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Fim de um blog, começo de uma coluna

Publiquei meu primeiro texto neste espaço no dia 1° de julho de 2014. Nele, discutia a passagem de outros escritores brasileiros pelo jornalismo ao longo da história, alguns gigantes como Machado de Assis e João do Rio. Hoje, este espaço chega ao fim para se transformar em coluna semanal a partir da próxima semana, às terças-feiras. Nestes três anos, discuti aqui uma gama variada de assuntos ligados à língua, entre o Brasil e a Alemanha. Falei sobre influências e traduções da literatura alemã entre autores brasileiros como Machado de Assis e Mário de Andrade, relatei a tradução de autores como Clarice Lispector na Alemanha, e resenhei vários livros lançados no Brasil, assim como certos eventos literários e artísticos em Berlim.

Nestes três anos, o contato com os moldes jornalísticos de escrita foi importante para mim como autor em outros campos. Se há maior clareza no meu pensamento por escrito hoje em dia, algo disso se deve a trabalhos como este. Foi também um período de reflexão sobre o papel do jornalismo cultural nos nossos tempos. Num momento em que todos os negócios, como acaba sendo um jornal, precisam pautar-se pela lei de oferta e procura, e portanto também pelos interesses e desejos dos consumidores (neste caso, os leitores de um jornal), como conciliar o papel de informação, questionamento e educação com estas questões? No campo do jornalismo cultural, como equilibrar a divulgação daquilo que é popular, em seu sentido na cultura de massas e que portanto traz leitores, com a defesa de expressões literárias e culturais à margem do mercado? Não sei se obtive a resposta ainda. Mas esta foi uma ótima experiência que me levou a debates excelentes com várias pessoas. Agradeço a todos que visitaram esta página ao longo dos três anos de sua existência. Espero que alguns leitores tenham encontrado informações novas por aqui, tanto sobre o que já conheciam parcialmente como sobre trabalhos que desconheciam.

A partir da próxima semana, vou discutir na coluna semanal, de forma específica, a produção literária alemã, com algumas incursões à relação literária entre Alemanha e Brasil. O foco portanto será sobre o que está acontecendo no espaço linguístico alemão, Alemanha em especial, mas com olhos para a Áustria, a Suíça e as outras pequenas comunidades de língua alemã em países como Bélgica e Luxemburgo. Falarei sobre livros recentes e antigos, a importância deles, e farei algumas recomendações de leitura. Por vezes, haverá conversas com escritores alemães e relatos sobre os eventos literários ao redor do país. Os lançamentos, os mais vendidos, o que se está lendo na Alemanha atualmente. Ficarei também de olho nas editoras brasileiras que traduzem do alemão, conversando sobre livros alemães lançados no Brasil. Espero que a coluna encontre seus leitores entre os que estão interessados na língua alemã, não apenas a falada nas ruas de Berlim e Munique, mas entre as páginas de Heinrich Heine e Bertolt Brecht, Christa Wolf e Sibylle Berg.

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quarta-feira 03.05.2017 | 13:25

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A fala e a escrita dos animais

Capivara exposta em museu de Amsterdã

Há uma proposição do filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein que sempre me fascinou: “Wenn ein Löwe sprechen könnte, wir könnten ihn nicht verstehen” (Se um leão pudesse falar, nós não o compreenderíamos). Ao mesmo tempo, as implicações sempre me pareceram tristes: estamos presos a nossa esfera de experiência e compreensão. A isso une-se a ideia de que mesmo cada língua humana determinaria a maneira como pensamos e sentimos o mundo. Trata-se de um desafio a todo trabalho de tradução, portanto, mesmo entre humanos de línguas distintas. Para os nossos ouvidos, os sons feitos por animais também parecem todos iguais e uniformes, mas alguns pesquisadores afirmam que certos mamíferos, como as baleias, também têm dialetos distintos em cada grupo.

Há uma história a respeito disso que é bastante iluminadora sobre nós mesmos. As pesquisas mais sérias sobre a linguagem de outros mamíferos, especialmente baleias e golfinhos, só recebeu financiamento consistente quando se formulou o seguinte problema: em nossas explorações espaciais, se tivermos contato com alienígenas, como poderemos nos comunicar com eles se não conseguimos sequer nos comunicar com outras espécies do nosso próprio planeta?

Estou no momento em uma residência na Holanda, vivendo por dois meses entre um apartamento em Amsterdã e uma fazenda próxima da pequena vila de Starnmeer. Meu projeto é escrever um texto que lide com a presença colonial holandesa no território brasileiro. Mas o desafio que me impus nos traz à problemática que delineei acima, pois minha ideia é escrever esse texto a partir do ponto de vista de uma… capivara.

Antes que pensem que enlouqueci, me explico: como escrevi em uma crônica neste mesmo espaço [Aos holandeses que se esqueceram de suas invasões], visitei no ano passado uma exposição de alguns desenhos recém-descobertos de Frans Post (1612–1680) no Rijksmuseum. Eles foram feitos no Brasil durante sua passagem pela colônia com uma comitiva de artistas convidados por Maurício de Nassau (1604–1679), o “brasileiro”. Na exposição era possível também ver vários animais da fauna brasileira empalhados, e fui tomado por uma espécie de solidariedade muito estranha por uma capivara que ali estava: uma capivara do século 17 em plena Amsterdã do século 21.

Maria Esther Maciel lançou “Pensar / escrever o animal: ensaios de zoopoética e biopolítica” em 2011

Foi aí que a ideia começou a nascer. Para isso, venho pesquisando autores do que vem sendo chamado de “zoopoética”, a escrita sobre e, principalmente, através de outras espécies. No Brasil, hoje, uma grande pesquisadora do assunto é Maria Esther Maciel, que lançou nos últimos anos os volumes Pensar / escrever o animal: ensaios de zoopoética e biopolítica (2011) e Literatura e animalidade (2016). Um dos exemplos dentro da literatura brasileira a que Maria Esther Maciel recorre com frequência é o poema Um boi vê os homens, do livro Claro Enigma (1951) de Carlos Drummond de Andrade: “Tão delicados (mais que um arbusto) e correm / e correm de um para o outro lado, sempre / esquecidos de alguma coisa”, diz o boi a nosso respeito.

Mesmo antes de pensarmos nessa prática como uma experimentação específica, já a conhecíamos de textos de Clarice Lispector, com suas galinhas e baratas, e de João Guimarães Rosa com suas vacas e onças. Uma galinha, conto do livro Laços de família (1960), de Clarice Lispector, está entre os primeiros textos literários que li em minha vida de adolescente. De João Guimarães Rosa, cita-se com frequência o longo conto “Meu tio o iaueretê”, do livro Estas estórias (1969). Mas o que me marcou primeiramente foi o lindíssimo Sequência, das Primeiras estórias (1962), no qual seguimos a consciência de um jovem vaqueiro em caça a uma vaca fujona, ao mesmo tempo em que seguimos a consciência da própria vaca.

Maria Esther Maciel discute ainda outros trabalhos de autores brasileiros como Graciliano Ramos, João Alphonsus e Wilson Bueno, e estrangeiros como Jack London, Patricia Highsmith, Jacques Roubaud, Virginia Woolf, Luigi Pirandello, Lydia Davis e J.M. Coetzee, entre outros. Para isso, recorre a vários pensadores, como Jacques Derrida, Eduardo Viveiros de Castro e Donna Haraway. É um campo fértil, que traz implicações políticas, filosóficas e literárias. Como conviver com outras espécies? Quais são os seus direitos? Seus direitos são essencialmente diferentes dos nossos?

Assim como o racismo leva humanos a acreditarem que são superiores a outros, nos últimos tempos formulou-se o conceito de “especismo”, ou seja, o ponto de vista de que uma espécie, especialmente a humana, é superior às outras e possui direitos específicos, como o de explorar, escravizar e matar as demais espécies. A diferença entre espécies levaria à atribuição de direitos diferentes entre organismos?

Mais uma vez volto à proposição de Wittgenstein: se um leão pudesse falar, nós mesmo assim não o compreenderíamos. Sua existência leônica está essencialmente vedada a nossa compreensão humana. Se os adoradores de um mesmo deus não conseguem se compreender por pertencerem a seitas distintas, estaremos nós para sempre presos a um vocabulário e a uma sintaxe intransferíveis? Espero que a tentativa de encarnar uma capivara me leve a algumas respostas possíveis.

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terça-feira 18.04.2017 | 10:23

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A escrita do amor fora das normas do patriarcado brasileiro (terceira parte)

Em “Stella Manhattan” (1985), Silviano Santiago criou algumas das personagens mais não convencionais da literatura brasileira contemporânea

Em agosto de 2016, escrevi um artigo intitulado A escrita do amor fora das normas do patriarcado brasileiro dividido em primeira e segunda parte. Nele, discutia a literatura no Brasil por seu viés homoerótico, a partir dos nomes mais importantes no país de uma escrita que poderia ser compreendida como queer. Mencionava autores como Lúcio Cardoso, Roberto Piva e Ana Cristina Cesar, que já nos deixaram. Naquele momento, parecia-me importante ler autores já (quase) canônicos por esta perspectiva. Minha ideia era encerrar o artigo com uma terceira parte, na qual tentaria chamar a atenção dos leitores para alguns nomes mais recentes, de autores vivos. Não prossegui com a série porque queria pesquisar mais, e também porque a discussão de autores vivos sempre complica a conversa em vários aspectos.

Alguns acontecimentos da última semana me motivaram a tentar voltar àquele artigo. Em primeiro lugar, a morte de João Gilberto Noll no dia 29 de março [2017|. Ao escrever sobre ele, retornei ao assunto pela percepção da sexualidade que perpassa tantos de seus textos, o que me levou novamente a mergulhar em alguns ensaios que tratam dessa questão. Em seguida, li um artigo de Vanessa Thorpe no ‘Guardian’ [Tate Britain celebrates 50 years of gay freedom, The Guardian, 01.04.2017] sobre a abertura da exposição na Tate dedicada à arte queer do país, marcando as comemorações do cinquentenário da descriminalização da homossexualidade no Reino Unido. E por fim um amigo me enviou um documentário de Rita Moreira,  Temporada de caça (1988), que trata da violência contra homossexuais que grassava por São Paulo e Rio de Janeiro naquela década.

O filme inclui um depoimento de José Celso Martinez Corrêa, que discute o assassinato brutal de seu irmão, Luís Antônio Martinez Corrêa (1950–1987), assim como de Jorge Mautner, Néstor Perlongher e Roberto Piva. O vídeo também traz entrevistas de rua com vários cidadãos brasileiros não só defendendo como fazendo apologia ao assassinato de homossexuais. Trata-se de um documentário extremamente perturbador.

Durante o ápice da epidemia de aids nos anos 1980 e 1990, ativistas americanos usavam como lema a ideia de que SILÊNCIO = MORTE. Quebra-se o silêncio com a palavra, matéria-prima do escritor. Muitos discordam de que seja papel da literatura tratar desses horrores sócio-culturais. Mas a violência começa pela linguagem. Pelas ofensas verbais que homossexuais (assim como negros e mulheres) sofrem todos os dias nas ruas do país. É na facilidade dessas ofensas pela linguagem que nasce a impunidade dos crimes capitais.

E é aqui, sabendo que silêncio significa morte, que eu gostaria de fazer uma homenagem a um escritor que não discuti nos outros artigos: Caio Fernando Abreu (1948–1996). Ainda que menos estético do que ético, seu trabalho teve um impacto enorme sobre minha vida na adolescência, especialmente com suas Cartas para além dos muros, mas também em contos como Os dragões não conhecem o paraíso. Por sua coragem para quebrar o silêncio. Nos últimos meses, a pesquisa sobre essa escrita me deu alguns presentes, como a descoberta do universo de Samuel Rawet, autor tão injustamente esquecido.

Mas esta última parte de A escrita do amor fora das normas do patriarcado brasileiro deve ser uma pequena lista de recomendações dentre os vivos. De vivos para vivos. E, entre os vivos, a figura de Silviano Santiago continua sendo uma de nossas maiores referências. Sua última publicação como crítico é o ensaio Genealogia da ferocidade (Recife: CEPE / Suplemento Pernambuco, 2017), no qual discute a complexa obra-prima que é Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa. Como romancista, lançou recentemente Machado (2016) e Mil rosas roubadas (2014), ambos pela Companhia das Letras. Este último é sua contribuição mais recente a uma escrita da homoafetividade no Brasil, mas seu trabalho mais importante e pioneiro neste aspecto continua sendo o romance Stella Manhattan (1985), já traduzido para o inglês, o espanhol e o francês. Nele, Silviano Santiago criou algumas das personagens mais não convencionais da literatura brasileira contemporânea, como Stella Manhattan, a Viúva Negra e La Cucaracha, no clima de repressão sexual-política da ditadura militar.

Sem se ater à biografia dos autores mas partindo da busca por uma homotextualidade, Cristina Ferreira Pinto-Bailey discute em seu ensaio O desejo lesbiano no conto de escritoras brasileiras contemporâneas os trabalhos de cinco mulheres: Fátima e Jamila (1976), de Sônia Coutinho; Intimidade (1977), de Edla van Steen; A mulher de ouro (1984), de Myriam Campello; A Escolha (1985), de Lygia Fagundes Telles; e Tigresa (1986), de Márcia Denser.

“Se a expressão da experiência erótica feminina chega a ser tão problemática, a representação da sexualidade lesbiana o é ainda mais, pois rompe com as relações dominantes de gênero, ao excluir a figura do homem e colocar a mulher em uma posição de sujeito atuante, em vez do papel tradicional de objeto do desejo masculino”, escreve.

“Assim, o desejo lesbiano na obra de escritoras brasileiras não só representa uma dimensão importante da sexualidade feminina, como também serve para expor e questionar o controle social sobre a sexualidade e o corpo femininos.”

Dessa lista, chamo a atenção para o trabalho de Márcia Denser, uma de nossas melhores prosadoras vivas. A reedição de Teatro fantasma (1977) e Diana Caçadora (1985) em um só volume pela Ateliê Editorial deveria finalmente fazer o trabalho da autora chegar às mãos dos leitores das novas gerações. No mês passado, o Suplemento Pernambuco publicou também um conto inédito de Myriam Campello, que integra o livro Palavras são para comer, lançado há duas semanas pela editora Oito e meio. Ela é a autora ainda dos romances Sortilegiu (1981) e São Sebastião Blues (1993), entre outros.

Outros trabalhos que poderíamos discutir aqui são os de Assionara Souza, Angélica Freitas, Tatiana Pequeno e Bianca Lafroy, assim como os de Renato Negrão, Rafael Mantovani e Ismar Tirelli Neto. Descubra-os. Seus trabalhos devem ser lidos e julgados em primeiro lugar por sua qualidade literária. Concordamos. Mas são também autores que, ao quebrar o silêncio, ajudam-nos a escapar um pouco da morte. Pois são quase 30 anos desde o documentário assustador de Rita Moreira, e o que mudou nestas três décadas?

A violência contra homossexuais no Brasil continua assustadora. Talvez precisemos também de um exposição como a da Tate, trazendo trabalhos de artistas como Hélio Oiticica, Alair Gomes e José Leonilson, unindo-os ao trabalho literário de homens como Roberto Piva e mulheres como Ana Cristina Cesar. Não vamos esperar mais 20 ou 30 anos para mudanças verdadeiras na situação.

É portanto em tom irônico que encerro este artigo com um dos meus poemas favoritos de Horácio Costa, talvez o mais importante poeta queer surgido no Brasil após Roberto Piva:

Vinte Anos Depois é um romance de Alexandre Dumas

duas décadas não são nada

é a média de vida do homem primitivo do escravo romano

é a idade de um cão muito muito velho

é a média de glória de um artista maior

o tempo sem celulite de uma cortesã

o lapso de procriação depois do casamento

quatro ou cinco mandatos políticos o auge de um Império

vinte anos levou a Constantino reformar Bizâncio

vinte anos fizeram a fortuna de Frick Morgan e Du Pont

vinte anos entre a apresentação no Templo e a crucificação

vinte anos é a matéria dos memorialistas

vinte anos e o povo se cansa da Revolução

vinte anos depois Odette está casada e Marcel morto

a roda o computador pessoal a moda das perucas brancas se

popularizam em não mais de vinte anos

Quéfren e Miquerinos construíram suas pirâmides

em vinte curtos anos

vinte anos depois o cadáver está frio olvidadíssimo

vinte anos de exercício e o êxtase desce ao asceta

nada nada são duas décadas vinte vezes nada

a ponte nova entre aqui e ali está congestionada hoje

a então chamada ponte do futuro já não serve mais

agora quando estás nela também estás aqui

tinhas o cabelo solto tinhas a rédea solta

soltas tinhas as palavras

há vinte anos

entre aqui e ali

(Horácio Costa, Quadragésimo, 1999)

Data

terça-feira 04.04.2017 | 09:18

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Os autores esquecidos do arquipélago Brasil

Capa de “Poesia Completa”, de Gilka Machado

Há poucos dias, conversava com um amigo americano sobre o fato de que se traduz pouco nos Estados Unidos. Ambos lamentávamos que não houvesse mais interesse por literatura estrangeira no norte, ainda que algumas editoras independentes como a Action Books e a Burning Deck Press, entre outras, se esforcem bastante neste sentido, assim como a excelente revista Asymptote Journal. No entanto, eu disse a ele que essa insularidade dos EUA tinha ao menos um efeito positivo para eles. Pois, como há a demanda constante de escritores e quer-se que estes escritores sejam americanos, há uma pesquisa maior entre eles sobre os autores que possam ter sido ignorados enquanto vivos, ou que ainda produzam em obscuridade.

Editoras comerciais e universitárias publicam com uma frequência maior as obras de autores do passado, completamente desconhecidos ou esquecidos. O cânone americano parece ter um caráter de processo interminável muito mais do que entre nós, onde a inflação bibliográfica – sempre sobre os mesmos autores – torna a lista de escritores estudados uma procissão de santos imutável. Já foi discutido como isso está claro na própria palavra “cânone”: santo não cai do altar.

Há esforços importantes no Brasil que precisam receber maior atenção. Para mencionar dois recentes, a editora da Universidade Federal do Pará começou a relançar a obra completa do poeta paraense Max Martins, e o Selo Demônio Negro, capitaneado por Vanderley Mendonça, acaba de lançar a poesia completa da carioca Gilka Machado. Outros acontecimentos importantíssimos são a reedição dos romances do mineiro Campos de Carvalho (Editora Autêntica) e a reedição das peças do dramaturgo paulista Plínio Marcos (Funarte). Fico feliz que esss iniciativas tenham encontrado eco na grande imprensa, com artigos em jornais de São Paulo e do Rio de Janeiro. Um dos problemas dos grandes jornais paulistanos e cariocas é comportarem-se como imprensa local em questões de cultura, ainda que tirem todas as vantagens possíveis de seu alcance nacional quando isso é conveniente.

Precisamos conhecer o que teve valor histórico, mas isso jamais deve se sobrepor ao valor artístico e político que as obras podem ter para nosso tempo, mesmo que os seus contemporâneos as tenham ignorado. Há os casos de autores que receberam atenção quando vivos, mas caíram em obscuridade após sua morte, como a poeta mineira Henriqueta Lisboa e o romancista carioca Marques Rebelo. Há os autores que têm ainda suas obras defendidas por leitores apaixonados e por escritores que os elencam entre suas influências maiores, autores cultuados por um pequeno grupo, mas que precisam encontrar reedições de alcance nacional, como o prosador catarinense Manoel Carlos Karam e o poeta mineiro Adão Ventura.

Muitas vezes, a obra de um escritor permanece num limbo de silêncio e poeira de sebos ou escondidos nas bibliotecas particulares de outros escritores, até que suas obras explodem ou reexplodem quando recebem a devida atenção. Basta pensar na obra do poeta mais popular do Brasil nas três últimas décadas, a de Manoel de Barros, que pôde alcançar a leitura apaixonada dos brasileiros quando começou a circular pela editora Record. O primeiro livro do autor, Poemas concebidos sem pecado, é de 1937. O poeta era três anos mais novo que Vinícius de Moraes e quatro anos mais velho que João Cabral de Melo Neto. Sua linguagem de louvor do terreno já vinha sendo formada desde a década de 1960, com a publicação de Compêndio para uso dos pássaros (1960) e Gramática expositiva do chão (1966), mas permaneceu escondida até a década de 1990. E o que dizer dos casos excepcionais de Hilda Hilst e Roberto Piva, cultuados por poucos por tanto tempo, e hoje figuras incontornáveis da literatura brasileira do pós-guerra?

Muitas vezes basta o esforço profissional de uma pequena editora competente. Um dos acontecimentos literários do ano passado, em minha opinião, foi a atenção dada a Leonardo Fróes, que muitos consideram um dos maiores poetas vivos do Brasil, quando a editora Azougue lançou uma antologia de seus poemas, Trilha, e o poeta passou com sucesso pela FLIP. Dono de uma obra extensa, consolidada, como autor e tradutor, está mais do que na hora de que seu trabalho alcance um grande número de leitores. Mas quanto é necessário que um autor escreva para isso?

Nós temos um fetiche compreensível pelos autores de obras vastas, aquelas que cabem mais tarde em tijolos de papel-bíblia pela editora Nova Aguilar. O que fazer dos autores que desaparecem, deixando-nos apenas algumas poucas jóias? Raduan Nassar, autor de um romance, uma novela e alguns contos, não ganhou no ano passado o maior reconhecimento a um escritor da língua, o Prêmio Camões? Uma das leituras inesquecíveis que fiz nos últimos anos foi Uns contos, de Ettore Bottini, seu único livro, com apenas 120 páginas. O livro é todo ele uma pequena joia.

Aos que mantêm os olhos e ouvidos abertos, vêm as descobertas. Ontem, o poeta e professor Marcus Fabiano Gonçalves comentou sobre o trabalho de Waldemar das Chagas, autor do livro Malungo (1954). Após ler os poucos poemas encontrados, ficou apenas o desejo de ver também este autor circulando em escala nacional. Outros autores que recomendo descobrir e espero que encontrem edições, reedições e leituras críticas são Paulo Colina, Stela do Patrocínio, Maria Ângela Alvim, Rosário Fusco, Marly de Oliveira, Arnaldo Xavier, Orlando Parolini, entre tantos outros. Vamos trabalhar, editores.

Data

quarta-feira 01.03.2017 | 08:26

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A irresponsabilidade com a língua: sobre a campanha desastrosa do Ministério dos Transportes

passagem da campanhaHá alguns dias deparei-me nas redes sociais com o primeiro cartaz da nova campanha do Ministério dos Transportes, que busca ensinar o público a evitar comportamentos de risco ao volante – como falar ao telefone. Este primeiro cartaz mostrava uma mulher jovem, com um cão ao colo, e em letras garrafais: “Quem resgata animais na rua pode matar”, seguido, em letras pequenas, do objetivo da campanha “Não use o celular ao volante” e encerrando com esta pérola: “Gente boa também mata”. A campanha parecia uma daquelas ideias estapafúrdias de publicitários que em algum momento são descartadas ainda no processo de sugestões por alguém com um mínimo de responsabilidade, mas a campanha havia seguido e ali estava. Paga, impressa, distribuída pelas ruas das cidades brasileiras. Um desperdício de dinheiro público, se pensarmos como tudo ali é incompetente: o uso da diagramação, o salto interpretativo que exige para uma campanha de rua. Uma coisa talvez com pé, mas completamente sem cabeça. Mas então passamos da incompetência da campanha à sua irresponsabilidade. Às implicações da verdadeira estupidez política da campanha. Dias atrás, uma chacina em Campinas custara a vida de 12 pessoas, com os grandes jornais reproduzindo a mensagem misógina e violenta do assassino. A campanha certamente fora pensada antes disso, mas qualquer cidadão de olhos abertos deveria saber que aquela chacina não é algo infrequente no país. E ali estava a foto de uma mulher, numa campanha com tamanha inconsequência num país com números vergonhosos de violência de gênero.

Hoje vi um segundo cartaz com a foto de um jovem negro, e novamente em letras garrafais: “O melhor aluno da sala pode matar”, para então, em letras pequenas, recomendar que se respeite o limite de velocidade. Aqui, somos obrigados a pausar e tentar imaginar que pessoas realmente sentaram-se ao redor de uma mesa em uma agência de publicidade do país e tiveram estas ideias, e que a ninguém presente tal raciocínio pareceu de estupidez e irresponsabilidade políticas gritantes. Que estas ideias mais tarde foram expostas mais uma vez em Brasília, no Ministério dos Transportes, e que de novo ao redor de uma mesa, numa conversa regada a cafezinho (também pago com dinheiro público) em nenhum cérebro soou o alarme. Num país em que jovens negros são mortos com uma frequência horrorizante, num país que ainda tenta maquiar seu racismo institucional, em uma República racista que vê sempre jovens negros como perigosos, as pessoas (ir)responsáveis pela agência Nova/SB e pela publicidade no Ministério dos Transportes foram capazes de brindar a população brasileira estas demonstrações – repito – de estupidez e irresponsabilidade políticas.

Só uma coisa se compara à estupidez política da Agência Nova/SB: seu cinismo em ainda tentar angariar mais publicidade para si, retuitando críticas ferrenhas à campanha e usando memes engraçadinhos como respostas a elas. Em seu “Código de ética” publicado em sua página, a agência afirma que “Nenhum empregado ou potencial empregado receberá tratamento discriminatório ou qualquer forma de assédio, intimidação ou qualquer conduta inapropriada em consequência de sua personalidade, raça, cor de pele, origem étnica, nacionalidade, posição social, idade, religião, identidade de gênero, orientação sexual, estética pessoal, condição física, mental ou psíquica, estado civil, opinião, convicção política, ou qualquer outro fator de diferenciação individual.” Pois bem. É louvável que a agência tenha esta preocupação em seu código de ética, mas ela infelizmente demonstrou insensibilidade explícita aos aspectos discriminatórios desta campanha. Todos nós cometemos erros, e posso imaginar as dificuldades financeiras que aceitar e consertar erro de tamanha dimensão podem implicar. Mas esta campanha precisa ser retirada das ruas das cidades brasileiras. É inaceitável que mulheres, cidadãs, e também os cidadãos negros que pagaram por esta campanha tenham que ser sujeitados a tal irresponsabilidade política. A língua não é bem privado, é um bem de toda uma comunidade. Aí reside a exigência de sensibilidade e responsabilidade políticas em seu uso: pelo Governo, por agências publicitárias, por escritores e poetas, por qualquer um andando pelas ruas da República Federativa do Brasil.

Data

quarta-feira 04.01.2017 | 10:06

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