Hubert Fichte e a literatura pop alemã
Há cinquenta anos, assim diz a narrativa histórica, nascia em Hamburgo a literatura pop na Alemanha. Em 1966, no Star-Club de Hamburgo, o prosador Hubert Fichte lê pela primeira vez trechos do seu romance Die Palette, publicado mais tarde, em 1968. Die Palette era um clube noturno hamburguês, foco de encontros da jovem intelligentsia e dos outros desajustados em geral da cidade. A personagem principal, Jäcki, faz do lugar sua sala de estar, e o romance é marcado por topônimos e repetições de nomes, num círculo pela cidade que tem o clube como centro. O romance fez de Hubert Fichte uma estrela ascendente da cena alemã naqueles meados da década de 1960, em meio às turbulências políticas da Alemanha Ocidental.
Nos anos anteriores, Fichte havia já conhecido a fotógrafa Leonore Mau, com quem faria as primeiras viagens. Em 1963, os dois fundam uma “república” no bairro Othmarschen de Hamburgo, e, no mesmo ano, Hubert Fichte lê para os intelectuais do pós-guerra do famoso Grupo 47 trechos de seu primeiro romance, Das Waisenhaus (O orfanato, 1965). Ali conhece o importante ensaísta alemão Fritz J. Raddatz (1931-2015), homossexual, num momento em que Fichte já começava a questionar sua sexualidade. Esse questionamento desaguaria no delicado romance Versuch über die Pubertät (Ensaio sobre a puberdade, 1974), pioneiro em seu tratamento cândido das agruras sexuais dos tempos de explosão dos hormônios. Ali Fichte discute ainda sua relação e a influência de Hans Henny Jahnn (1894-1959) sobre sua vida.
Em 1971, vem o fato marcante em seu trabalho e que deveria fazê-lo mais conhecido do que é hoje no Brasil: sua viagem à Bahia, assim como ao Haiti e a Trinidade, para estudar o candomblé. Vem com Leonore Mau, que faria fotos importantes dos rituais. Desta experiência surgiria o livro Xango. Die afroamerikanischen Religionen. Bahia. Haiti. Trinidad. (Xangô. As religiões afro-americanas. Bahia. Haiti. Trindade, 1976). Ao mesmo tempo, em uma cultura como a europeia com sua obsessão por gêneros literários, começa a ficar difícil encaixar o trabalho de Hubert Fichte nas estantes. Visto como romancista por uns, como etnógrafo por outros, seu trabalho perde visibilidade no fim de sua vida. O próprio passaria a chamar seus trabalhos a partir de Xango de etnopoesia, como no conceito do poeta norte-americano Jerome Rothenberg. Entre 1973 e 1974, suas viagens o levariam ainda a Tanzânia, Etiópia e República Dominicana.
Em 1974, começa seu trabalho mais ambicioso, marcado por memorialistas homossexuais como Marcel Proust e Jean Genet: seu ciclo de romances conhecido como Die Geschichte der Empfindlichkeit (A História da Sensibilidade). O ciclo ficaria inacabado com a morte de Hubert Fichte aos 50 anos em 1986. Em seu obituário, o amigo Fritz J. Raddatz escreveria sobre o autor que se descrevia como „aquele autor excêntrico, meio-judeu e viado“, e que assinava as próprias cartas por vezes Marcel, Bosswell, às vezes como Madame Bovary ou Madame de Staël, ou ainda Violette Le Duc ou Hubert Alexander von Fichte-Swann [Fritz J. Raddatz, „Der Tod des Aderflüglers: Nachruf auf Hubert Fichte”, Die Zeit, 14.03.1986].
A primeira vez que ouvi o nome de Hubert Fichte foi há 12 anos no estúdio do fotógrafo alemão Heinz Peter Knes, que me recomendou seus livros enquanto conversávamos sobre o que me parecia, à época, a parca literatura queer da Alemanha. Amigos aos poucos me falariam dos alemães Klaus Mann (1906–1949) e Ronald M. Schernikau (1960–1991), de gerações tão diferentes, assim como dos próprios Hubert Fichte e Fritz J. Raddatz, ou da suíça Annemarie Schwarzenbach (1908–1942) e sua namorada Erika Mann (1905–1969), irmã de Klaus, os dois filhos famosos de Thomas Mann.
Este fim de semana ocorrem em Berlim e Hamburgo o que estão sendo chamadas de reencenações de Hubert Fichte, comemorando os 50 anos de sua leitura em 1966. Fui convidado pelo curador Detlef Diederichsen, da Haus de Kulturen der Welt (Casa das Culturas do Mundo) a me apresentar no evento berlinense. Para o evento, preparei um conto que toma um inferninho de Berlim, em Schoeneberg, como foco.