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A morte de Ustra

Ao chegar ontem a Hamburgo, onde faria uma leitura no ótimo Golem, logo à frente do mercado de peixes da velha cidade portuária da Hansa Teutônica, às margens do Elba, soube da morte do Coronel Brilhante Ustra no Brasil. Estou na cidade a convite de Tomás Cohen (Chile) e Hugh James (Nova Zelândia), escritores do coletivo Found in Translation, que busca unir as cenas literárias alemã e estrangeira no país. Devia preparar-me para a leitura, mas só consegui pensar em Ustra. Seu corpo morto em um hospital de Brasília. Pelas redes sociais, pipocava a indignação por ter morrido sem jamais ter sido punido por suas atividades durante a ditadura civil-militar que se instaurou após o golpe de 1964. Morto, impune. Essas palavras se repetiam na minha cabeça. Seria logo enterrado, provavelmente, com honras militares, e sua família poderia velá-lo, como é seu direito, e saberia onde é o túmulo, para levar flores e enlutar-se de forma legítima. Eu, no entanto, não me segurei, e soltei também o meu “Descanse em pus, Ustra” pelas redes sociais.

Coronel reformado do Exército Brasileiro, Ustra foi chefe do DOI-CODI entre 1970 e 1974, responsável por aquilo que chamamos eufemisticamente (o Brasil é o país dos diminutivos e eufemismos) de “um dos órgãos da repressão política”. O homem era conhecido no submundo das torturas e execuções pelo codinome Dr. Tibiriçá. Em 2008, foi o 0,,18785665_303,00primeiro a ser a reconhecido, pela Justiça, como responsável por torturas durante a ditadura. Mas, de acordo com a Lei de Anistia de 1979, feita para cobrir os rastros de sangue da ditadura e proteger seus carrascos e açougueiros, nada pôde ser feito. Seguiu por seus últimos anos ativo nos clubes militares, na defesa da ditadura militar e nas sandices psicóticas de seus terrores particulares, anticomunistas.

Pretendia subir ao palco do Golem e ler alguns poemas de desamor. Afinal, no trem de Berlim a Hamburgo, pensava em como retornava à cidade 10 anos depois daquele romance desastroso que me trouxera a ela pela primeira vez, em 2005. Foi aqui que recebi a notícia do primeiro derrame que vitimou meu pai. Tenho uma relação estranha com esta cidade. Queria que esta fosse uma viagem de alegrias. E era uma alegria má, mórbida, vindo do que há de pior em meu ser, a que eu sentia ao pensar em Ustra morto. Era aquilo algum tipo de punição? Após uma vida farta de desserviços à nação, cercado de seus entes, aos 83 anos? “Cumpriu sua missão”, diria um interiorano, como eu. E que direito eu tinha, nascido em 1977 na casa e das coxas de um homem que apoiou Paulo Maluf toda a sua vida, de sentir qualquer desejo de vingança?

Mudei minha leitura, falando antes sobre a morte de Ustra para minha plateia majoritariamente alemã, explicando a eles quem fora, o que foi a chamada “repressão política”, sobre os desaparecidos. Li então meu poema “Deixem-me recitar o que a História ensina” (dica: NADA), meu poema dedicado a Ísis Dias de Oliveira, uma das desaparecidas, e terminei com meu vídeo-poema “Entrañas de las Soledades”, com composição sonora de Uli Buder, uma paisagem pós-apocalíptica com vocabulário tirado das “Soledades” de Góngora. Ao acordar hoje, sentia um gosto amargo na boca. Aquela alegria má não me levou a qualquer prazer, qualquer local pacífico.

A leitura foi, como disse, num local chamado Golem. Na tradição mística do judaísmo, o “golem” é um ser artificial mítico, trazido à vida através de um processo mágico, usando o nome secreto de Javé. Trata-se do homem brincando de Deus, imitando a criação de Adão. Falei acima sobre as contradições políticas da Lei de Anistia, que permitiram que Brilhante Ustra morresse impune. Nos últimos dias, Vanessa Barbara escreveu em sua coluna para o Estado de S. Paulo [“Coxinhas vs. Petralhas”, O Estado de S. Paulo, 12.10.15] sobre a radicalização do ódio dualista na política e vida pública nacionais, com direitistas e esquerdistas (ou oposição e situação sempre intercambiáveis) em guerra aberta, pedindo as cabeças uns dos outros. Por sua vez, Bernardo Carvalho escreveu sobre um café tomado com um editor de direita (Carvalho, mais sensato que eu fora no passado, não cita nomes para não bater palma pra louco), na qual a conversa logo descambou para insultos, tomado por raiva justificada perante a burrice alheia [“Encontro com um editor de direita”, Blog do IMS, 14.10.15].

O que o golem, a Lei de Anistia, a morte de Ustra e meu poema a Ísis Dias de Oliveira fazem nesse embolado, não para inglês ver, mas para brasileiro fingir que não vê? O editor de direita gritou na cara de Bernardo Carvalho que a presidente fora uma terrorista. Quando publiquei a poema a Ísis Dias de Oliveira, alguém chegou a comentar que ela havia recebido o que se recebe ao pegar em armas, e que também era uma terrorista. A discussão em torno da Lei de Anistia traz problemas éticos e políticos difíceis, coisa para juristas e filósofos do Direito, não para um poeta de alegrias más.

O que sinto é que ainda vivemos sob os impactos da última quebra da democracia e do Estado de Direito, da violência generalizada que a ditadura uma vez mais abriu feito cratera no país, onde a pena de morte não está prevista na Constituição, mas existe, quando direitos previstos na Constituição são desrespeitados, no país formado em meio a genocídio, que se tornara independente, mas com escravos, que tinha uma Assembleia Geral, mas com escravos, que se tornou República, de cidadãos que deveriam ter direitos iguais, mas segue matando negros, índios, homossexuais, onde dissidentes políticos foram desaparecidos, onde para se defender da quebra da democracia, quebra feita com armas, gente pegou também em armas, onde vivemos num ciclo inquebrável de violência uns contra os outros, uma guerra civil de atrito, onde a cada temporada nasce um golem.

A violência generalizada que a ditadura militar instalou no país, de crimes de tantos lados em nome de ideologias, manchou-nos a todos de sangue – ao menos os “sortudos” que não foram mortos, e deveríamos temer e salvar-nos de qualquer possível nova quebra desta democracia, e é medo o que sinto ao ver o país mergulhando nestes discursos dualistas tolos, mas perigosos, como se nada tivéssemos aprendido desde 1964. Ou deveria dizer 1822? Cuidado com o golem. Ustra está morto. Descanse em pus, Dr. Tibiriçá. Que gosto amargo, amargo.

Data

sexta-feira 16.10.2015 | 12:06

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