Como explicar o significado da palavra ‘saudade’ para um alemão
Há poucos dias, um grande amigo e vizinho berlinense que dá aulas de alemão para estrangeiros pediu que eu explicasse a palavra ‘saudade’ e como a usamos, porque ele havia ouvido de um brasileiro mais um discurso sobre a especialidade e especialeza da palavra em nossa língua. Não era a primeira vez que um amigo mencionava isso, já que nós lusófonos adoramos este detalhe de nossa língua. Afinal, será assim tão especial esta palavra? Eu parti do seguinte princípio para explicar a ele a diferença entre a forma de expressar este sentimento (a saudade) em português e alemão, ou inglês:
Imagine o que ocorre quando dizemos a alguém ‘Ich liebe dich’ (‘I love you’ / Eu te amo). Expressa-se aí um sentimento, e este sentimento tem nome: ‘Liebe’, ou amor, ou ‘love’. Ama-se, portanto sente-se amor. Amor por alguém. Há um substantivo: ‘Liebe’ / amor / ‘love’, e um verbo em cada língua ligado a ele: ‘lieben’, amar, ‘to love’. Certo. Então, eu disse: imagine o que ocorre quando você diz a alguém ‘ich vermisse dich’, o que em português seria expresso com “eu tenho saudade de você” ou “eu estou com saudade de você.” Aí surge a diferença, que demonstra uma falta em cada uma das línguas: em português, temos um nome para o sentimento, um substantivo: “saudade”. Isso, eles não têm. ‘Sehnsucht’ ou ‘nostalgia’ expressam partes do que significa ‘saudade’ pra nós, mas não completamente. Ao mesmo tempo, é interessante pensar que eles têm um verbo – “vermissen” em alemão e “to miss” em inglês – mas nós, não. A diferença entre “amor” e “saudade” aqui se torna paupável: o amor tem nome e profissão, um substantivo e um verbo. Sente-se amor, ama-se. É interessante notar que em alemão ou inglês, “saudade” não tem nome, mas tem sua profissão. Expressa-se com um verbo o sentimento: “ich vermisse dich / I miss you”, mas não há um nome para o sentimento, enquanto em português damos um nome ao sentimento, mas não há um verbo.
Foi aí que me ocorreu a estranheza da construção mais comum no interior de São Paulo e em outras partes do país: EU ESTOU COM SAUDADE. Porque esta é a mesma construção de outras necessidades de expressão, como EU ESTOU COM FEBRE, EU ESTOU COM GRIPE ou mesmo EU ESTOU COM CÂNCER. Ou seja, a construção liga a SAUDADE a uma DOENÇA, a uma ENFERMIDADE.
Sendo tão importante para nós a palavra ‘saudade’, para nossa identidade linguística, não é interessante que não tenhamos também um verbo para ‘sentir saudade’? Fiquei tentanto imaginar como seria este verbo: saudadar? Saudader? Saudadir? Saudador? Eu saudado, Tu saudadas, Ele saudada, Nós saudadamos, Vós saudadais, Eles saudadam?
Seria reflexivo? Eu saudado-me de você? Seria transitivo direto? Eu saudado você?
Em alemão e inglês, o ‘vermissen’ e o ‘to miss’ estão ligados a perda e sumiço. Ou seja, poderíamos imaginar uma situação em que diríamos não “eu tenho saudade” mas “eu perco você”, como tradução literal de ‘ich vermisse dich’ ou ‘I miss you’. E temos algo parecido: pois você já pensou na estranheza da expressão ‘sentir a falta’? Se a falta é uma ausência, é o que ‘não está’, como se sente isso? Esta é uma das definições mais bonitas talvez desta palavra da qual tanto nos orgulhamos, ‘saudade’: é sentir a falta. Aquele belo poema de Carlos Drummond de Andrade, “A falta que ama”, que termina com os versos: “É a falta ou ele que sente / o sonho do verbo amar?”
Toda língua tem suas idiossincrasias. Eu às vezes resisto à ideia de que ‘saudade’ seja intraduzível. Ora, na maior parte dos casos, o verbo dos alemães é tradução mais que eficiente para nosso substantivo. Talvez eu tenha apenas ouvido tanto esta conversa sobre a uniqueza de ‘saudade’ que tenha me cansado. A internet está cheia de listas de palavras intraduzíveis de várias línguas. Gosto de pensar em “mamihlapinatapei”, supostamente da língua yagan da Tierra del Fuego, que dizem significar o olhar em silêncio entre duas pessoas que gostariam ambas de dizer algo mas são tímidas demais para começar. E dizem que em indonésio a palavra “jayus” designa uma piada tão ruim, tão ruim, que todo mundo ri. Dizem que os inuítes têm uma palavra que designa simplesmente o ato de sair do iglu para ver se alguém está se aproximando: “iktsuarpok”. E talvez a coisa mais bonita que já tenha ouvido ser possível dizer de uma pessoa a outra é a suposta expressão árabe “ya’aburnee”, que se diz para expressar o desejo de morrer antes da pessoa que se ama, para não passar pelo horror de enterrar o amado, a amada. Como olhar para alguém e dizer em português: “enterre-me você”. E em várias listas dessas, quando aparece uma palavra em português, com frequência não é ‘saudade’, mas ‘cafuné’.