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Ave Maria, mulheres!

No Brasil, Maria Valéria Rezende desbanca machos famosos e recebe o Prêmio Jabuti por seu romance Quarentas dias (Rio de Janeiro: Alfaguara, 2015). A excelente Márcia Denser reúne seus textos jornalísticos no volume DesEstórias (Curitiba: Kotter Editorial, 2016). Poetas como Angélica Freitas e Ana Martins Marques seguem sendo os poetas lidos com maior paixão dentre os da minha geração, recebendo no ano passado a companhia da portuguesa quase brasileira Matilde Campilho. Os curadores da FLIP, famosos por ignorar o trabalho de mulheres, anunciam que Ana Cristina Cesar (1952-1983) será a homenageada em 2016, a segunda mulher a receber a honraria na história do evento, após Clarice Lispector em 2005. Não entraremos aqui na questão de Ana Cristina Cesar ter tido sua obra lançada recentemente pela Companhia das Letras como motivo. Influência de uma grande editora sobre as decisões do evento? Ao menos escolheram homenagear uma mulher, finalmente.

Screen Shot 2016-03-08 at 10.56.38No âmbito anglófono, discute-se com fervor Clarice Lispector e a tradutora de seus Contos Completos, Katrina Dodson, recebe um prêmio importante da organização PEN. A tradutora americana de Angélica Freitas, Hilary Kaplan, concorria ao prêmio na categoria de poesia. Desde as suas primeiras traduções para o inglês, Hilda Hilst vem angariando seus fãs nos Estados Unidos, também. Em uma mesa redonda em 2014, cuja discussão pode ser lida na revista Music and Literature, tradutores e críticos discutem com paixão a obra da escritora nascida em Jaú e exilada na Casa do Sol, morta 10 anos antes. E tanto Clarice Lispector quanto Hilda Hilst são escritoras que contradizem o que o Norte espera da literatura do Sul. Stephanie Sauer diz na mesa redonda: “Tenho confiança de que o trabalho de Hilst, em especial, tem o poder de desafiar as noções de seu novo público (o norte-americano) do que é a escrita vinda do Brasil, de um Sul imaginado.”

Li ontem um artigo de Daniel Gigena no jornal argentino La Nación mencionando o maravilhoso trabalho de Veronica Stigger [“Mujeres que (se) escriben”, La Nación, 6.3.2016]. Na Espanha, Marília Garcia é traduzida. Na Alemanha, Érica Zíngano. Na França, durante o Salão do Livro de Paris, a imprensa quer saber é de Conceição Evaristo. Em Portugal, nossos conlíngues vão lendo Nina Rizzi, Carla Diacov, Adelaide Ivánova. Do pó de sebos, do escuro de gavetas, da miopia crítica de universidades e jornais, vão ressurgindo as obras de Patrícia Galvão, Henriqueta Lisboa, Maura Lopes Cançado, Carolina Maria de Jesus, Stela do Patrocínio, Hilda Machado, graças aos esforços de uns loucos apaixonados.

Como falar sobre a Literatura Brasileira Contemporânea sem mencionar prosadoras como Zulmira Ribeiro Tavares e Ana Maria Gonçalves? Poetas como Elisabeth Veiga e Lu Menezes? Os trabalhos cruzando fronteiras entre gêneros, como os de Laura Erber, Fabiana Faleiros e Luísa Nóbrega? Não há poeta de minha geração de quem eu espere textos com mais avidez do que Juliana Krapp. São estes alguns dos nomes que comandam minha atenção quando penso na produção literária do país.

Já se foram os dias em que o país se espantava com a obra de uma mulher como Francisca Júlia e insinuava nos jornais que aquilo não poderia ter sido escrito por uma mulher, que só podia ser coisa de homem, era bom demais. Francisca Júlia casou-se, calou-se, e jamais saberemos os motivos. Suicidou-se em 1920 e Deus sabe o que se fez de seus papeis, se os havia. Cecília Meireles segue sendo nossa poeta mais famosa, ao menos o era enquanto eu crescia, ainda que sua obra não seja tão mencionada nos dias de hoje. Mas a concretude e música áspera de seus melhores poemas ainda estão entre nossas melhores tentativas de redenção neste país de assassinos.

Desenho
Cecília Meireles

 

Pescador tão entretido

numa pedra ao sol,

esperando o peixe ferido

pelo teu anzol,

 

há um fio do céu descido

sobre o teu coração:

de longe estás sendo ferido

por outra mão.

 

Quantos escritores brasileiros se arriscaram mais do que Clarice Lispector em A Maçã no Escuro (1951)? Do que Hilda Hilst em Qadós (1973)? Neste Dia Internacional, celebro estas mulheres que têm me ensinado a pensar sem que me esquecer que o pensamento apenas pode ocorrer em um corpo. As matriarcas mortas e, principalmente, as guerreiras vivas. As de agora. Aquelas com quem compartilho oxigênio, cidadania, e nossa falta de oxigênio e falta de cidadania. Obrigado, Maria Valéria Rezende e Ana Maria Gonçalves. Zulmira Ribeiro Tavares e Lygia Fagundes Telles. Márcia Denser e Miriam Alves. Conceição Evaristo e Veronica Stigger. Lu Menezes e Elisabeth Veiga. Marília Garcia e Érica Zíngano. Angélica Freitas e Luísa Nóbrega. Obrigado.

 

atributos
Juliana Krapp

 

Gostaria de ser uma mulher

que soubesse identificar um brocado

uma cerzidura um carmesim um

adorno

em matelassê

 

No comércio

a palavra aviamentos me lembra

de que há todo um reino de malícias

que desconheço

– penso

não em ilhós

mas em aves aquáticas

artefatos explosivos

 

Gostaria

de poder dizer: vamos desenlaçar

o cordão do meu quimono vamos

providenciar castanhas doces

para o grande banquete

e nos deitar sob o dossel à espreita

das comissuras

que ardem na pele

 

Porém

eu estou atada

ao mundo da sonolência

e das cintilações breves

da louça quebradiça e da mixórdia

– ao lugar

das mulheres e bichos

que se espatifam n’água

Data

terça-feira 08.03.2016 | 08:26

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