Nós, os inacabados
Dia de Finados no Brasil. Finados. No interior diz-se apenas isso: hoje é finados. Essa palavra fascinou minha cabecinha de poeta-criança a primeira vez que associei, através dela, as ideias de “acabado” e “morto”. O morto: o acabado, encerrado, terminado. O finado: que se finou; pessoa que faleceu; defunto. Em Portugal, chama-se hoje o Dia dos Fiéis Defuntos. Os mortos são sempre fiéis. Leais. Não correm, não fogem. Os mortos ficam. Finar: acabar, findar e findar-se, morrer. Ficar onde se caiu. Cair e não levantar. Penso em meu pai, hoje morto, que sempre dizia de Ulysses Guimarães quando este aparecia na televisão: “Esse aí morreu e esqueceu de deitar.” E por fim o corpo do finado Ulysses Guimarães jamais deitou-se. Fez o grande nado sincronizado. E meu pai está hoje deitado eternamente.
Ouço “finado” e associo o morto ao completo. O morto como pronto. Desvestir-se da carne para completar-se. Talvez aí a verdade do “menos é mais”? Descarnar-se para estar prontinho da silva? Quando só ossos, então sussurrar na cova: “está consumado?” Está finado. Está findo. Não o nosso eterno devir, esse tornar-se que não se acaba, palavrório de afrancesados. Não. Nós não devimos, nós que estamos vivos e sempre vindo e devendo os olhos da cara. Não, não o devindo, mas o findo. O finado. Eu não devenho, eu devo. Devo estes olhos que a terra há de comer quando eu enfim estiver findo e de mim dizerem: o finado Ricardo Domeneck. Ou, no carinho fingido do brasileiro cordial: ah! o saudoso Ricardo Domeneck! Isso digo eu mesmo de mim ao espelho: saudoso! Saudoso você, finado Ricardo!
O Brasil e seus eufemismos. Aprendemos de Portugal. Finados. Fiéis Defuntos. Admiro os mexicanos, que olham a Coisa na cara e dizem o que é, como é: Día de los muertos. Nós preferimos o saudosismo de nossos eufemismos e sentimentalismos, nós lusófonos que cremos ter algum tipo de monopólio sobre o sentimento da “saudade” só porque lhe demos nome. Mas hoje não é dia dos mortos. Minha mãe dizia: “Velório, flor, túmulo enfeitado? Isso é pros vivos… Os mortos lá vão se importar?”. Minha mãe viva, com que não falo há meses, mãe que devém e deve. “A família penhorada agradece!”, dizia meu pai quando um rico da cidade lhe fazia um agrado e mandava para nossa mesa a leitoa leiloada na quermesse. Ela, a leitoa finda, finada leitoa. Todas as finadas leitoas de Bebedouro! A família penhorada agradece!
Não me esqueço de uma história que me contaram amigos sobre sua visita ao Castello Aragonese em Ischia, as fotos do cimiterio delle monache (cemitério das freiras), um putridarium, porão onde os corpos das freiras mortas no convento eram colocados, sentadinhas sobre uma cadeira de rocha, uma espécie de trono com furos para que seus líquidos putrefatos filtrassem, e as freiras vivas passavam horas ali, contemplando suas finadas companheiras. Muitas adoeciam e morriam justamente por passar tanto tempo ali, com as irmãs mortas. Mas para meditar sobre o quê? Sobre a finitude de tudo.
Que feriado triste. Que feriado com cheiro de coisa pagã, e nisso jaz (oh! “jaz!”) meu interesse nele. Quando criança, apenas chupava feito esponja a tristeza dos adultos e embebia nela, enquanto eles catavam vassoura, balde, bucha e sabão em pó (OMO: o branco de cálcio que a sua família merece!) e corriam cabisbaixos para o cemitério ao fim da Rua Campos Salles, para lavar, enfim, os que haviam descido a Campos Salles. Ah! Ainda é meu eufemismo favorito, este do idioleto bebedourense: em Bebedouro ninguém morre, apenas desce a Campos Salles. Mas eu era criança quando minha mãe nos levava a tiracolo para lavar o túmulo do seu pai, meu avô. O finado José Cardoso! Que me pegou no colo e morreu logo, mas nessa época “eu era feliz e ninguém estava morto”, como escreveu Fernando Pessoa. Eu agora tenho meus mortos para lavar. Eu agora lavo meus próprios mortos. Dia de finados, não. Dia dos vivos que se voltam para seus mortos. Hoje é nosso dia. O dia dos infindos. Nós, os inacabados.