Harryette Mullen no Brasil
A Dobra Editorial, de São Paulo, lançou há pouco o volume Cores desinventadas: a poesia afro-americana de Harryette Mullen, com organização e tradução de Lauro Maia Amorim. Trata-se da primeira publicação da norte-americana no Brasil, onde esteve há pouco para participar do Festival Artes Vertentes. É uma iniciativa importante para conhecer uma autora contemporânea de destaque em sua geração, por vários motivos.
O diálogo entre dois gigantes das Américas
O diálogo da poesia brasileira com a norte-americana intensificou-se nas últimas décadas. Nesta relação, a contribuição tradutória de Haroldo de Campos e Augusto de Campos, especialmente, foi decisiva. Eles fizeram circular entre nós a obra de Ezra Pound, e.e. cummings, Gertrude Stein, ou, do pós-guerra, a de John Cage, entre tantos outros. É importante mencionar ainda o trabalho crítico de Mario Faustino em sua página “Poesia-Experiência”, no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil. Foi um trabalho pioneiro em vários sentidos, já que mesmo nos Estados Unidos estes poetas modernistas ainda encontravam muita resistência no establishment literário, dominado pelo chamado New Criticism. Já Roberto Piva foi um dos primeiros a trazer o trabalho dos Beats para o país.
Em meados dos anos 80 e 90, porém, nosso conhecimento da poesia americana baseava-se ainda com força nestes primeiros modernistas, e lembro-me das excelentes publicações, pela Companhia das Letras, da antologia de William Carlos Williams traduzida por José Paulo Paes, a de Wallace Stevens traduzida por Paulo Henriques Britto, e ainda a de Marianne Moore, traduzida por José Antonio Arantes.
No final dos anos 90, Régis Bonvicino passou a fazer circular entre nós alguns poetas do pós-guerra, com sua antologia de Robert Creeley, que teria uma influência fortíssima entre os poetas brasileiros daquele momento, e ainda de autores surgidos nos anos 70, como Michael Palmer, Charles Bernstein e Douglas Messerli. O pensamento crítico de autores ligados à revista L=A=N=G=U=A=G=E chegava ao país, com certo atraso compreensível para um momento em que a internet havia apenas começado a transformar nossa recepção da literatura estrangeira. Antes dela, éramos completamente dependentes dos esforços heroicos de tradutores, e da boa vontade de editoras.
Hoje, o trabalho a ser feito ainda é imenso, especialmente pela produção alucinante da poesia norte-americana. Os autores ligados à revista L=A=N=G=U=A=G=E são hoje escritores respeitados e têm seus nomes já estabelecidos, mas muitos ainda não foram traduzidos no país. Enquanto isso, os nomes dos movimentos literários nos Estados Unidos se sucedem em ritmo estonteante, uma obsessão deles que não parecemos compartilhar: Flarf Poetry, New Narrative, Conceptual Poetry, ou, o mais recente, Alt Lit. O Brasil não precisa, talvez, de todos estes autores, mas a recepção nacional tem se concentrado especialmente em homens como Bernstein ou, na prosa, David Foster Wallace, enquanto autoras importantes e bastante influentes nos Estados Unidos, como Kathy Acker e Chris Kraus, ainda não adentraram nosso debate literário. É por isso que contribuições recentes, como a tradução de Maurício Salles Vasconcelos para o My Life, de Lyn Hejinian, ou esta antologia de Harryette Mullen por Lauro Maia Amorim, precisam ser celebradas.
Mullen em português
Harryette Mullen nasceu no Alabama em 1953. Estreou com o livro Tree Tall Woman (1991), seguido de Trimmings (1991) e S*PeRM**K*T (1992), mas foi com o excelente Muse & Drudge (1995) que alcançou um público maior e fez seu nome tornar-se incontornável no debate literário americano. Experimental e ao mesmo tempo ligado à tradição da poesia satírica, altamente político e poético, o trabalho de Harryette Mullen é extremamente necessário para o Brasil. Muse & Drudge foi bastante discutido, especialmente por conseguir combinar um questionamento da linguagem, da vivência e experiência feminina em nossa sociedade, ligadas ainda à ascendência cultural afro-americana da autora, sem jamais ter que recorrer ou cair na acusação frequente que se faz a trabalhos deste fôlego: a de usar uma linguagem de palanque. O livro demonstra como certas oposições críticas são fictícias. O último livro de Mullen foi Sleeping with the dictionary (2002).
A antologia organizada e traduzida por Lauro Maia Amorim traz textos de todos estes livros, em belas traduções, com vários achados inteligentes. Para dar um exemplo em que Amorim foi imensamente melhor do que eu na tradução de um poema de Mullen (venho traduzindo alguns desde 2011), penso no poema “sun goes on shining”, de Muse & Drudge, em que penei para encontrar uma solução para o jogo de palavras “mister meaner” (ao mesmo tempo “senhor (mais) cruel” e jogo sonoro com “misdemeanor”, contravenção, delito), que Amorim verteu como “Don de Litto”, ou o verso “while the debbil beats his wife”, vertido como “o belzeburro surra sua garota”. Gosto bastante destas soluções. Recomendo muito o livro.
A passagem de Harryette Mullen pelo Brasil rendeu para mim, pessoalmente, um dos momentos mais fortes do Festival Artes Vertentes, com curadoria de literatura feita por mim em colaboração com Luiz Gustavo Carvalho, quando Mullen vocalizou, diante da Igreja do Rosário dos Pretos, seu texto “Denigration”, que começa desta forma na versão de Lauro Maia Amorim e que escolho para encerrar:
Denigração
A gente surpreendia os professores que tinham dúvidas inegavelmente chatinhas sobre os cérebros pequititos das criancinhas negras que os faziam lembrar dos negrinhos pequerruchos tão limpinhos das caixas de sabão em pó? O quanto é barrento o Mississippi em comparação com o terceiro rio mais longo do continente mais escuro? Na terra do igbo, do hauçá e do iorubá, qual é o preço, por barril, de negrume? (…)
Harryette Mullen, tradução de Lauro Maia Amorim, in Cores Desinventadas (São Paulo: Dobra Editorial, 2014).