A caminho do sul: nota sobre o livro novo de Veronica Stigger
“If things go south” é uma expressão em inglês para discutir possibilidades perante algum fracasso, fazer o anúncio de um Plano B. “Se as coisas derem errado”, ou literalmente “se as coisas forem para o sul”. Em ‘Sul’ (São Paulo: Editora 34, 2016), o novo livro de Veronica Stigger, as coisas foram para o sul. Em três trabalhos: o texto em prosa “2035”, o texto em diálogos “Mancha” e o texto em versos “O coração dos homens”, o absurdo diário e o pesadelo coletivo em que já vivemos assumem novas possibilidade, ligados por uma coisa que nos une a todos: o sangue logo abaixo da pele, que sai de nossos corpos por vias previstas e imprevistas.
O conto “2035” é uma pequena joia de controle atmosférico na escrita. Com a chegada de funcionários do governo à casa de uma família e o pedido para levar a filha, é aos poucos que vamos entrando em um mundo, ou um tempo, em que nosso desrespeito histórico pela vida humana parece ter chegado a tons celebratórios. Desde o começo do conto algo nos insinua que as coisas deram errado. Muito errado. O medo aparente da família, que parece tentar se proteger dentro de um apartamento como quem ergue barricadas na entrada de uma caverna. O tom calmo mas agourento dos funcionários. As cenas pela rua quando eles partem a caminho de uma festa, mas de quê? Não vou revelar o final aqui. Como em outros textos de Veronica Stigger, eu não sabia se gargalhava ou me escondia embaixo de uma coberta. Achei melhor fazer as duas coisas.
Em “Mancha”, um texto realmente tão hilário quanto perturbador, chamado de peça por sua composição em diálogos, as duas personagens, Carol 1 e Carol 2, discutem a causa de uma mancha ao som também agourento de um chuveiro ligado dentro da casa, enquanto em meio a discussões sobre sangue e maquiagem, parecemos ter entrado em um mundo absurdo apenas se nos esquecermos de conversas que nós mesmos já presenciamos em algum momento de nossas vidas, em alguma esquina do Brasil, como a própria Veronica Stigger já nos mostrou nos tercetos do seu ‘Delírio de Damasco’ (2012), compostos por conversas ouvidas na rua ou em outras circunstâncias: “Coitados dos índios! / Viviam em paz. / Chegaram os seres humanos e mataram todos”).
O terceiro texto, “O coração dos homens”, eu conhecia há algum tempo, tendo tido o prazer de ouvir a própria autora o lendo em um evento conjunto. Nele, sai-se de um possível futuro insinuado pelo primeiro texto do livro e volta-se com a autora a um evento do seu passado, ainda na escola, esse local onde aprendemos nossas primeiras brutalidades comunitárias. O poema relata as circunstâncias e a experiência de sua primeira menstruação. Há ainda um outro texto que encerra o livro e pode ser lido como um quarto trabalho, ou a continuação deste terceiro texto em versos, e revela o que seria ou não verdade no relato com tom histórico do poema. Realidade e ficção. Ficção e realidade.
Vários críticos apontaram para o caráter distópico do livro, especialmente a partir dos dois primeiros textos. Pensei muito sobre isso. O distópico é sempre um alerta sobre um futuro possível? Uma forma de dizer: “things are going south“, as coisas estão indo pro sul? Meia volta, volver, porque por aí, por onde estamos indo, é o abismo? É interessante que o livro encerre com um texto que se apresenta como realidade e, ao mesmo tempo, como passado. Nós somos, afinal, em grande parte um país distópico. Distopia, em nosso caso, talvez só pudesse realmente ser alertada antes ou no dia 21 de abril de 1500. A partir da manhã de 22 de abril de 1500, já era tarde. A distopia havia chegado. Somos frutos da distopia dos outros. Nós somos o horror dos outros. Nós somos o futuro distópico de muita gente.
Quando falamos de tempos passados, é comum que a gente exclame: “Que tempos horríveis aqueles!”. Mas quem hoje em dia duvidaria que o mesmo será dito do nosso tempo em algum futuro? Veronica Stigger nos mostra como as coisas podem piorar. Como a nossa violência congênita pode ainda passar de ser tolerada a ser celebrada. Violência congênita porque em violência nasceu nossa cultura, e narrativa celebratória nenhuma sobre o encontro de três raças poderá apagar o que uma das raças fez e faz às duas outras. O sangue que perpassa os textos de Veronica Stigger é o sangue embebido na terra e na cultura oficialesca brasileira. É estranho ler a ficção distópica de Veronica Stigger nestes nossos dias de ficção-realidade distópica. Quem acreditaria nas notícias oficiais destas duas últimas semanas, há um par de anos, se nos tivessem dito tudo o que viria a acontecer no Brasil, nos Estados Unidos, na Europa, e assim por diante, em 2016, o ano de publicação deste ‘Sul’ da autora gaúcha, ou nestas primeiras semanas do esperado ano novo?
A veia satírica da literatura brasileira é algo que corre paralelo aos discursos oficiais, religiosos e governamentais, e precisamos muito dela. Agora mais do que nunca? Hoje e sempre. Sempre gostei de imaginar a boca infernal de Gregório de Matos sussurrando impropérios enquanto o Padre Antônio Vieira pregava seus (magistrais) sermões. Precisamos muito dessas bocarras. E vieram Bernardo Guimarães, Sapateiro Silva, Luiz Gama, Lima Barreto. Não conheço bem esta tradição subterrânea da sátira no sul, mas gosto de pensar como a eles se une agora esta mulher do Rio Grande do Sul, Veronica Stigger (assim como sua conterrânea Angélica Freitas), sussurrando seus imporpérios em meio aos sermões celebratórios de outros. A nós que estamos a caminho do sul.