A Roma de Pasolini em Berlim
Há pouco tempo, em São Paulo, participava de uma conversa entre escritores, regada a cachaça: “Se você pudesse ressuscitar um único poeta, qual você traria de volta à vida?” Ouvia as respostas, às vezes um pouco surpreso com as escolhas dos meus colegas. Quando chegou minha vez, disse sem pestanejar: Catulo. Acho que alguns se surpreenderam, mas todos riram. É, Catulo. Caio Valério Catulo, nascido em Verona, hoje Itália, nos últimos anos da República centrada em Roma, no ano 84 antes da Era Comum. Afinal, o rapaz morreu com menos de 30 anos, escreveu alguns dos mais belos e mais divertidos poemas clássicos em latim, e quem os leu tende a querer acreditar que ele devia ser um bom companheiro de boteco. Há ainda certas questões biográficas que me fazem querer estar entre quatro paredes com ele, a quem eu ainda, é claro, imagino bem bonito e saudável.
Mas, mais tarde, comecei a pensar: “Pobre Catulo, que senso ele faria deste nosso mundo?” Seria necessário explicar e contextualizar tanta coisa que as conversas de boteco se tornariam longas e chatas, talvez, além de deprimentes para ele. Foi aí que pensei em outro poeta nascido naquele território que ainda chamamos de Itália e que seria e ainda é tão imprescindível ter conosco nos dias de hoje: Pier Paolo Pasolini (1922 – 1975). Foi com isso em mente que visitei a exposição itinerante Pasolini Roma, em cartaz neste momento no Martin-Gropius-Bau de Berlim.
A exposição centra-se em Roma como local de produção e inspiração para o grande poeta, romancista, cineasta e crítico, assassinado por seus inimigos, os que combateu toda a vida, naquela horrível noite de 2 de novembro de 1975. É comovente para quem admira o trabalho de Pasolini deparar-se com manuscritos de seus poemas, trechos de cartas a amigos, uma cuidada iconografia fotográfica, gravação sonora de uma leitura de seu grande poema “As cinzas de Gramsci”, vídeo em que lê sua “Súplica à minha mãe”, poemas impressos enormes nas paredes, excertos de seus filmes, entrevistas com ele e amigos, recortes de jornal sobre os 33 processos movidos contra ele por “obscenidade e atentado contra a moral”, separados em salas que se concentram em períodos específicos de sua vida em Roma. É uma excelente exposição e me emocionei em vários momentos.
É impossível saber o que estaria fazendo Pasolini hoje, quando suas declarações tidas como exageradas nos anos 60 e 70 tornaram-se assustadoramente proféticas. O que teria escrito Pasolini perante a Itália de Berlusconi? Não se pode saber exatamente, mas uma coisa é certa: se eu o pudesse ressuscitar e trazê-lo de volta à vida hoje, ele imediatamente arregaçaria as mangas e se lançaria ao trabalho.
O sonho da razão
Pier Paolo Pasolini
Jovem do rosto honesto
e puritano, também tu, da infância,
preservas além da pureza a vileza.
Tuas acusações te fazem mediador que leva
tua pureza – ardor de olhos azuis,
fronte viril, cabeleira inocente –
à chantagem: a relegar, com a grandeza
do menino, o diverso ao papel do renegado.
Não, não a esperança, mas o desespero!
Porque quem virá, no mundo melhor,
terá a experiência de uma vida inesperada.
E nós esperamos por nós, não por ele.
Para nos assegurar um álibi. E isto
também é justo, eu sei! Cada um
fixa o impulso em um símbolo,
para poder viver, para poder pensar.
O álibi da esperança confere grandeza,
acolhe na fila dos puros, daqueles
que, na vida, se ajustam.
Mas há uma raça que não aceita álibis,
uma raça que, no instante em que ri,
se recorda do choro, e no choro do riso,
uma raça que não se exime um dia, uma hora,
do dever da presença invadida,
da contradição em que a vida jamais concede
ajustamento nenhum, uma raça que faz
da própria suavidade uma arma que não perdoa.
Eu me orgulho de pertencer a esta raça.
Oh, eu também sou jovem, claro! Mas
sem a máscara da integridade.
Tu não me apontes, fazendo-te forte
dos sentimentos nobres – como é a tua,
como é a nossa esperança de comunistas -,
na luz de quem não está nas fileiras
dos puros, nas multidões dos fiéis.
Porque eu estou. Mas a ingenuidade
não é um sentimento nobre, é uma heroica
vocação a não se render nunca,
a jamais fixar a vida, nem sequer no futuro.
Os homens bons, os homens que dançam
como nos filmes de Chaplin com mocinhas
tenras e ingênuas, entre bosques e vacas,
os homens íntegros, em sua própria
saúde e na do mundo, os homens
sólidos na juventude, sorridentes na velhice
– os homens do futuro são os HOMENS DO SONHO.
Ora minha esperança não tem
sorriso, ó humana omertà:
porque ela não é o sonho da razão,
mas é razão, irmã da piedade.
(tradução de Maurício Santana Dias, originalmente publicada
no quarto número impresso da Modo de Usar & Co.)