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Passagem pela Holanda

Estive esta última semana na Holanda, onde participei de dois eventos literários. Trata-se de um país com uma intensa relação histórica com o Brasil por causa das Invasões Holandesas do século 17, quando os Países Baixos ocuparam, com a Companhia das Índias Ocidentais, cidades como Salvador, Recife e Olinda, permanecendo por décadas no território e deixando fortes marcas na região. Com o pagamento de reparações por Portugal aos Países Baixos previstas na chamada Paz de Haia em 1661, encerra-se a presença oficial holandesa no território. Quem se lembra hoje de Maurício de Nassau e de que Recife já foi Mauritsstad, a capital da Nova Holanda?

machado Seria de se esperar que tivéssemos uma relação um pouco mais forte com a cultura da Holanda por esta questão histórica, mas nossa identificação com os primeiros invasores europeus, os portugueses, ainda fala mais alto. Fala, especialmente, através da nossa língua comum. É, portanto, natural que nos identifiquemos com Luís de Camões (1524–1580), e não com seu contemporâneo exato Dirck Volckertszoon Coornhert (1522–1590). Nem tiveram seu impacto os escritores contemporâneos à presença holandesa no Brasil, como o poeta e dramaturgo Pieter Corneliszoon Hooft (1581–1647), a poeta lírica Tesselschade (1594–1649), o poeta satírico Constantijn Huygens (1596–1687) ou aquele que é considerado um dos poetas e dramaturgos mais importantes do século 17, Joost van den Vondel (1587–1679). A relação de caráter colonial da Holanda se dá com mais força com a Indonésia, onde permaneceram por muito mais tempo.

No Brasil, o período geraria a fantasia histórica de Paulo Leminski em seu romance experimental Catatau (1975), no qual imagina a vinda de René Descartes ao Brasil, já que este serviu na Holanda sob Maurício de Nassau, caso tivesse ingressado na Companhia das Índias Ocidentais.

A ignorância, obviamente, é mútua, uma vez mais pela barreira da língua e por outras barreiras de natureza e mentalidade colonialistas. O grande tradutor holandês da literatura brasileira, August Willemsen (1936–2007), fez aportar na Holanda os maiores trabalhos de Machado de Assis, Graciliano Ramos, Carlos Drummond de Andrade e João Guimarães Rosa, mas tampouco logrou fazer deles nomes conhecidíssimos como outros contemporâneos nórdicos. Mas suas traduções de Drummond, por exemplo, são ainda facilmente encontráveis e estão em catálogo.

huizingaO mesmo não se pode dizer, no Brasil, de poetas holandeses modernos, como Martinus Nijhoff (1894–1953) ou J. Slauerhoff (1898–1936). A chamada “Grande Tríade” da literatura holandesa do pós-guerra – Harry Mulisch (1927–2010), Willem Frederik Hermans (1921–1995) e Gerard Reve (1923–2006) – é bem pouco ou nada conhecida no Brasil, com a exceção de Mulisch. O jovem tradutor brasileiro Daniel Dago está trabalhando em traduções de holandeses para o português, como Louis Couperus (1863-1923) e Carry van Bruggen (1881–1932). Uma obra monumental holandesa disponível hoje no Brasil é O Outono da Idade Média (1919), de Johan Huizinga (1872–1945), em uma muito bem cuidada edição da Cosac Naify.

Com a ajuda de meu amigo Emanuel John, jovem alemão que trabalhou em sua tese em Filosofia na Holanda, traduzi alguns poemas curtos de Gerard Reve, autor por quem desenvolvi especial admiração dentro da literatura holandesa contemporânea.

Poema para o Doutor Trimbos
Gerard Reve

“Vinho barato, masturbação e cinema,”
escreve Céline.
O vinho acabou, não há cinemas aqui.
A existência torna-se tão monocórdica.

(tradução de Ricardo Domeneck & Emanuel John)

§

Pequeno relatório de viagem

Amsterdã: cheguei à Holanda por Amsterdã, onde fiz uma leitura na livraria e editora Perdu, a convite do jovem poeta holandês Frank Keizer, diretor da coleção de poesia contemporânea da editora, que aceitou a recomendação de meu tradutor holandês, o poeta Bart Vonck, e publicará uma antologia de minha poesia em junho de 2015. Frank Keizer é um dos jovens poetas europeus mais antenados que conheço, dedicando atenção não apenas à poesia moderna e europeia, mas trazendo para as editoras em que trabalha autores contemporâneos como os americanos Ron Halpern e Chris Kraus, ou, além de minha poesia no ano que vem, também a do argentino Martín Gambarotta e a da alemã Monika Rinck. O espaço é muito bonito, e tive a oportunidade de conhecer outros jovens poetas holandeses, como Maarten van der Graaff, Hannah van Binsbergen e Samuel Vriezen. Um jovem poeta holandês com quem tenho me correspondido, mas ainda não tive a chance de conhecer, é Martijn den Ouden.

Poema
Martijn den Ouden

na escuridão sinto samambaias sob as solas dos pés

ramas
solo solto
grama
asfalto
grama
grade
grama
asfalto
solo solto
ramas
samambaias

eu jamais – olhos fechados e descalço – cruzara uma estrada
como essa

(tradução minha)

§

Maastricht: minha vinda à Holanda se deu especialmente a convite do poeta holandês Bas Belleman (n. 1978), curador das Maastricht International Poetry Nights, onde li ao lado de Ulf Karl Olof Nilsson (n. 1965), um dos mais importantes poetas contemporâneos da Suécia, de Afrizal Malna (Indonésia, 1957), de Nick Laird (n. 1975), uma das estrelas da poesia contemporânea britânica, e também da interessante poeta francófona belga Anne Penders (n. 1968), além dos importantes poetas holandeses K. Schippers (n. 1936) e Pieter Boskma (n. 1956), entre vários outros.

§

Utrecht: minha última cidade nesta passagem pela Holanda, vim a Utrecht a convite do escritor e tradutor americano Benjamin Moser, o biógrafo de Clarice Lispector, que vive na cidade há vários anos. Aqui, pude ver sua incrível coleção de primeiras edições de romances brasileiros, como a cópia de Grande Sertão: Veredas (1956) que João Guimarães Rosa dedicou a José Lins do Rego, além de cópias das primeiras edições de Os sertões (1902), de Euclides da Cunha, Macunaíma (1928), de Mário de Andrade, e Crônica da Casa Assassinada (1959), de Lúcio Cardoso, entre várias outras preciosidades.

Mas o documento que mais me impressionou e me deixou em petição de miséria foi a última carta conhecida de Clarice Lispector, datada de 20 de novembro de 1977, duas semanas antes de morrer, a uma amiga em São Luís do Maranhão, na qual discute sua visita próxima (que não aconteceria, por sua morte a 9 de dezembro), na qual comenta seus problemas de saúde mas diz poder seguir viagem logo, pois já estava “quase boa”. Quando cheguei a esta frase, tremi. Talvez aquela famosa convalescença e recuperação enganosas logo antes de morrer, aquele último ato desesperado de luta do corpo antes de entregar-se? Os pelos subiram ao ler este “estou já quase boa”, dias antes de morrer.

Lembrem-se: estamos todos já quase bons.

Data

quarta-feira 05.11.2014 | 13:21

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