Leituras estrangeiras em 2016
Seguem algumas recomendações de leituras estrangeiras, coisas que me caíram nas mãos e entraram pelos olhos este ano. Vou me concentrar não apenas nas que mais me marcaram, mas especialmente em algumas coisas que chegam com dificuldade ao Brasil. Ficam também como sugestões para traduções a qualquer editor que acabe lendo isso.
Uma das leituras que mais me marcaram (e perturbaram) foi o cultuado livro da coreana Theresa Hak Kyung Cha, chamado ‘Dictee’. Publicado em 1982, o livro sai pouco antes da autora, diretora e artista ser volentada e assassinada em Nova York. Um livro trágico em todos os seus aspectos. É um livro também híbrido, mesclando narrativa memorialística, ensaio histórico, poesia. Lembro-me de uma entrevista do poeta norte-americano Robert Creeley, em que ele comenta ter lido ‘Os sertões’ de Euclides da Cunha, e menciona a sensação quase física de adição de espaço e tempo a sua mente, desconhecendo como desconhecia até então não apenas o espaço geográfico real que é o sertão brasileiro, quanto o que o sertão brasileiro congrega de história. Talvez seja uma forma de descrever o que o livro de Theresa Hak Kyung Cha fez em minha mente a partir de sua descrição da invasão e colonização da Coreia pela Japão, as lutas por independência com seus heróis, nomes que evocam História imediatamente a um leitor coreano, mas que eu, brasileiro, desconhecia por completo. É como imaginar o que um nome como Antônio Conselheiro, tão carregado de significado para nós, faz aos leitores na Alemanha, por exemplo, da tradução de Berthold Zilly para o clássico brasileiro. O livro de Theresa Hak Kyung Cha é dividido em 9 partes, cada parte dedicada a cada uma das musas. Na primeira parte dedicada a Clio, a Musa grega da História, por exemplo, a autora discute a vida de Yu Guan Soon (1903–1920), uma estudante coreana acusada de liderar uma revolta contra os japoneses. A jovem morreu na prisão aos 17 anos, acredita-se que em decorrência da tortura. Em outra parte, ela discute o exílio de sua mãe coreana na Manchúria, China, o que se torna um espelho do próprio exílio da autora nos Estados Unidos. Tudo isso vem marcado pela troca de língua, uma autora nascida na Coreia, naturalizada americana e escrevendo em inglês. Sua discussão sobre identidade e sobre a invasão e colonização da Coreia pelo Japão uniram-se a minhas releituras recentes de Oswald de Andrade, por ocasião do lançamento das traduções de Oliver Precht aqui na Alemanha. Identidade. Tupy or not tupy, that is the question. Como sequer pensar numa correlação entre Coreia/Japão e Brasil/Portugal? Eu achava que estas perguntas já haviam sido respondidas por nossos modernistas, sejam os poetas como Mário de Andrade ou os pensadores como Gilberto Freyre. Mas elas se reabriram na minha cabeça. Cada vez mais me parece que o destino da pergunta de Oswald de Andrade seja esta: jamais ser respondida.
Outra coisa importante foi ler a versão de Anne Carson para a peça de Sófocles, ‘Antígona’, intitulada em versão da canadense como ‘Antigonix’. Anne Carson está sem dúvida entre os maiores poetas, tradutores e escritores vivos neste planeta hoje. Os que aguardam novos trabalhos seus os recebem com alegria de culto. Exímia tradutora do grego antigo, é estonteante ver noções como tradição e vanguarda, ou original e tradução, perderem qualquer sombra de separação em seu trabalho. ‘Antigonix’ é ao mesmo tempo tradução, edição comentada, poema original. Consciente ainda de que jamais poderemos ler ou assistir a uma tragédia grega como elas eram em seu contexto original, perdido para nós no tempo, Anne Carson a traz para nosso tempo. É um livrinho excepcional de uma poeta excepcional. Li outros dois livros dela este ano: ‘Glass, Irony, and God’ (1995) e ‘The Beauty of the Husband’ (2001). Não posso recomendar o trabalho dela com entusiasmo suficiente. Para meu próprio trabalho, ler Àntigonix’ foi libertador no sentido de perceber que há algumas tragédias nossas que ainda podemos trabalhar em texto, ainda que seus contextos tenham se tornado distantes.
No momento, não consigo parar de ler a tradução em língua inglesa para o primeiro volume de memórias de Nadezhda Mandelstam, a esposa do importante poeta russo Ossip Mandelstam, que morreu no Gulag em 1938 após escrever um poema satírico contra Stálin. Este primeiro volume começa com a descrição da noite em 1934 em que a polícia secreta prende o poeta pela primeira vez, então seu exílio, a segunda prisão em 1937 (ano temido e fatídico, quando a polícia secreta já nem fingia tentar seguir a lei), e sua morte no ano seguinte. Intitulado ‘Esperança versus esperança’, o título traz já nele a inteligência sardônica da escritora. O seu primeiro nome, Nadezhda, significa justamente “esperança” em russo, levando portanto o título a várias leituras, como ‘Esperança versus esperança’, tal qual é geralmente traduzido, mas ainda ‘Nadezhda versus esperança’, ou ‘Nadezhda versus Nadezhda’. O segundo volume é intitulado ‘Esperança abandonada’ (ou Nadezhda abandonada’), e cobre o período após a morte do marido, quando a escritora passa a viver de cidade em cidade, salvando em sua memória os poemas do marido. É uma leitura perturbadora, eletrizante ao mesmo tempo, e creio que seria muito importante para o Brasil lançá-la, especialmente em 2017, com o centenário da Revolução.
Em poesia, foi importante conseguir a coletânea dos poemas completos do também romancista, contista e dramaturgo zimbabuense Dambudzo Marechera, morto aos 35 anos em decorrência da AIDS em 1987 na capital de seu país, Harare. O volume intitula-se Cemetery of Mind (1990), e venho traduzindo vários textos, aos poucos, para uma eventual publicação no Brasil. Estas foram algumas das leituras estrangeiras que me marcaram este ano.