Com dois escritores ucranianos no Rio de Janeiro
Quando comecei a me corresponder com o escritor ucraniano Andriy Lyubka, no ano passado, eu perguntei a ele se conhecia o trabalho de Clarice Lispector, nossa grande escritora nascida na Ucrânia. Lyubka me disse que não, e vim a descobrir depois, através de Benjamin Moser, que o trabalho de Lispector ainda não tem tradução em seu país de nascimento. Por sua vez, Lyubka me perguntou se eu conhecia Wira Wowk, nascida em 1926 e uma das mais famosas e respeitadas poetas, romancistas e dramaturgas da Ucrânia, autora que vive no Rio de Janeiro há cerca de 60 anos. Eu também não a conhecia.
Passei a me corresponder com Wira ao pedir sua permissão para reproduzir, na revista Modo de Usar & Co., uma tradução sua, para o português, de um poema de Andriy Lyubka, publicada no volume 25 Poetas Ucranianos: Antologia (Rio de Janeiro: Contraste, 2009), lançado pela pequena editora que vem publicando os trabalhos de Wowk no Brasil, tanto suas traduções como seus romances e coletâneas de poemas.
Com meu retorno ao lado de Andriy Lyubka para o Rio de Janeiro, após participarmos do Festival Artes Vertentes em Tiradentes, fomos convidados por Wira Wowk para um café com bolo, como ela disse. Ela nos recebeu em seu apartamento no bairro de Laranjeiras, e tivemos os três uma conversa que pulava do português para o ucraniano, e às vezes o inglês e o alemão. Quando foi a última vez que você tomou café com uma pessoa que estava em Dresden nas noites de 13 a 15 de fevereiro de 1945? Estudante de Literatura Comparada e Alemã na cidade, Wira Wowk sobreviveu aos bombardeios dos Aliados naquelas noites. Seu pai, não. Logo em seguida, Wira e sua mãe deixam a Alemanha e emigram para Portugal. Em 1949, vêm para o Brasil.
Desde então, Wira traduziu inúmeros autores ucranianos para o português, em volumes lançados por pequenas editoras, e escreveu uma dezena de coletâneas de poemas, romances e peças teatrais, publicados na Ucrânia e pelos quais recebeu os mais importantes prêmios literários do país. Sua estreia foi com a coletânea de poemas Iunist’ (Juventude, 1954), já vivendo no Brasil e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em 1964, lançou em ucraniano uma antologia bilíngue de poesia lusófona, com poemas de Fernando Pessoa, José Régio, Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, entre vários outros. Na parede de sua biblioteca, fotos dos dois últimos. “Meus amigos”, ela diz, com carinho.
Com 88 anos, Wira Wowk é uma presença importante no Brasil, parte de uma geração de intelectuais que vieram ao país durante ou após a guerra, como Otto Maria Carpeaux, Anatol Rosenfeld ou Paulo Rónai, enriquecendo nossa vida cultural. Deveria ser mais conhecida e ter seus trabalhos editados por casas com maior distribuição. Disponível hoje no Brasil, há o volume Vida / Miragem (Rio de Janeiro: Constrate, 2012), que reúne três de seus romances. Faço aqui esta pequena e primeira contribuição para o processo.
Harryette Mullen no Brasil
A Dobra Editorial, de São Paulo, lançou há pouco o volume Cores desinventadas: a poesia afro-americana de Harryette Mullen, com organização e tradução de Lauro Maia Amorim. Trata-se da primeira publicação da norte-americana no Brasil, onde esteve há pouco para participar do Festival Artes Vertentes. É uma iniciativa importante para conhecer uma autora contemporânea de destaque em sua geração, por vários motivos.
O diálogo entre dois gigantes das Américas
O diálogo da poesia brasileira com a norte-americana intensificou-se nas últimas décadas. Nesta relação, a contribuição tradutória de Haroldo de Campos e Augusto de Campos, especialmente, foi decisiva. Eles fizeram circular entre nós a obra de Ezra Pound, e.e. cummings, Gertrude Stein, ou, do pós-guerra, a de John Cage, entre tantos outros. É importante mencionar ainda o trabalho crítico de Mario Faustino em sua página “Poesia-Experiência”, no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil. Foi um trabalho pioneiro em vários sentidos, já que mesmo nos Estados Unidos estes poetas modernistas ainda encontravam muita resistência no establishment literário, dominado pelo chamado New Criticism. Já Roberto Piva foi um dos primeiros a trazer o trabalho dos Beats para o país.
Em meados dos anos 80 e 90, porém, nosso conhecimento da poesia americana baseava-se ainda com força nestes primeiros modernistas, e lembro-me das excelentes publicações, pela Companhia das Letras, da antologia de William Carlos Williams traduzida por José Paulo Paes, a de Wallace Stevens traduzida por Paulo Henriques Britto, e ainda a de Marianne Moore, traduzida por José Antonio Arantes.
No final dos anos 90, Régis Bonvicino passou a fazer circular entre nós alguns poetas do pós-guerra, com sua antologia de Robert Creeley, que teria uma influência fortíssima entre os poetas brasileiros daquele momento, e ainda de autores surgidos nos anos 70, como Michael Palmer, Charles Bernstein e Douglas Messerli. O pensamento crítico de autores ligados à revista L=A=N=G=U=A=G=E chegava ao país, com certo atraso compreensível para um momento em que a internet havia apenas começado a transformar nossa recepção da literatura estrangeira. Antes dela, éramos completamente dependentes dos esforços heroicos de tradutores, e da boa vontade de editoras.
Hoje, o trabalho a ser feito ainda é imenso, especialmente pela produção alucinante da poesia norte-americana. Os autores ligados à revista L=A=N=G=U=A=G=E são hoje escritores respeitados e têm seus nomes já estabelecidos, mas muitos ainda não foram traduzidos no país. Enquanto isso, os nomes dos movimentos literários nos Estados Unidos se sucedem em ritmo estonteante, uma obsessão deles que não parecemos compartilhar: Flarf Poetry, New Narrative, Conceptual Poetry, ou, o mais recente, Alt Lit. O Brasil não precisa, talvez, de todos estes autores, mas a recepção nacional tem se concentrado especialmente em homens como Bernstein ou, na prosa, David Foster Wallace, enquanto autoras importantes e bastante influentes nos Estados Unidos, como Kathy Acker e Chris Kraus, ainda não adentraram nosso debate literário. É por isso que contribuições recentes, como a tradução de Maurício Salles Vasconcelos para o My Life, de Lyn Hejinian, ou esta antologia de Harryette Mullen por Lauro Maia Amorim, precisam ser celebradas.
Mullen em português
Harryette Mullen nasceu no Alabama em 1953. Estreou com o livro Tree Tall Woman (1991), seguido de Trimmings (1991) e S*PeRM**K*T (1992), mas foi com o excelente Muse & Drudge (1995) que alcançou um público maior e fez seu nome tornar-se incontornável no debate literário americano. Experimental e ao mesmo tempo ligado à tradição da poesia satírica, altamente político e poético, o trabalho de Harryette Mullen é extremamente necessário para o Brasil. Muse & Drudge foi bastante discutido, especialmente por conseguir combinar um questionamento da linguagem, da vivência e experiência feminina em nossa sociedade, ligadas ainda à ascendência cultural afro-americana da autora, sem jamais ter que recorrer ou cair na acusação frequente que se faz a trabalhos deste fôlego: a de usar uma linguagem de palanque. O livro demonstra como certas oposições críticas são fictícias. O último livro de Mullen foi Sleeping with the dictionary (2002).
A antologia organizada e traduzida por Lauro Maia Amorim traz textos de todos estes livros, em belas traduções, com vários achados inteligentes. Para dar um exemplo em que Amorim foi imensamente melhor do que eu na tradução de um poema de Mullen (venho traduzindo alguns desde 2011), penso no poema “sun goes on shining”, de Muse & Drudge, em que penei para encontrar uma solução para o jogo de palavras “mister meaner” (ao mesmo tempo “senhor (mais) cruel” e jogo sonoro com “misdemeanor”, contravenção, delito), que Amorim verteu como “Don de Litto”, ou o verso “while the debbil beats his wife”, vertido como “o belzeburro surra sua garota”. Gosto bastante destas soluções. Recomendo muito o livro.
A passagem de Harryette Mullen pelo Brasil rendeu para mim, pessoalmente, um dos momentos mais fortes do Festival Artes Vertentes, com curadoria de literatura feita por mim em colaboração com Luiz Gustavo Carvalho, quando Mullen vocalizou, diante da Igreja do Rosário dos Pretos, seu texto “Denigration”, que começa desta forma na versão de Lauro Maia Amorim e que escolho para encerrar:
Denigração
A gente surpreendia os professores que tinham dúvidas inegavelmente chatinhas sobre os cérebros pequititos das criancinhas negras que os faziam lembrar dos negrinhos pequerruchos tão limpinhos das caixas de sabão em pó? O quanto é barrento o Mississippi em comparação com o terceiro rio mais longo do continente mais escuro? Na terra do igbo, do hauçá e do iorubá, qual é o preço, por barril, de negrume? (…)
Harryette Mullen, tradução de Lauro Maia Amorim, in Cores Desinventadas (São Paulo: Dobra Editorial, 2014).
Reedição da obra de Murilo Mendes
A partir de hoje (19/04), estão disponíveis os primeiros volumes do projeto de reedição da obra de Murilo Mendes pela editora paulista CosacNaify. Os títulos são bem escolhidos e apropriados para o início da empreitada: Poemas (1930), o livro de estreia de Murilo Mendes, o autobiográfico A Idade do Serrote (1968), seu trabalho em prosa mais conhecido, o volume Convergência (1970), um de seus trabalhos mais experimentais, e ainda uma nova Antologia Poética, com seleção e introdução de Júlio Castañon Guimarães e Murilo Marcondes de Moura. A partir destas primeiras reedições, é possível já ter um pequeno panorama da multifacetada obra do escritor mineiro, que vem se firmando cada vez mais como um dos nomes mais importantes do Modernismo brasileiro.
Murilo Mendes nasceu em Juiz de Fora, Minas Gerais, em 13 de maio de 1901. Uma rápida menção de outros nomes nascidos à mesma época nos dá a dimensão da importância desta geração: no mesmo ano de 1901, nascem também Cecília Meireles, Henriqueta Lisboa, Pedro Xisto e José Lins do Rego. No ano seguinte, nasce Carlos Drummond de Andrade. Foi com o último que Murilo Mendes estreou em publicação: em 1930, ano que seria tomado como divisor de águas entre a primeira geração modernista e a dos mais jovens, Drummond publica Alguma poesia e Murilo Mendes, Poemas. Manuel Bandeira, que já havia anunciado a primeira geração modernista com seu poema “Os sapos” e participado ativamente dela com seu Ritmo dissoluto (1924), anuncia a segunda geração com Libertinagem, no mesmo ano de 1930.
A reedição dos Poemas de estreia de Murilo Mendes pela CosacNaify traz posfácio de Silviano Santiago, e ainda duas cartas do autor a Mario de Andrade, nas quais comenta o contexto político e literário da época, ano portentoso, com a chegada de Getúlio Vargas ao poder. Já o seu A idade do serrote, publicado originalmente em 1968, é uma bela introdução à prosa altamente inventiva de Murilo Mendes, no qual relata sua infância e adolescência, que marcaram fortemente sua escrita. O posfácio da presente edição é de Cleusa Rios Passos, e o volume traz ainda uma crônica de Carlos Drummond de Andrade sobre o livro publicada no jornal Correio da Manhã em 1968, além de uma resposta de Murilo Mendes. Ambas são inéditas em livro. Há que se prestar maior atenção na obra em prosa de Murilo Mendes, que tem textos originais e de grande potência literária.
Convergência, publicado em 1970, demonstra de forma clara como Murilo Mendes levava a sério seu adágio: “Não sou meu sobrevivente e sim meu contemporâneo.” Com uma obra já estabelecida e altamente singular dentro da poesia brasileira, autor de grandes livros como Mundo enigma (1942) e Poesia Liberdade (1947), o poeta transforma-se, em sua convergência consigo mesmo e seus contemporâneos, como os mais jovens João Cabral de Melo Neto e Haroldo de Campos, entrando em diálogo com a poética da secura e objetividade de Cabral, algo que já vinha desde o volume Tempo espanhol (1954), e com os experimentos do Grupo Noigandres de São Paulo. Como escreveu Murilo: “Webernizei–me. Joãocabralizei-me/ Francispongei-me. Mondrianizei- me.” O livro demonstra a extrema juventude de espírito de Murilo Mendes, ao publicar um livro tão experimental e distinto da imagem que sua obra havia até então produzido, e isso aos 69 anos de idade. O posfácio da reedição é de Júlio Castañon Guimarães.
A nova Antologia Poética, dos organizadores do projeto Júlio Castañon Guimarães e Murilo Marcondes de Moura, traz poemas de todos os seus livros, inclusive dos dois livros escritos em língua estrangeira: Ipotesi, com os poemas de Murilo Mendes em italiano (o poeta viveu por muitos anos em Roma), e Papiers, em francês. O poeta brasileiro teve um papel cultural importante na Itália, algo similar ao de João Cabral de Melo Neto na Espanha. Seus Retratos-relâmpago são textos deliciosos, apresentando personagens com as quais se encontrara ao longo da vida, como Ezra Pound ou André Breton.
Esta antologia vem unir-se a duas importantes antologias anteriores, uma organizada por João Cabral de Melo Neto na década de 70, e outra de Luciana Stegagno Picchio na década de 90. Morto em 1975 em Lisboa, onde está enterrado, Murilo Mendes vem ressurgindo com grande força na poesia brasileira, especialmente após a publicação de sua Poesia completa e prosa em 1994 pela Nova Aguilar. Que estas reedições agora o coloquem de vez na posição de destaque que lhe é cabida na poesia do século 20.
Na antiga capital da Colônia, do Reino Unido, do Império e da República
Que hora louca para chegar ao Rio de Janeiro vindo de Berlim. O bafo quente assaltava a cara, mas ao redor falavam todos a língua de Machado de Assis e Manuel Bandeira. Na rádio do táxi, logo ao entrar no veículo, a voz cantava versos de Luís de Camões mesclados a versículos do 13° capítulo da primeira Epístola aos Coríntios. Era o último dia de agosto, mês de desgosto, parecia bom agouro. Vinha oficialmente a trabalho, mas era também amor o que me trazia. E de vez em quando um poeta lusófono, mesmo que voluntariamente exilado, preocisa poder dizer ao taxista: “Copacabana quase fronteira com Ipanema”, em vez de “Kreuzberg quase fronteira com Neukölln”. Ao pregar uma literatura mundial, Goethe precisou dizê-lo em alemão, Weltliteratur. A placa dizia “Bem-Vindo”, não Willkommen. Gostei, Goethe.
Mas que hora louca para chegar à antiga capital da Colônia, do Reino Unido, do Império e da República. Carrancas de candidatos por todos os lados. Ano cheio de implicações e rememorações ligadas ao número 4. Um ano de quatros. Fins e inícios de fins. Suicídios e golpes de estado. Sessenta anos do tiro no peito que se deu Getúlio Vargas, 50 anos do tiro no peito que nos deram militares e civis mancomunados. Diziam que era para proteger a República dos comunistas. Alguém se lembra da revolta tenentista de 1924? Não sei. Eu mesmo só me lembrei agora, ao pensar no número 4. Dizem que uma tal República Oligárquica começou em 1894. Acabou? Caminhei pela Avenida Atlântica, pensei nos 18 do Forte. Mas não conseguia me lembrar do que queriam.
Acompanhado de um poeta estrangeiro, visitei minha igreja favorita, a do Outeiro da Glória. Pequena, parece um útero. Feito a Igreja São Francisco de Assis, aquela pequena joia de dimensões bem humanas, de Antônio Francisco Lisboa e Mestre Ataíde, lá em Ouro Perto, digo, Ouro Preto. A do Rio de Janeiro é hoje uma irmandade imperial. É ainda hoje? Disse ao poeta estrangeiro como ali foram consagrados os dois Imperadores, o irresponsável e o responsável. Abaixo, a baía. Ao redor, a cidade em seus altos e baixos. Aqui não há acrópoles, há outeiros e morros.
Depois, caminhando pela rua do Catete, chegamos ao Palácio. A entrada naquele dia era gratuita. Alunos de escolas públicas faziam selfies com velhos presidentes, sua fila de nomes que hoje nos parecem esdrúxulos. Herois da mitologia grega, numa enciclopédia lá de casa, me pareciam mais próximos. Deodoro, Floriano, Prudentes, Campos, Rodrigues, Afonso, Nilo, Hermes, Venceslau, Delfim, Epitácio, Artur, Washington. Aqui, a gente para. Há um pijama ensanguentado em algum lugar do palácio, e os sentimentos pelo homem são uma confusão.
Antes de passar à chamada União, o Palácio Nova Friburgo, como se chamava o prédio do Catete, quase foi convertido em hotel de luxo. O empresário, na bancarrota, precisou hipotecá-lo. Não longe dali, guindastes parados sobrevoam o antigo Hotel da Glória. Depois da falência vindoura do empresário que o comprou, será hipotecado? Comprado pela União? Convertido no Palácio de uma nova fase política do país, um novo regime, quiçá o Palácio da Glória, sede de um Reino Teocrático do Brasil? Sabe-se lá. Talvez novos nomes esdrúxulos governem então o país, como Godofredo, Balduíno, Melisende ou Silas. Já construíram um novo templo de Salomão, por que não uma nova Jerusalém? Não muito celestial, porque afinal de contas estamos no Brasil.
No quarto do pequeno grande homem, a arma do suicídio e o pijama. Caminho até a janela e me apoio no peitoril. Os alunos fazem selfies. Não sei se me deu vertigem. Acho que é só fome. Lembro-me de minha avó falando sobre seu bebê natimorto, que decidiram chamar de Getúlio. Não chegou a respirar.
– Por que Getúlio, vó?
– Porque ele era um hôme bom, meu fio. Teu vô era lôco por ele. Ajudô muito a gente. Teu vô já tava com as costa tudo quebrada de trabalhá na estrada de ferro, mas tinha um dinheirinho a mais. Quando ele morreu, a gente chorô muito. Teu vô ficô de luto não sei quanto tempo.
Ela estava falando do final dos anos 1930, começo da década de 40. Eu já sabia das prisões de Graciliano Ramos, Dyonélio Machado. Da deportação de Olga Benário. Os meus professores de História eram homens de esquerda, já nos tinham alertado a não confiar demais em gritos do Ipiranga, muito menos em margens plácidas. Mas vó a gente não contesta.
Enfim, fiquei ali, no Palácio do Catete, lembrando-me de minha avó, do fato de que eu próprio não teria filhos, de qualquer maneira. Até quereria, mas há uns problemas de logística e hidráulica. Os meus filhos não serão natimortos nem terão berço de ouro nem berço esplêndido. Os meus são antemortos. Não se chamarão nem Getúlio, nem Luiz Inácio. Minhas filhas não se chamarão nem Dilma nem Marina. É um consolo.
A recepção de Hilda Hilst em língua inglesa
Tem-se discutido muito a maior inserção da literatura brasileira no cenário internacional. Sabemos que, graças à bolsa de tradução de Biblioteca Nacional, traduziu-se mais nos últimos dois anos que nos 20 anteriores. Há outros fatores, e é muito difícil dizer com precisão o que é causa e consequência. Desde a estabilização da economia brasileira nos anos 90, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, até a ultrapassagem econômica que o Brasil logrou nos últimos anos nos governos de Lula da Silva e Dilma Rousseff, tornando-se uma economia maior que a francesa e a britânica, e ainda sua maior participação no panorama geopolítico talvez sejam todos fatores que tenham levado a uma maior atenção para o que se faz no país, seja em termos de literatura, seja nas artes visuais, no cinema ou na música. A verdade é que o Brasil já não é visto mais por lentes únicas, como foi por muitos anos no mundo através da literatura de Jorge Amado ou da música de Tom Jobim, representantes excelentes, de qualquer forma.
O grande Machado de Assis vem já há alguns anos angariando um status de autor cultuado, ganhando admiradores entre críticos como Susan Sontag e Harold Bloom, e Clarice Lispector teve uma recepção quase febril nos Estados Unidos após a publicação da biografia de Benjamin Moser e a edição de novas traduções para romances como A hora da estrela, A paixão segundo GH e Perto do coração selvagem. Clarice tornou-se a primeira autora brasileira a aparecer na coleção de clássicos modernos da prestigiosa editora britânica Penguin, e está também sendo reeditada na Alemanha. Ela é hoje um nome conhecido, uma estação comum para as leituras da escrita do século XX. Há pouco tempo, em entrevista sobre seu novo romance The Green Girl, a escritora norte-americana Kate Zambreno mencionou A hora da estrela como referência importante para seu trabalho. É um fenômeno novo: a literatura brasileira não apenas como campo de conhecimento especializado de exotismos, mas referência internacional. O autor conhecido primeiramente por seu trabalho, não por sua nacionalidade. Em breve, a nova tradução de Richard Zenith para poemas de Carlos Drummond de Andrade chegará à mesma Penguin, e o brasileiro talvez possa assumir seu lugar merecido não apenas como grande poeta brasileiro, mas como grande nome internacional da poesia do século XX.
Mas confesso que poucas coisas me alegraram tanto este ano quanto o início da recepção da autora paulista Hilda Hilst (1930 – 2004) em língua inglesa. A tradução de Nathanaël (Nathalie Stephens) e Rachel Gontijo de Araújo para o romance A obscena senhora D (1982), publicado pela editora norte-americana Nightboat Books sob o título The Obscene Madame D, tem ganhado leitores fascinados para a grande Hilda. A mesma editora, em colaboração com a brasileira A Bolha, lançou também Cartas de um sedutor (1991) como Letters from a Seducer, em tradução de John Keene, e Adam Morris traduziu Com meus olhos de cão (1986) como With My Dog-Eyes. Em breve, os americanos terão ainda a tradução de Alex Forman para o livro de estreia de Hilst na prosa, Fluxo-Floema (1970). Tudo isso neste ano de 2014.
Ainda que Hilda Hilst seja hoje considerada, por muitos, como uma das mais importantes escritoras do pós-Guerra no Brasil, sabemos que sua obra viveu em ostracismo durante cinco décadas, editada corajosamente por Massao Ohno e mesmo que recebendo a atenção de alguns poucos críticos, como Sérgio Buarque de Hollanda e Leo Gilson Ribeiro. Teria sido muito bonito se Hilda tivesse vivido para ver isso, mas antes tarde do que nunca, e rezo ao “cubo de gelo ancorado no riso”, como ela chamava Deus, que isto seja apenas o começo.
Feedback
2 comentários