FLIP 2016
Em 2012, a DW Brasil publicou um texto opinativo meu, discutindo o número baixíssimo de autoras naquele que se quer o maior evento literário do Brasil, a Flip [“Com poucas autoras, Flip não reflete a produção literária atual”]. Pouca coisa mudou nos anos seguintes. Em entrevista à jornalista Camila Moraes do El País Brasil, Paulo Werneck, curador pelo terceiro ano consecutivo do evento, discutiu a ausência de autores negros no evento [“Faltam negros no palco da Flip, mas também na plateia”]. Em outro artigo, a mesma jornalista afirmara que este ano a edição finalmente pertencia às mulheres.
Vamos começar por falar sobre a presença das mulheres este ano. É verdade que a festa jamais convidara tantas autoras. Segundo a introdução à entrevista, são 17 mulheres entre 39 convidados, “quase 44%”. Até pouquíssimo tempo, a festa não era capaz de encontrar uma dezena de autoras para trazer ao país. Há aí, portanto, um avanço. É verdade que a curadoria, com frequência, não parece conseguir funcionar num raio muito maior que o do estado do Rio de Janeiro, mas este é um velho problema brasileiro, e neste ano acaba influenciado pela escolha da homenageada, Ana Cristina Cesar (1952-1983), apenas a segunda vez que uma autora é homenageada no evento, após Clarice Lispector na edição de 2005. O fato foi celebrado como o deveria ser. Ana Cristina Cesar é uma poeta importante. Então contenho o que poderiam chamar de cinismo meu, em imaginar o quanto a escolha tenha sido decidida pelo fato de que sua obra completa foi publicada há tão pouco tempo por uma grande editora como a Companhia das Letras, com a qual Werneck tem laços, digamos, históricos. Mas, viva Ana Cristina Cesar!, poeta que produziu realmente textos maravilhosos em sua vida tão curta, e espera-se que autoras como Hilda Hilst, Patrícia Galvão, Carolina Maria de Jesus e Cecília Meireles, entre outras, encontrem espaço nos anos futuros.
Já festejei no texto anterior a este, que o sírio Abud Said esteja entre os convidados deste ano, e é uma alegria ver o grande poeta brasileiro Leonardo Fróes na lista. Valeria Luiselli vem realmente aparecendo nas listas mais prestigiadas do último ano, e todos devem estar em polvorosa mais que justa com a vinda da ganhadora do Prêmio Nobel do ano passado, Svetlana Aleksiévitch.
Mas, a não ser pela presença do excelente autor sírio, não há um único autor que não seja identificado como branco em Paraty em 2016. O curador defende-se dando nomes de autores negros que teria convidado, mas que não aceitaram, como a nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, o astrônomo norte-americano Neil DeGrasse Tyson, e o escritor Ta-Nehisi Coates, também dos Estados Unidos. São nomes extremamente importantes. O livro mais recente de Ta-Nehisi Coates, Between the World and Me (2015), deveria ser discutido amplamente no Brasil.
São também autores festejados pelo New York Times, algo importante para os curadores da Flip, sempre jornalistas, que trazem para a curadoria literária o que chamo de “espírito do gancho”. É cinismo meu? Talvez. Mas, como afirmou o poeta brasileiro Ricardo Aleixo nas redes sociais, não é cinismo de Paulo Werneck citar estes nomes no tom de “mas eu tentei, eles recusam!”? Se houvesse realmente a preocupação política incontornável de escapar do racismo inerente de curadorias desta natureza no Brasil, não seria possível pensar em outros nomes, com todo um continente africano à disposição? Werneck elenca logo em seguida, entre os brasileiros, seus convites aos músicos Mano Brown e Elza Soares. Mano Brown e Elza Soares são nomes imprescindíveis da cultura brasileira hoje, mas o curador realmente esgota aí seu conhecimento de escritores negros no Brasil, e no mundo? Com autores como Sebastião Nunes, Miriam Alves e o próprio Ricardo Aleixo jamais tendo sido convidados?
E cá estamos falando novamente da Flip como se já não soubéssemos há tanto tempo que se trata de uma festa menos literária que editorial. Tivesse realmente preocupações políticas sérias, como o curador tenta afirmar em sua entrevista, ela já teria percebido que necessita descentrar o poder da curadoria, dividindo-a (por que não?) entre responsáveis pela literatura de cada continente, garantido uma verdadeira internationalização desta festa capengamente chamada de internacional, quando se mostra a cada ano extremamente eurocêntrica e anglófila. E, como já disse em outras ocasiões, que tal convidar grandes ESCRITORES, vindos de cada continente do globo, para o papel de CURADORES? Cá está minha contribuiçãozinha anual sobre o assunto.