A irresponsabilidade com a língua: sobre a campanha desastrosa do Ministério dos Transportes
Há alguns dias deparei-me nas redes sociais com o primeiro cartaz da nova campanha do Ministério dos Transportes, que busca ensinar o público a evitar comportamentos de risco ao volante – como falar ao telefone. Este primeiro cartaz mostrava uma mulher jovem, com um cão ao colo, e em letras garrafais: “Quem resgata animais na rua pode matar”, seguido, em letras pequenas, do objetivo da campanha “Não use o celular ao volante” e encerrando com esta pérola: “Gente boa também mata”. A campanha parecia uma daquelas ideias estapafúrdias de publicitários que em algum momento são descartadas ainda no processo de sugestões por alguém com um mínimo de responsabilidade, mas a campanha havia seguido e ali estava. Paga, impressa, distribuída pelas ruas das cidades brasileiras. Um desperdício de dinheiro público, se pensarmos como tudo ali é incompetente: o uso da diagramação, o salto interpretativo que exige para uma campanha de rua. Uma coisa talvez com pé, mas completamente sem cabeça. Mas então passamos da incompetência da campanha à sua irresponsabilidade. Às implicações da verdadeira estupidez política da campanha. Dias atrás, uma chacina em Campinas custara a vida de 12 pessoas, com os grandes jornais reproduzindo a mensagem misógina e violenta do assassino. A campanha certamente fora pensada antes disso, mas qualquer cidadão de olhos abertos deveria saber que aquela chacina não é algo infrequente no país. E ali estava a foto de uma mulher, numa campanha com tamanha inconsequência num país com números vergonhosos de violência de gênero.
Hoje vi um segundo cartaz com a foto de um jovem negro, e novamente em letras garrafais: “O melhor aluno da sala pode matar”, para então, em letras pequenas, recomendar que se respeite o limite de velocidade. Aqui, somos obrigados a pausar e tentar imaginar que pessoas realmente sentaram-se ao redor de uma mesa em uma agência de publicidade do país e tiveram estas ideias, e que a ninguém presente tal raciocínio pareceu de estupidez e irresponsabilidade políticas gritantes. Que estas ideias mais tarde foram expostas mais uma vez em Brasília, no Ministério dos Transportes, e que de novo ao redor de uma mesa, numa conversa regada a cafezinho (também pago com dinheiro público) em nenhum cérebro soou o alarme. Num país em que jovens negros são mortos com uma frequência horrorizante, num país que ainda tenta maquiar seu racismo institucional, em uma República racista que vê sempre jovens negros como perigosos, as pessoas (ir)responsáveis pela agência Nova/SB e pela publicidade no Ministério dos Transportes foram capazes de brindar a população brasileira estas demonstrações – repito – de estupidez e irresponsabilidade políticas.
Só uma coisa se compara à estupidez política da Agência Nova/SB: seu cinismo em ainda tentar angariar mais publicidade para si, retuitando críticas ferrenhas à campanha e usando memes engraçadinhos como respostas a elas. Em seu “Código de ética” publicado em sua página, a agência afirma que “Nenhum empregado ou potencial empregado receberá tratamento discriminatório ou qualquer forma de assédio, intimidação ou qualquer conduta inapropriada em consequência de sua personalidade, raça, cor de pele, origem étnica, nacionalidade, posição social, idade, religião, identidade de gênero, orientação sexual, estética pessoal, condição física, mental ou psíquica, estado civil, opinião, convicção política, ou qualquer outro fator de diferenciação individual.” Pois bem. É louvável que a agência tenha esta preocupação em seu código de ética, mas ela infelizmente demonstrou insensibilidade explícita aos aspectos discriminatórios desta campanha. Todos nós cometemos erros, e posso imaginar as dificuldades financeiras que aceitar e consertar erro de tamanha dimensão podem implicar. Mas esta campanha precisa ser retirada das ruas das cidades brasileiras. É inaceitável que mulheres, cidadãs, e também os cidadãos negros que pagaram por esta campanha tenham que ser sujeitados a tal irresponsabilidade política. A língua não é bem privado, é um bem de toda uma comunidade. Aí reside a exigência de sensibilidade e responsabilidade políticas em seu uso: pelo Governo, por agências publicitárias, por escritores e poetas, por qualquer um andando pelas ruas da República Federativa do Brasil.