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Flip 2015

Começa hoje em Paraty a Flip 2015, com o poeta, prosador, musicólogo e ensaísta Mário de Andrade como homenageado. Há tempos o nome do autor paulistano não aparecia tanto na imprensa, e a homenagem da FLIP certamente teve seu impacto. Até mesmo a tão discutida sexualidade do autor acabou sendo “revelada” com a publicação da famosa carta a Manuel Bandeira. O ensaísta, crítico e músico José Miguel Wisnick discutirá a obra do autor em um evento especial da feira literária. O curador deste ano é Paulo Werneck, que já havia cuidado do evento no ano passado.

Dois dias antes do evento, o italiano Roberto Saviano – um dos nomes mais aguardados do festival – cancelou sua vinda por motivos de segurança. Desde a publicação de seu Gomorra (2006), vive sob proteção policial por ameaças de morte da máfia italiana. Saviano é, de certa forma, o Salman Rushdie de nossa época, e me parece interessante pensar que a ameaça não vem do Oriente, do “outro”, mas de dentro de nossa suposta sociedade ocidental democrática. Um escritor que corre risco de assassinato dentro da própria Europa.

A Flip recebe as mesmas críticas todos os anos, e em sua grande parte são críticas merecidas. Há vários problemas com o formato do festival. O curador parece tentar amenizar vários deles, e algumas de suas escolhas devem ser elogiadas. O convite, por exemplo, para que o poeta Carlito Azevedo apresente-se na feira com alunos de suas importantes oficinas de poesia em locais cariocas como o Complexo do Alemão e a Rocinha, por exemplo, é algo muito benvindo. O projeto de edição das bibliotecas do Rio lançará na festa textos de Deocleciano Moura Faião e Geovani Martins, ambos alunos de Carlito Azevedo.

O próprio convite a Roberto Saviano, com o desejo de discutir a violência ligada ao tráfico de drogas, é algo muito importante para o Brasil, e me parece ir muito além da mera celebridade do autor. E a discussão, que agora terá que ser feita por substitutos ainda não anunciados, é mais que necessária neste momento em nosso país.

Ainda que seja um único autor, devemos sempre celebrar a vinda ao Brasil de um autor africano como Ngugi wa Thiongo. Todos nós, críticos, editores e curadores brasileiros precisamos melhorar nossa compreensão e conhecimento da literatura do continente africano.

No entanto, gostaria de voltar a uma crítica séria que a Flip recebe todos os anos: sua miopia para com as mulheres produzindo grande parte da melhor literatura mundial neste momento. Uma entrevista com o curador, que circulou no mês passado, chamou minha atenção.

Em entrevista ao El País Brasil [“Pichar qualquer festival literário como badalação frívola é elitista”, El País Brasil, 03/06/2015], Paulo Werneck defendeu o evento destas que são as críticas mais merecidas, que recebe anualmente. Sua entrevista causou reações sarcásticas nas redes sociais. Sua escolha de responder à crítica de que a festa seria elitista, chamando de elitistas os que a chamam de elitista, é coisa de praxe em “debates” no Brasil. A questão não é apenas o fato de haver tanta badalação midiática em torno de uma forma de arte que exige reflexão, outro tempo de escuta. É difícil aceitar a tática de defesa, tratando-se de um festival com entradas pagas e caras, em uma cidadezinha bucólica de difícil acesso (exigindo outros custos mais de viagem e hospedagem), festa que por sua vez não paga cachê a seus autores e segue com uma curadoria que ignora a pluralidade de vozes no mundo. A Flip não é para pobres e pronto. Com um pouco mais  de responsabilidade social dos senhores e senhoras que a organizam, talvez alguns dos escritores pudessem se apresentar em locais mais democráticos no Rio de Janeiro e São Paulo, por exemplo, mas imagino que isso entraria em conflito com a necessidade de badalação exclusiva do evento, levando quem pode pagar os custos até a bucólica cidadezinha de difícil acesso.

Mas talvez a declaração que mais tenha gerado estranheza na entrevista de Werneck foi sua afirmação de que, se a presença de escritoras na Flip segue sendo minúscula, a culpa não é dele, pois, se todas as escritoras que ele convidou tivessem aceitado o convite, a quota entre homens e mulheres teria sido equânime, “com 50% ou mais de mulheres”. Ele menciona Mary Beard e Marjane Sartrapi como escritoras que, por um motivo ou outro, não aceitaram o convite.

Vejamos novamente a diferença entre autoras e autores na Flip dos dois anos em que Werneck foi curador: em 2014, foram 47 convidados. Destes, 8 mulheres, o que nos leva a crer que cerca de 18 escritoras convidadas por Paulo Werneck cancelaram ou não aceitaram o convite. Vale lembrar que algumas das convidadas vinham de outras áreas, não da literatura. Este ano, são 42 convidados. Destes, 11 são mulheres. Outras dez autoras parecem ter se recusado a participar da festa. O que ocorre, então? São substituídas por homens? Por que mulheres estão se recusando a participar da Flip, se é este mesmo o caso? Estas não são apenas picuinhas, nem compra de briga com o curador. São questões importantes, que se tornam ainda piores quando contemplamos também a questão racial no evento. Nossas responsabilidades políticas no terreno literário, se formam uma discussão complexa no campo da criação, certamente têm obrigações mais claras e fáceis de definir em nossos papéis de divulgadores de vozes.

A Flip começa hoje. Desejo-lhes uma ótima estadia na bucólica Paraty. Que algumas das importantes discussões que ocorrem no evento possam realmente tomar de assalto a imprensa cultural no país.

Data

quarta-feira 01.07.2015 | 10:56

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1 comentário

Notícias do front literário: nada de novo?

Olhando deste lado do Atlântico, a vida literária aí no Brasil parece agitar-se. Comento a seguir duas das notícias que me chegaram aqui nos últimos dias.

§ – Augusto de Campos recebe o Prêmio Pablo Neruda, outorgado pelo governo do Chile

Vale começar com uma boa notícia. E uma notícia que surpreende: não é sempre que um prêmio institucional, outorgado por um governo, é dado a um autor considerado experimental, e por vezes difícil. Quando o prêmio honra um poeta como Pablo Neruda, pode-se esperar que ele seja dado a autores desta linhagem da poesia latino-americana, e Augusto de Campos talvez seja hoje o maior representante de uma linhagem bastante diferente em nossas letras, mais concentrada em sua linguagem, de caráter construtivista, distante do poeta chileno, com sua verve épica, autor de um dos mais conhecidos poemas longos do continente, o Canto General (1950). Ao mesmo tempo, ainda que Augusto de Campos seja um nome incontornável no Brasil, faz pouco que sua obra começou a atravessar com mais força a fronteira, com traduções e edições em países da América Latina e na França, por exemplo. Celebrar a presença do poeta paulistano entre nós é importante, e mostra a vitalidade de sobrevivente da poesia em língua portuguesa, que ainda conta com mestres como Augusto de Campos, mesmo que tenha perdido há pouco aquela outra voz da balança poética, Herberto Helder.

§ – Academia Brasileira de Letras não outorgará prêmio de poesia este ano

Quanto a prêmios no Brasil, a última lambança a chegar ao fórum das redes sociais foi a notícia de que os jurados do prêmio de poesia da Academia Brasileira de Letras, os “imortais” Ferreira Gullar, Alberto da Costa e Silva e Cleonice Berardinelli, não haviam encontrado livros de poesia dignos de prêmio entre as publicações do ano passado [“Decisão da ABL de não premiar poesia surpreende o setor”, O Globo, 23/06/2015]. Os três jurados são intelectuais brasileiros importantes e merecem, com níveis variados, nosso respeito. Não estão, certamente, acima do bem e do mal, como declarou Silviano Santiago, citado no artigo já mencionado. Poetas que chegam à casa dos 80 e conseguem manter um contato real com a poesia das gerações mais novas são raros. E talvez não valha a pena voltar à crítica de sempre contra a ABL. Os senhores e senhoras de fardão têm suas prioridades e ideologias. Quiçá o fato de que a ABL não quer premiar qualquer livro de poesia este ano seja o melhor elogio que a poesia contemporânea poderia receber. Ao mesmo tempo, Adriana Calcanhotto escreveu um texto lúcido a respeito [“Decisões radicais”, O Globo, 28/06/15], dizendo que o Brasil precisa de excelência e rigor neste momento. Ainda que haja livros que poderiam ter recebido o prêmio da Academia, haveria livros que não poderiam ter deixado de recebê-lo?, ela pergunta em seu texto. É uma questão séria e importante. Ela acredita que tal atitude, demonstrando rigor, pode ser frutífera para nossa produção, e tem razão, em vários aspectos. Há muita preguiça hoje na poesia brasileira. Se muitos poetas, durante a década de 90 por exemplo, nos entregaram textos rígidos demais, talvez hoje o desejo de espontaneidade (esta desculpa brasileira para preguiça e incompetência) sirva como muleta para os textos frouxos que vêm sendo motivo para cortes de árvore e publicação em papel. Resta saber se é de um autor como Ferreira Gullar que podemos receber tal conselho, já que ele próprio ganhou vários prêmios por um livro fraco e frouxo como Em Alguma Parte Alguma (Rio de Janeiro: José Olympio, 2010).

Data

quarta-feira 01.07.2015 | 09:29

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