
The air which is now thoroughly small and dry
Smaller and dryer than the will
Teach us to care and not to care
Teach us to sit still.
Pray for us sinners now and at the hour of our death
Pray for us now and at the hour of our death.”
— T.S. Eliot, Ash Wednesday.
Mulheres, homens e a violência milenar dos últimos sobre as primeiras
Há algumas semanas, em uma conversa com o escritor e músico alemão Jonas Lieder sobre nossos passatempos televisivos dos últimos tempos, ele me recomendou que assistisse ao seriado britânico The Fall, produzido pela BBC, com Gillian Anderson em um dos papeis principais. Anderson interpreta uma agente que vem de Londres a Belfast para investigar uma série de assassinatos de mulheres na capital da Irlanda do Norte. Há, é claro, um subtexto político, ao fazer de Belfast o cenário de crimes investigados por uma inglesa. Mas o principal substrato político, creio, não se dá no conflito entre irlandeses e ingleses, pois se trata não apenas de um policial inglês investigando os crimes de um irlandês, mas de uma mulher no comando das investigações de assassinatos de mulheres e que, ela tem certeza, estão sendo cometidos por um homem.
A série, que tem alguns problemas, é perturbadora, com cenas de violência bastante explícitas, e a atuação do belíssimo Jamie Dornan como Paul Spector, o psicopata, torna as coisas ainda mais incômodas. Mas trata-se de uma série com momentos de dramaturgia realmente inteligente da autoria de Allan Cubitt.
Um diálogo me marcou: a personagem de Gillian Anderson está conversando na cama com a personagem de Colin Morgan, que interpreta outro policial envolvido nas investigações, após terem feito sexo. A personagem de Morgan, um homem, confessa sentir certo fascínio pela figura do psicopata, que parece emanar certo charme. A personagem de Anderson responde não ter qualquer interesse ou fascínio pelo assassino, que ele é apenas um homem que mata mulheres. Ela então completa: “Conheço alguém que perguntou a um grupo de homens por que eles se sentiam ameaçados por mulheres. Eles responderam: ‘Porque temos medo de que elas riam de nós’. Então, perguntou a um grupo de mulheres por que elas se sentiam ameaçadas por homens. Elas responderam: ‘Porque temos medo de que eles nos matem'”.
Este diálogo me voltou à mente estes dias, ao reler alguns poemas da canadense Pat Lowther. Seu assassinato pelo próprio marido, outro poeta, completará 40 anos em 2015. A autora e ativista por direitos trabalhistas, nascida Patricia Tinmuth em Vancouver, havia publicado os livros This Difficult Flowering (1968), The Age of the Bird (1972) e Milk Stone (1974). Em 1975, o manuscrito de seu A Stone Diary seria aceito para publicação pela prestigiosa Oxford University Press. Seu marido Roy Lowther, de quem adotou o sobrenome, não aceitava a fama da mulher, enciumado com a atenção crítica que ela recebia. Na noite de 24 de setembro de 1975, Pat Lowther era aguardada no Salão dos Metalúrgicos de Vancouver, onde faria uma leitura para os operários, mas jamais apareceu. Seu corpo seria encontrado três semanas mais tarde em uma gruta. Seu marido, condenado por seu homicídio.
A violência cometida por homens heterossexuais no Brasil tem números alarmantes. Trata-se de um país extremamente perigoso para mulheres e homossexuais. No contexto literário, não é uma discussão fácil. A violência se mostra de muitas formas, e uma delas é o silêncio sobre esta violência. O apagar das vozes femininas. É espantoso como feiras literárias, editoras, antologias e artigos seguem apagando as vozes das mulheres no país. Outros, imediatamente veem como menores os textos que enfrentam o problema, por considerá-los contextuais demais, “não universais” o bastante. Como se tal preocupação fosse nada mais que um sintoma do politicamente correto que impregnou os Estados Unidos, onde Harold Bloom cunhou o termo “escola do ressentimento”. No entanto, a violência é real. Mata.
Quando trato do assunto, recebo com frequência comentários educados e inteligentes de colegas, alertando-me para o perigo de misturar política e literatura, com os argumentos que já conhecemos há tempos, resumidos sob o adágio de que só importa a qualidade literária. Estas defesas da pureza do literário vêm, invariavelmente, de homens brancos heterossexuais.
O conceito de universalidade vem sendo questionado há tempos. Para uns, isto significa uma perda inestimável. Outros, apesar de o questionarem, não apreciam os rótulos que são impostos a escritores. Pessoalmente, não tenho problemas com certos rótulos, como literatura feminina e homossexual, mas com o fato de que são dados apenas aos “outros”. Desde que se perceba que há, sim, literatura masculina, branca e heterossexual, não me parece problemático discutir o dilema nestes termos. Não consigo compreender, para dar um exemplo específico, que algumas pessoas realmente acreditem que um livro como On The Road, de Jack Kerouac, apresente uma sensibilidade “universal”. Ou discutimos tudo por suas especificidades, ou nada. Ou todos são universais, ou ninguém.
Deixem-me contar uma anedota pessoal. Em 2013, minha antologia poética lançada na Alemanha foi discutida por quatro críticos literários do país, em uma série importante que ocorre três vezes por ano em Munique. Certo crítico de renome comentou sobre meu livro na ocasião que, apesar de muito bom, infelizmente não trazia “nutrição suficiente para um homem normal heterossexual”. Sim, estas foram suas palavras. Que um homem possa dizer isso em público, na Alemanha e em pleno século 21, pareceu-me apenas mostrar que meu trabalho também pode ter suas implicações políticas aqui, como sei terem no Brasil, ainda que eu quisesse viver em um mundo no qual meus poemas de amor fossem apenas isso: poemas de amor. Se o crítico considerava o livro bom, o que o impedia de encontrar nutrição nos poemas? Apenas porque eram claramente escritos por um homem para outro homem? Ele sente-se assim também com a lírica amorosa de Konstantínos Kaváfis, Sandro Penna e Frank O’Hara, para mencionar autores que escrevem com candor e honestidade sobre seus amores? Eu sou perfeitamente capaz de apreciar a lírica amorosa de Vinícius de Moraes, por exemplo, apesar de sentir-me distante de sua sensibilidade claramente heterossexual, longínqua de qualquer universalidade indiscutível.
Jamais preguei o revisionismo do cânone baseado em questões político-ideológicas. Mas também sei há bastante tempo que escritores e artistas estão longe de serem baluartes da ética. Precisamos lê-los com olhos e mente abertas, atentos, sabendo que em muitos deles o racismo e a misoginia de sua época (que ainda é a nossa) poluem seus textos, por mais geniais que alguns deles sejam.
Em sua entrevista televisiva a Günter Gaus em 1964, Hannah Arendt diz de forma enfática, batendo a mão na poltrona em que está sentada: “Se você é atacado por ser judeu, é como judeu que você tem que se defender, não como alemão, ou cidadão cosmopolita, ou membro da Humanidade”.
Será necessário sentir na pele a opressão para compreendê-la? Estamos condenados a nossa única e própria pele? Como pensar isso em nosso contexto atual? Pois há algo mais que complica nossa discussão, e sobre o qual venho pensando muito. Quando o funcionário do censo passa por nossas casas, são poucos os que podem dizer que não fazem um X num quadradinho, de alguma descrição de si mesmos, que os coloque entre os opressores. Pois a mulher branca heterossexual por vezes se mostra insciente de seus privilégios por ser branca, e oprime seus concidadãos negros, ou se mostra cega a suas dores. Assim como um homem homossexual branco por vezes se mostra cego às dores dos negros e das mulheres. Ou um homem heterossexual negro se mostra cego às dores de mulheres e homossexuais. As fronteiras são às vezes tênues, e precisamos todos estar atentos e fortes. Conscientes de nossos privilégios, de nossas opressões, e de nossas eventuais quedas na Síndrome de Estocolmo.
A tarde em que descobri a existência de Hilda Hilst
O ano era 1997. Eu tinha 20 anos. Os jornais discutiam o livro autobiográfico de Caetano Veloso, Verdade Tropical. O romance de estreia de Paulo Lins, Cidade de Deus, era publicado e também amplamente debatido. João Cabral de Melo Neto, ainda vivo e considerado o maior poeta do país, tinha sua obra completa reunida em dois volumes, Serial e antes e A Educação pela Pedra e depois. Sua poética comandava a atenção e estipulava, para muitos críticos, os parâmetros de qualidade para a poesia: secura, economia de meios, antilirismo, objetividade. Na prosa, tais características eram louvadas em Rubem Fonseca, que parecia ser a maior influência da prosa de então.
Era meu primeiro ano vivendo na cidade de São Paulo, num apartamento pequeno próximo àquela que apenas ali poderia ser chamada de Praça da Árvore, um local lúgubre com uma coitada verde esticando seus galhos no meio do tráfego da Zona Sul. Mas foi ali, numa tarde qualquer que, lendo uma resenha sobre o romance de uma escritora da qual jamais havia ouvido falar, encontrei os versos: “Palha / Trapos / Uma só vez o musgo das fontes / O indizível casqueando o nada // Essa sou eu. / Poeta e mula”. O poema encerrava o romance de título estranho, Estar sendo. Ter sido (São Paulo: Nankin, 1997), de uma escritora de nome igualmente estranho, Hilda Hilst.
Naquela mesma semana, procurei o livro e o encontrei em uma pequena livraria da Avenida Paulista. Em pé, sem dinheiro para comprar o volume, folheei o artefato esquisito, com prosa, diálogos e poemas intercalados, e ao fim o poema do qual haviam saído os versos, chamado “A Mula de Deus”. Nada poderia ter me preparado para a febre que senti ao ler o poema todo, sensação que se repetiria a partir de então, quando passei a caçar os volumes anteriores da autora, em poesia e prosa. Diante do louvor ininterrupto à secura e ao antilirismo de João Cabral, aquele misticismo carnal de Hilda Hilst parecia, naquele ambiente, praticamente alienígena. “Para fazer sorrir O MAIS FORMOSO / Alta, dourada, me pensei. / Não esta pardacim, o pelo fosco / Pois há de rir-se de mim O PRECIOSO. // Para fazer sorrir O MAIS FORMOSO / Lavei com a língua os cascos / E as feridas. Sanguinolenta e viva / Esta do dorso / A cada dia se abre carmesim.” Senti-me imediatamente em casa.
Até hoje, “A Mula de Deus”, ao lado do volume de poemas publicado por Hilda Hilst naquela década – Cantares do Sem Nome e de Partidas (1995), parece-me um milagre, e um dos textos mais potentes dos anos 90. Com os volumes de prosa da autora ao longo dos anos 70 e 80, seus poemas desde os anos 50 e as peças teatrais dos anos 60, a autora nascida em Jaú e auto-exilada na Casa do Sol em Campinas deu-nos alguns dos livros mais impressionantes e assustadores do país. São livros únicos. O volume em prosa Qadós (1973, reeditado como Kadosh) parece-me um dos maiores livros da língua, levando-a a um estado de pura febre.
Naquele momento, Hilda Hilst era ainda uma escritora à margem. Feliz o país que podia contar, naquele fim de século, com João Cabral de Melo Neto e Hilda Hilst, com Augusto de Campos e Roberto Piva, mas parecia haver ainda uma trincheira impedindo que todas estas manifestações textuais chegassem a um público amplo. Apenas no fim de suas vidas, quando praticamente já haviam deixado de produzir, foi que Hilst e Piva receberam algo da atenção que mereciam, mesmo que talvez nós não os merecêssemos. Ao lado da potência elegante e minimalista de autores como Machado de Assis, Graciliano Ramos e Augusto de Campos, o Brasil sentiu as esporas da luxúria linguística de homens e mulheres como Raul Pompeia, Lúcio Cardoso e Hilda Hilst. Talvez seja normal e compreensível que a personalidade e visão de mundo de uns os levem a identificar-se com o deserto elegante dos primeiros. Pessoalmente, finco os pés no chão, ergo as mãos ao alto, e dou graças pela existência da febre úmida dos últimos. Juntos, todos eles ensinam-nos sobre as marés do mundo, sertão e mar sempre em rodízio.
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