Quando o Brasil for o que acredita que é
Este texto ia ter outro título e partir por outro caminho. Como dar conta das notícias absurdas que se empilham diante da porta, vindas do Brasil? Uma das saídas tem sido a comicidade, o riso. Afinal, uma das únicas fontes de notícias no país, hoje, que poderíamos chamar de imparcial é a publicação satírica O Sensacionalista. Quando foi publicado o texto do depoimento do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva à Polícia Federal durante sua condução coercitiva, com aqueles detalhes cômicos sobre café e misto-quente, o escritor Victor Heringer comentou que se um grupo de teatro decidisse encenar o texto, seria uma perfeita peça de Harold Pinter. O Nobel de 2005 trabalhava com o absurdo em sua dramaturgia, tendo seu estilo sido chamado de “Comedy of Menace”, algo como comédia da ameaça. Minha resposta a ele, no mesmo clima de absurdismo, era que após análise filológica me parecia mais provável que a autoria da peça fosse de Qorpo-Santo, o “louco” brasileiro do século 19 que já foi chamado tanto de precursor do Teatro do Absurdo como do surrealismo. O próprio Heringer comentou hoje: “Solidariedade aos confrades cronistas que estão com o Word aberto neste momento pensando ‘Não sei nem por onde começar’. Obrigado, Heringer. Nem sei por onde começar.
Uma das saídas para aqueles se sentem impotentes para além do comando dos próprios cérebros e bocas tem sido o humor. E no meio do caos de quarta-feira, 16.03, devo ter gargalhado algumas vezes, alto, com comentários da esquerda verdadeira no país. Não tenho contatos suficientes à direita para saber se têm o mesmo humor. Duvido. São melhores no batuque de panela. Mesmo o artigo sobre a situação do país no jornal alemão Die Zeit, do jornalista Thomas Fischermann, brincou com a trama da série norte-americana em meio à nossa crise política. Escrito no Rio de Janeiro, tenho certeza de que o jornalista alemão pegou a piada com brasileiros. No país das novelas, parecemos estar diante de outra, porém um tanto mais trágica e farsesca que o normal. E qual seria o horário mais apropriado para esta? Com certeza, após as 10 da noite. O poeta paulista Marco Catalão comentou: “A dramaturgia está sensacional, com reviravoltas a cada minuto. O problema é o preço do ingresso.”
Já o poeta carioca Italo Diblasi criou sua personagem fictícia Simão Sinésio em um dos melhores textos que li nesta bagunça toda, encerrando-o assim:
“E aqui nos encontramos, ao estágio do mito-brasil descrito por Simão em que as massas se dividem. Há quem consulte os relógios e os bancos; há quem consulte a bolsa de valores ou o próprio estômago. Há os que olham para a televisão, para o horizonte e para o céus. Há os que olham para o mar à espera do rei. Enquanto isso, Lula, cognominado ‘A Jararaca do rabo partido’, declara guerra e reúne as tropas. O baralho de ouros se agita e também estende as garras. Não faltam acusações e há farsas. Os acusadores bradam a aletheia, a verdade. A imprensa defende o seu naipe, e instiga: Bandido ou Herói? E também isso Simão Sinésio, o Bardo, o que perambulou pregando, já havia respondido: em matéria de Brasil, Os dois!” [Italo Diblasi, “Um Cordel Perdido ou O Mito-Brasil“, Modo de Usar & Co., 9-3.16]
Ao trazer Qorpo-Santo à baila, busquei textos seus, mas acabei descobrindo outro poeta no processo, o modernista gaúcho Tyrteu Rocha Vianna (1898-1963), autor de um único livro, Saco de viagem (1928), no qual encontrei os versos:
Trapo nem verde nem amarelo nem mais nada
Meu Pai respondente
Sentado me dizia
É o regime econômico vaca magra
Das tetudas economias invisíveis
Do dinheiro municipal calotíssimo
Desde Gregório de Matos, o primeiro grande poeta brasileiro lusófono, é a sátira que nos redime, talvez um pouquinho. E como permanecem atuais os textos de Gregório de Matos, de Sapateiro Silva, de Qorpo-Santo, de Luiz Gama, de Oswald de Andrade, de Tyrteu Rocha Vianna.
Mas chegou um momento quarta à noite, em meio ao circo televisionado pelo Jornal Nacional, em que precisei parar tudo e ouvir Pixinguinha. Para me lembrar de que o país poderia ser muito mais do que um mero circo de quinta categoria em chamas. Depois, li um poema de Manuel Bandeira. Olhei algumas pinturas de Tarsila do Amaral. Este país poderia ser tanto mais do que um picadeiro de palhaços furiosos. Eu só queria que o Brasil fosse como Pixinguinha, como Manuel Bandeira. Não é pedir demais. Eles já vieram e apontaram o caminho. Não estou pedindo Bach e Shakespeare. Só Pixinguinha e Bandeira.
É. Se alguém me perguntasse o que eu esperava do Brasil, o que eu gostaria que ele se tornasse, responderia simplesmente: que o Brasil se torne aquilo que acredita que já é. Que o Brasil se torne aquilo que me disseram que era, quando criança. Que conto de fadas lindo era aquele! Que fábula! Como é bonito o Brasil imaginário! Então, voltando ao texto de Italo Diblasi, digo: em matéria de Brasil, aquele outro!